Bernie Sanders e a rebelião contra o “establishment”

A cobertura do que vem ocorrendo nas eleições primárias para o cargo de presidente dos Estados Unidos por parte dos principais meios de informação da Espanha, como limitadíssimas exceções, é muito tendenciosa, traduzindo a orientação conservadora e/ou neoliberal que caracteriza a grande maioria dos jornais.

Por Vicenç Navarro

Sanders, em comício no interior de New Hampshire

A bem conhecida (no plano internacional) falta de diversidade ideológica na televisão e rádio, assim como na imprensa escrita, com escassíssima presença de vozes críticas é um reflexo do estado da informação jornalistica no continente europeu.

De uma maneira geral, seus correspondentes nos Estados Unidos limitam-se a traduzir o que dizem os principais meios de informação norte-americanos, sem aprofundar criticamente aquilo que é dito. E, para complicar ainda mais, copiam literalmente o que se escreve naqueles jornais, sem compreender que alguns termos têm um significado oposto dos dois lados do Atlântico.

O termo “liberal”, por exemplo, é utilizado nos Estados Unidos para definir um político que apoia o intervencionismo do Estado na atividade econômica, propondo medidas redistributivas e a expansão dos gastos públicos. Liberal, nos EUA, quer dizer o que na Europa se conhece como social-democrata, enquanto no Velho Mundo, liberal define um político que se opõe ao intervencionismo do Estado, que desaprova as políticas redistributivas e promove as privatizações.

Definir os políticos da esquerda norte-americana como liberais, cria enormes confusões (vide, como exemplo, desse tipo de erro, o artigo da correspondente de El País em Washington, Amanda Mars, “Sanders centra sua estratégia em associar Clinton com o poder financeiro”, El País, 06/02/2016).

O que acontece nos Estados Unidos?

Atualmente, a principal notícia que existe nos Estados Unidos é que um candidato à presidência do país, que se apresenta (abertamente e com orgulho de ser) como socialista, e que pede uma revolução política – utilizando essa expressão em cada atividade eleitoral – está causando um tsunami político semelhante ao que ocorreu na Espanha com o partido Podemos, ou com o candidato trabalhista britânico Jeremy Corbyn.

Nas primeiras eleições primárias para o cargo presidencial, que se realizaram no estado de Iowa, o candidato socialista empatou com a candidata claramente apoiada pelo aparelho do Partido Democrata, Hillary Clinton, que não só contava com o apoio daquele aparelho, mas também do establishment político e midiático daquele partido. E essa quase vitória de Bernie Sanders, que é o candidato socialista, ocorreu apesar da clara hostilidade que sofreu sua candidatura por parte dos meios de comunicação (imprensa e televisão) daquele país, (tal como também ocorreu com o Podemos, na Espanha, e com Corbyn no Reino Unido).

Previsivelmente, tal hostilidade, ou animosidade, não só apareceu nos principais meios de informação dos Estados Unidos, como também da Espanha, cuja cobertura da vida política dos Estados Unidos, como foi dito no parágrafo anterior, limita-se, na maioria das vezes, à tradução para o espanhol (ou para o catalão) daquilo que dizem os principais meios de informação norte-americanos.

O surgimento deste movimento anti-establishment liderado por Bernie Sanders tem características semelhantes ao que vem acontecendo na Espanha e no Reino Unido e reflete uma situação comum nos três países: as classes populares estão cansadas da crescente integração entre os interesses econômicos e financeiros das grandes corporações multinacionais e as instituições governamentais transformadas em representantes do setor economico privado.

Tal situação se tornou possível devido à privatização do processo eleitoral nos Estados Unidos, onde qualquer candidato pode receber tanto dinheiro quanto pode gerar e, através dos chamados Super PACs (Political Action Committees), financiar sua campanha, comprando espaço na televisão pelo tempo que queira, sem que exista regulação alguma sobre o acesso a esses meios. A maioria dos financiamentos que a classe política recebe tem origem nas grandes empresas da classe corporativa – o 1% da sociedade que, por seu nível de renda, controla ou exerce enorme influência também sobre a maioria dos meios de informação e de persuasão do país.

A consequência deste alinhamento entre o mundo do capital e as instituições políticas é que as políticas aprovadas no Congresso dos Estados Unidos (hoje controlado pela ultra-direita norte-americana, financiada maciçamente por empresas poderosas do mercado de capitais) favorecem sistematicamente seus interesses às custas daqueles do mundo do trabalho, que constitui a maioria das classes populares dos Estados Unidos.

Tal situação também afeta em grande parte o Partido Democrata. Foi justamente o presidente Clinton que desregulou o sistema financeiro (sendo seu ministro de Finanças, Robert Rubin, um dos maiores banqueiros de Wall Street), criando as bases para o que viria a ser a principal crise financeira que o país viveu desde a Grande Depressão, uma crise que ampliou a desigualdade economica na população norte-americana. Como Bernie Sanders destaca constantemente, “uma décima parte do 1% mais rico da população controla 90% da riqueza do país”. E os dados, facilmente acessíveis, apontam a veracidade e a credibilidade de sua mensagem.

A revolta popular contra o establishment político-midiático

Resultado dessa situação: a legitimidade e a popularidade das instituições políticas estão no fundo do poço. A enorme abstenção da população no processo eleitoral (e muito especificamente das classes populares) é um indicador da perda de fé no establishment. A palavra de ordem “Não nos representam”, do 15 M (Movimento 15-M, também chamado Movimento dos Indignados na Espanha), teve grande ressonância também nos Estados Unidos através do movimento Occupy Wall Street, inspirado, em parte, pelo M 15 espanhol.

Daí que a convocação, pelo candidato Bernie Sanders, a uma revolução política que quebre este alinhamento entre a classe corporativa e as instituições que se definem – sem o ser – como democratas, é um elemento central de sua mensagem. Sua tese, facilmente sustentável, é a de que sem tal revolução política não acontecerão as mudanças políticas que está propondo, que são, simplesmente, propostas características da social-democracia, antes que esta se transformasse no social-liberalismo, como ocorreu na maioria dos países europeus.

Um indicador dessa situação é que o candidato a presidente do governo espanhol Pedro Sánchez, pelo Partido Socialista, pediu a assessoria de Larry Summers, que, junto com Robert Rubin, foi o arquiteto da desregulação do sistema financeiro quando foi nomeado secretário do Tesouro (o equivalente a ministro das Finanças) durante o governo Clinton.

As propostas do candidato socialista

Entre as propostas de Sanders está a de romper com os grandes bancos, dividindo-os em entidades mais pequenas que ainda deverão devolver o resgate de financiamentos públicos (com juros) que as salvaram do colapso, medidas altamente populares. Constam também de seu programa, como medidas prioritárias, fazer um investimento maciço em obras públicas, facilitando a transição das fontes de energia, de fósseis a renováveis (proposta que inclui a criação de 13 milhões de postos de trabalho), e criar uma reforma sanitária, para garantir a universalidade de acesso aos serviços de saúde (atualmente, nos Estados Unidos, registram-se mais óbitos por falta de acesso aos serviços de saúde e por não ter como pagar o atendimento médico do que por Aids). A cobertura do sistema de saúde é muito insuficiente: 45% das pessoas que estão à morte (isto é, com doenças terminais) manifestam a preocupação de não saber como seus familiares irão pagar o atendimento médico.

Outra proposta muito popular do candidato Sanders é realizar as reformas que permitam o acesso a todos os níveis do sistema educativo (desde a escola maternal às universidades) de todas as crianças e jovens, independentemente da classe social de seus pais. É uma medida muito popular e necessária, pois, devido ao enorme aumento de custos tanto das escolas maternais quanto das matrículas universitárias (tanto públicas quanto privadas), o acesso a tais instituições de ensino por parte das classes populares diminuiu de maneira muito acentuada.

Por isso, 80% das pessoas de idade entre 18 e 30 anos apoiaram Sanders nas primárias de Iowa. A nível nacional, segundo a maioria das pesquisas, um percentual semelhante de jovens apoia Sanders. Já de acordo com as últimas pesquisas de apoio popular – citadas pelo Financial Times de 06/02/2016 –, os candidatos Hillary Clinton e Bernie Sanders estão praticamente empatados no que se refere ao apoio entre membros do Partido Democrata (44% para Hillary Clinton e 42% para Sanders).

Poderia um socialista chegar à presidência dos EUA?

Existe uma percepção bastante difundida entre os principais meios de informação de que um candidato socialista não poderá ganhar as eleições dos EUA. Na realidade, alguns dirigentes do Partido Democrata, inclusive Hillary Clinton, acham que a vitória do candidato socialista nas primárias do Partido Democrata seria o melhor presente que se poderia dar ao Partido Republicano ao tornar muito fácil o caminho deste último rumo à vitória – devido à enorme vulnerabilidade que representa o fato que Bernie Sanders seja socialista e se orgulhe de seu socialismo.

À primeira vista, tal opinião pareceria razoável, levando em conta os estereótipos que se reproduzem na mídia sobre os Estados Unidos. No entanto, vale ressaltar que tal linha de argumentação ignora que, segundo as principais pesquisas (a última, da Real Clear Politics Average), o candidato Bernie Sanders ganharia de Donald Trump e Ted Cruz – os dois candidatos republicanos com maior apoio eleitoral – com uma margem mais ampla que a da outra candidata do Partido Democrata, Hillary Clinton, que conta com o claro apoio do establishment do seu partido.

As propostas de Sanders são viáveis no Congresso norte-americano?

É inquestionável que essa hipótese jamais aconteceria se o Congresso estivesse controlado pelos conservadores que dominam hoje o Partido Republicano. Entretanto, na hipótese do candidato Sanders ganhar, isso poderia ser um indicador do surgimento de um movimento de mudança em todo o país que também se traduziria na alteração da configuração do Congresso, já que a votação para presidente coincidem com as eleições para o Congresso.
Durante sua campanha, o candidato Bernie Sanders destacou repetidamente a importância de criar um movimento progressista, de profundas convicções democráticas, claramente comprometido com uma mudança política revolucionária, anulando, por exemplo, a enorme influência (que chega a níveis de controle) que a classe corporativa, o 1% da população mais rica (a classe dos bilionários, como a chama Sanders) tem sobre o processo eleitoral e sobre as instituições representativas.

E as propostas de Sanders teriam como ser pagas?

Este argumento é repetido constantemente, em qualquer país, por vozes conservadoras e neoliberais, em objeção a medidas que requeiram uma expansão dos gastos públicos sociais. É interessante destacar que essa pergunta nunca foi feita – por parte dessas mesmas vozes que afirmam que não há recursos para a expansão dos gastos sociais – para saber se o país teria dinheiro para pagar o resgate de seus bancos. Se a pergunta tivesse sido feita, poderia agora ser respondida da mesma forma. Se o país teve dinheiro para resgatar os bancos, também o teria para resgatar a população .

E nos Estados Unidos, bem como na Europa, os financiamentos existem. É o que mostra o candidato Bernie Sanders: reduzindo significativamente os gastos militares, proibindo os investimentos das grandes empresas em paraísos fiscais – e fazendo com que paguem impostos, como todo mundo – e aumentando a tributação das grandes fortunas, entre outras medidas. Com esses financiamentos, seriam gerados recursos mais do que suficientes para assumir os gastos sociais. As atuais causas para a não-existência desses financiamentos são de ordem política e não de ordem econômica.

O grupo de economistas do candidato Bernie Sanders divulgou como seria paga cada uma das reformas que ele propõe. Por exemplo, o programa da universalização dos serviços de saúde (conhecido como single payer) substituiria o financiamento privado do sistema de saúde norte-americano (que se baseia no pagamento de apólices a empresas de seguros particulares, apólices que chegam a níveis proibitivos para milhões de pessoas e determinam que estas tenham muitas dificuldades para poderem receber atendimento de saúde) por um financiamento público.

Desta forma os norte-americanos, em vez de pagarem a empresas de seguros privadas (que oferecem uma cobertura insuficiente), o fariam por um custo muito menor a uma agência pública, que lhes garantiria uma cobertura de saúde completa, como ocorre no Canadá (onde a popularidade do sistema de saúde é muito superior à do sistema privado norte-americano). Na realidade, os impostos não aumentariam para a maioria da população, pois a expansão dos serviços públicos seria com base no aumento dos níveis tributários dos bilionários, que hoje apenas transferem financiamentos das áreas militares para as áreas sociais.

Sanders não é muito “velho”?

Por mais grosseiro que pareça, este argumento também foi utilizado para fazer Sanders perder credibilidade, como se idade avançada significasse menos habilidade. Este argumento também apareceu em mais de um veículo da mídia européia. Sanders, que tem mais de 70 anos, goza de boa saúde e, como vem mostrando ao longo da campanha, tem uma vida ativa sem freios ou incapacidades. Na realidade, a idade é um ponto a seu favor, pois mostra a coerência em sua vida política, sempre posta a serviço das classes populares, tendo conquistado com isso uma credibilidade que outros não alcançam por falta de experiência ou seus constantes vaivéns em suas posições e crenças.

Bernie Sanders, o político mais velho no Senado dos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, o mais popular entre os jovens daquele país, sempre apoiou ativamente todas as causas progressistas nos EUA, a começar pela campanha de Martin Luther King pelos direitos civis dos negros. Já foi prefeito, deputado e senador, destacando-se sempre por ter apoiado o movimento sindical, os movimentos sociais, as feministas e os ativistas ambientais. Também liderou a campanha de conscientização pelas mudanças climáticas. É precisamente essa história que o torna particularmente atraente para a gente jovem, que anseia e deseja a libertação, a integridade e o compromisso.

Teria Sanders experiência em política externa?

Essa pergunta, de maneira geral, é feita pelos assessores da candidata Hillary Clinton, que foi secretária de Estado [o equivalente a ministra de Relações Exteriores] do governo norte-americano. Como o próprio Sanders bem respondeu, o que importa, no entanto, não é a experiência, e sim, os critérios e juízos que tenha o responsável pelo projeto e pela configuração da política externa dos Estados Unidos.

Em relação a esses quesitos, o candidato Bernie Sanders mostrou ter melhor juízo e critérios do que a candidata Hillary Clinton em decisões-chave tomadas pelo governo norte-americano. Por exemplo, Sanders se opôs à invasão do Iraque, enquanto Hillary Clinton a apoiou. Sanders se opôs ao bombardeio da Líbia e ao golpe que depôs Muamar Kadafi. Hillary Clinton o apoiou. Sanders se opõe a prosseguir com uma política de confronto em relação à Rússia e ao Irã. Hillary Clinton a apoia. Sanders se opõe à Parceria Transatlântica de Comércio e Investimentos (The Transatlantic Trade and Investment Partnership- TTIP) entre os Estados Unidos e a União Europeia, enquanto Hillary Clinton a apoiava (embora ultimamente se tenha distanciado desse tratado).

Seria Sanders excessivamente utópico e pouco realista?

Essa posição é idêntica àquela que utilizada contra o partido Podemos, na Espanha, contra o novo trabalhismo britânico e contra outras forças que protestam e se opõem ao atual status quo. Desnecessário dizer que o establishment define como “utópicas” e “pouco realistas” todas as forças políticas que questionam o seu poder. Mas o que propõe Bernie Sanders é amplamente reconhecido como necessário pelos especialistas. Por exemplo, uma medida de grande importância proposta por Sanders é o desmembramento dos grandes bancos (que foram resgatados com dinheiro público), evitando que o próprio tamanho da empresa financeira seja um elemento negativo ao buscar que o sistema econômico dependa de um número excessivamente limitado de entidades bancárias. Hillary Clinton não apoia essa medida. O fato de ser ou não realista depende da vontade política. Quanto ao resto, do ponto de vista técnico e científico, é fácil de realizar e aconselhável a sua concretização.

Situação semelhante ocorre em relação à diminuição da idade de aposentadoria (que é de 67 anos nos Estados Unidos), proposta a que se opõe Bernie Sanders, mas que Hillary Clinton não descarta. Escusado será dizer que Hillary Clinton é uma alternativa muito melhor do que qualquer dos candidatos republicanos. Mas para uma pessoa progressista, Sanders preenche melhor a receita.

O establishment político-midiático permitiria que Sanders fosse presidente?

Essa observação, que tem origem em grupos céticos de esquerda, é muito importante. É uma realidade que o establishment mostra uma enorme hostilidade em relação à candidatura de Sanders. Os principais canais de televisão – ABC, CBS e NBC, por exemplo – dão muito mais cobertura aos outros candidatos do que a Bernie Sanders. Segundo a análise do tempo de cobertura dos candidatos feita pelo Tyndall Report (órgão que monitora os noticiários apresentados pelas redes de televisão acima citadas), no ano de 2015 esses canais deram ao candidato republicano Donald Trump 16 vezes mais tempo de exposição do que ao candidato democrata Sanders, que goza de mais apoio popular do que Trump. Discriminação semelhante ocorreu na Espanha se for comparado o tempo de exposição e apresentação favorável entre Albert Rivera (Partido da Cidadania, de direita) e Pablo Iglesias (do Podemos) nas últimas eleições.

A pergunta leva ao centro do problema: a cooptação das instituições democráticas pelos interesses econômicos e financeiros corrompe o significado de democracia. É por isso que a convocação para que se façam mudanças nas instituições políticas (e midiáticas) – que Sanders define como revolução política – é a mesma convocação por uma nova ordem econômica, justa e solidária. E esse é o grande desafio que têm hoje tanto os Estados Unidos como outros países do mundo. Sem dúvida alguma, estamos vivendo um período histórico – o ocaso de uma época e o amanhecer de uma nova, da qual ainda não conhecemos a configuração. A enorme raiva das classes populares pode ser canalizada por forças políticas profundamente reacionárias (como Trump, nos Estados Unidos) ou profundamente democráticas (como Sanders). Entretanto, um futuro favorável às alternativas democráticas e progressistas dependerá de mobilizações populares que pressionem para que isso aconteça. Simplesmente isso.