Fernando Szegeri: Nós, os foliões

A verdade, meus amigos, é que o folião é, acima de tudo, um altivo. Daquela altivez de que nos fala Pièrre Verger ao observar que Pai Balbino, um humilde vendedor de quiabos na feira de Água dos Meninos, portava-se com a dignidade de um rei – porque era filho de Xangô. Daquela soberba que nos percorre o corpo e a alma depois de uma noitada boa de amor, ao encontrar de manhã no elevador a vizinha carola do 1203.

Por Fernando Szegeri*

Carnaval - Reprodução

O folião, na quinta, sexta-feira que precedem os dias de Carnaval, encara as pessoas na rua, no ônibus, com uma acachapante superioridade. Tem pena de seu patrão, despreza o seu senhorio. Ele sabe, no seu íntimo, que a cidade lhe pertence, que as coisas na verdade não são como parecem na maioria dos dias; que a superioridade que o capataz lhe cospe reiteradamente às faces é uma ilusão que lhe custará caro. São chegados os dias em que tudo assume a sua feição verdadeira, em que as máscaras cinzentas que foram impostas à realidade são impiedosamente arrancadas. Essa efêmera, mas irrefutável prova sobre o verdadeiro estatuto das coisas lhe propicia um inexprimível sentimento duplo de superioridade: por ter consciência desta realidade e por saber-se o senhor livre e soberano de seu próprio destino.

É por isso que ao folião repugnam as pessoas que simplesmente ignoram o Carnaval. Não as que o odeiam. Ele compreende que para os que se arvoram em donos das coisas e dos destinos nos outros trezentos e sessenta e um dias, a visão crua da realidade absolutamente diversa lhes seja insuportável. Aos que francamente detestam o Carnaval o folião responde com um sorriso de aviso: não tentem interferir no desvelamento essencial desses dias; contenham-se nos limites da sua mentira. Mas aos que ignoram o Carnaval, que estampam em suas faces lânguidas e mortas a sua estupidez indiferente, o folião devota, muito mais que piedade, um ódio secreto, um desprezo absoluto pela incapacidade de exercerem um atributo tão fundamental e tão simples de sua humanidade.

E enfim é chegada a hora, uma vez mais, de arrastarmos pelas ruas nossas solidões, do esforço – a cada ano maior – em disfarçar a lágrima sob a máscara. Os joelhos, mais cansados, de novo terão de suportar meu corpo, mais gordo e mais pesado, de um fardo de dores e tristezas e medos. As sapatilhas ainda mais rotas, de tanta lama de tanta estrada, sofrerão novamente para me conduzir por uma jornada errante à procura do que a gente toda julga evidente, mas, em verdade, a cada dia mais se esgueira pelas vielas estreitas e becos recônditos.

Porque o Carnaval, senhores, não é isso que está aí jazendo sob os olhos. Por mais que nos regozijemos, por tanto que nos tenhamos para isso empenhado, não é possível nos deixarmos enganar tão facilmente! Assim eles querem, assim eles agem. Querem nos fazer crer que vencemos, que se renderam; que as ruas tomadas de gente e de música são a coroa da nossa vitória. Mas posso eu acreditar num Carnaval que não seja negação? Que se tenha sob tantas formas oficializado, vá lá! Transformou-se, aqui e ali, em coisas outras que guardam, indiscutivelmente, parte da beleza e força de sua origem popular, a despeito de não serem mais o Grande Carnaval! Este, ao contrário, continua tendo o poder imenso e perfeitamente ordenado (de uma ordem outra, por certo) de transformar e subverter. E por isso não se deixa colher em qualquer esquina repleta de barulho e animação. Refugia-se nos pequenos gestos de gentileza, na cumplicidade dançante, nos sorrisos envelhecidos.

Envelhecidos, sim, porque não posso crer num Carnaval que seja jovem! Já o foi, quando a juventude, recolhida à sua devida condição observante, não era mais que um grande ímpeto reprimido de vozes e humores. Mas não pode mais sê-lo, quando tudo quer se ditar pelas diretrizes da vitalidade, da disposição, da boa saúde. Pois não é o Carnaval o filho dileto da pulsão de morte? Poderia um tamanho caudal, a movimentar tantas comportas, senão pela força do represamento?

Ouço a entrevista de uma cantora que anda na moda: “Vou para o Rio, desfilar na Portela e no Cordão da Bola Preta”. Temo pelo Carnaval toda vez que se põe a reafirmar os padrões que, a fórceps, nos governam. Quando se rende desmedidamente às exigências da oficialidade ou do padrão “civilizado”. Rezo pelo Carnaval, quando percebo que toda nossa admiração pelos pioneiros que plantaram as sementes dessa árvore frondosa não foi capaz de nos transmitir sua coragem de enfrentar a repressão, seu destemor de desafiar a ordem constituída. Choro pelo Carnaval que não prescinde do carro de som, da autorização da prefeitura e do cordão de isolamento.

E chorarei e rezarei e temerei ainda mais e de novo – e sempre –, mas só a partir da quarta-feira. Que agora não são mais horas, não há mais tempo para depravações. Havemos de nos perder na multidão, a cantar um samba do Elton e do Hermínio:

Vou buscar aquilo que foi meu
E que no mundo se perdeu
Qual folhas que o vento soprou no ar…
Ter a mesma paz de antigamente
Sair cantando por cantar
Qualquer canção sob qualquer luar…