Na Palestina, a ocupação fica no caminho da escola

Recentemente, alguns jornalistas na mídia internacional indagaram o motivo – como se instigassem uma análise sociológica – da maior participação de (jovens) mulheres palestinas em ataques ou tentativas de ataque contra soldados e colonos israelenses. Uma breve conversa com alunas de uma escola em Birzeit, na Cisjordânia, traz o tão ausente contexto da noticiosa “escalada da violência” ao centro da atenção que demanda e contextualiza a completa exasperação palestina.

Por Moara Crivelente*

Birzeit - Moara Crivelente

O foco no tipo de “eventos” datados, como a mais recente revolta supostamente iniciada em outubro de 2015, leva meios de comunicação do mundo todo a arrancarem um período específico do que é o longo processo de ocupação da Palestina. Neste período, atos apresentados como rompantes raivosos parecem temporários, até que os sujeitos sejam “apaziguados” e “controlados”, supostamente voltando a tolerar o estado das coisas.

Mas a resistência palestina acontece diariamente – não é preciso intitulá-la, por exemplo, a nova “intifada das facas” ou qualquer nome que se assemelhe. Este foi até mesmo um dilema que dominou a mídia israelense e as análises estratégicas que ela veiculou. A ocupação acontece permanentemente. O ano de 1967 é o marco estabelecido por analistas ou atores políticos, quando Israel ocupou e alegou anexar territórios palestinos – inclusive estabelecendo leis – e de outros vizinhos árabes, depois da Guerra de Junho daquele ano.

O bloqueio da Faixa de Gaza, os postos de controle militar esparramados pela Cisjordânia e Jerusalém Oriental, a vigilância, detenções massivas e arbitrárias, a demolição de residências como “dissuasão” – leia-se, punição coletiva – e a destruição de plantios ou a desapropriação de terras, as normas de movimentação seletiva, entre tantas outras práticas, apresentadas para consumo nacional e internacional como “contraterrorismo”, regem há décadas o cotidiano ocupado dos palestinos.

Jerry Halper, presidente do Comitê Israelense contra Demolições de Casas (ICAHD, na sigla em inglês), trata disso como a “matriz de controle” de Israel em seu livro “War Against the People: Israel, the Palestinians and Global Pacification” (“Guerra contra o Povo: Israel, os Palestinos e a Pacificação Global”, 2015, sem tradução para o português). A matriz alia-se à intervenção internacional de doadores-mediadores que impõem um estrito programa de reformas da segurança, a “governança” e reformas econômicas (capitalistas e liberais) calculadas pelos fatores “controle” e “estabilidade”. Sufocando a revolta contra o espólio violento, a ocupação e a colonização vão de vento em popa.

Mas isso está no nível macro da grande política e da violência estrutural. No nível de baixo, indivíduos experimentam suas consequências diariamente. Para enfatizar a persistência, o enraizamento e a disseminação desses efeitos sobre as vidas de jovens estudantes palestinas, trazemos a conversa gravada em abril de 2015 em Birzeit, a apenas alguns minutos da sede administrativa do governo palestino, Ramallah, na Cisjordânia, e de Jerusalém.

A entrevista foi conduzida através do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz), em visita à Palestina, quando diversos movimentos sociais brasileiros buscaram entrar na Faixa de Gaza, mas foram impedidos pelas autoridades egípcias e israelenses. Os movimentos haviam recorrido aos canais oficiais com antecedência, com o intuito de expressar sua solidariedade ao povo palestino em uma viagem apoiada pelo Conselho Internacional do Fórum Social Mundial, mas não obtiveram permissão.

A visita à escola e a tradução da conversa com as estudantes, que integram o grupo “Liderança Juvenil” coordenado pela professora Rihan Qaimari, mencionado por elas, ficaram a cargo de Ruayda Rabah, brasileira-palestina que coordena importantes trabalhos no Conselho de Cidadãos Brasileiros na Palestina.

Assista aqui o vídeo da entrevista.

“Havia muito sangue e gás lacrimogêneo; não pudemos ir à escola”

No vídeo, as adolescentes referem-se a um evento específico, mas cuja performance e efeitos repetem-se com frequência. É a morte de Motaz Washaha, de 24 anos, em 27 de fevereiro de 2014, quando as forças israelenses invadiram sua casa em Birzeit, revistaram-na, destruíram móveis e incendiaram-na. Quando a reportagem foi gravada, um ano depois, a casa estava sendo reconstruída pela família. Vizinhos e amigos diziam ser uma afirmação de resistência, um orgulho local.

Motaz integrava a Frente Popular pela Libertação da Palestina (FPLP), partido de esquerda na Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e um dos expoentes históricos na resistência nacional. Ele havia sido liberado da prisão israelense pouco antes, mas ali sair do cárcere nunca significa mesmo a liberdade. Motaz sabia disso e sabia o que o esperava; preferiu resistir à nova detenção, acusado de ser “suspeito em atos terroristas”. Seu irmão Ramiz e seus amigos foram presos, mas ele embarcou em seis horas de confronto com as forças israelenses.

Foi a isso que diversos vizinhos, inclusive algumas das alunas, tiveram de assistir, punidos também com uma batida estendida, bombas de gás lacrimogêneo, revistas e um período de postos de controle adicionais naquela que foi declarada uma zona militar fechada.

Em fevereiro de 2014, é preciso lembrar, decorriam, já aos trancos e barrancos, os nove meses de negociações entre as autoridades israelenses e palestinas, mediadas pelos EUA, enquanto cresciam as colônias israelenses e se enraizava a ocupação. Quando o diálogo foi encerrado, inócuo, mais duas ofensivas militares recordes, contra a Cisjordânia e contra Gaza, foram lançadas por Israel entre junho e agosto, matando mais de duas mil pessoas. Aliás, aquele ano fatal foi também o Ano Internacional de Solidariedade ao Povo Palestino.

*Moara Crivelente é doutoranda em Política Internacional e Resolução de Conflitos, jornalista e membro do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz).

Fonte: Opera Mundi