Urariano Mota: Mercado da Boa Vista

Recife, a capital pernambucana, completou ontem, 477 anos de fundação, que ocorreu em 12 de março de 1539. O escritor pernambucano Urariano Mota rememora, neste texto de seu Dicionário Amoroso do Recife a vida desta grande metrópole brasileira.

Mercado da Boa Vista
Mercado da Boa Vista

Por Urariano Mota

Todos os dias são de sol no Mercado da Boa Vista. Não consigo imaginar um minuto sequer de tempo sombrio, de inverno pesado, de toró brabo ou de noite soturna, lá no Mercado da Boa Vista. Mas antes que me acusem de não possuir nem um pinguinho de imaginação, ou de ser mentiroso pelo abuso de muito imaginar, explico.

Todas as vezes em que fui ao Mercado da Boa Vista sempre estava um dia cheio de luz. Numa das vezes, lembro, houve uma chuva passageira em plena tarde. Mas sabem aquela chuva com sol, que a gente nem reclama porque se casa a raposa com o rouxinol? Pois, ela veio, passou e o clima ficou mais verde. Foi a única vez de chuva. É claro, aqui mais uma vez, o sentimento é que faz a conformação do tempo. A forma das coisas é o que a memória manda ver.

A razão psicológica para tal iluminação de boas-vindas primeiro nos atinge pela forma exterior, na grande porta do mercado. Numa rua tão histórica e reconhecida, por uma experiência anterior à nossa chegada, na Rua de Santa Cruz somos recebidos pelos arcos do Mercado. Com a vista do maior deles, no centro, entramos para o pátio interno. É outra saudação, com as árvores frondosas no pátio. Então somos atingidos por uma doce pancada de infância. De onde vem isso, por quê? Será do arco, será do sol no arco, será da vista? Agora sei, será dos boxes antigos que vendem de tudo, com os cheiros conhecidos de queijo de coalho, de manteiga, de coentro e cominho e rapadura, mais as suas caras conhecidíssimas, como existia lá atrás no Mercado de Água Fria? É isso, deve ser isso, descobri agora de onde vem essa permanente luz do Mercado da Boa Vista.

È por isso que os sóis no Mercado da Boa Vista nos chegam em clarões. Não como naqueles dois sóis de João Cabral de Melo Neto, nos versos:

“O sol de Pernambuco leva dois sóis,
sol de dois canos, de tiro repetido;
o primeiro dos dois, o fuzil de fogo,
incendeia a terra: tiro de inimigo”

Não nesse sentido. No mercado os inimigos, se existem, estão perdidos na multidão de todos os sábados. Ou então fazem momentânea trégua, bandeira branca porque o dia não é de guerra. Os clarões vêm, depois dos arcos e dos cheiros, de outra realidade humana. Mas que outra? Digo melhor, vêm da continuação da humanidade da recepção desde os arcos, porque no pátio encontramos gente, muita gente, diria melhor, gentes de todas as classes sociais, idades e tribos. Dos chamados intelectuais, queremos dizer, das pessoas que gostam de ler e cultivar o espírito, no mesmo passo em que amam a carne, aos que nada leem de livro impresso, mas têm a leitura da vida no Recife. Ali se misturam as moças das famílias emergentes da zona sul às belas suburbanas da zona norte, os amantes do frevo e do samba, os poetas estabelecidos e marginais, até mesmo um dicionarista sem classificação que ora escreve. No Recife, quem gosta de povo, de gente pernambucana e de juventude, vai ao Mercado da Boa Vista.