Peru: A árdua tarefa de superar a herança fujimorista

O combate a fundo contra o fujimorismo tem que dar-se fundamentalmente na esfera da luta de ideias. Sendo importante não se opor apenas a uma candidatura; é preciso conquistar não só a emoção do povo, mas principalmente sua consciência, levar a cabo uma renovação da política, a assimilação de valores consistentes com as grandes mudanças de que o Peru necessita. Se trata de um trabalho árduo, que transcende a atual conjuntura eleitoral.

Keiko Fujimori - Telesur

A eleição presidencial do Peru acontecerá no dia 10 de abril. As pesquisas de intenção de voto apontam como favorita Keiko Fujimori, filha do ex-presidente Alberto Fujimori, que cumpre pena de prisão, condenado por violação aos direitos humanos e corrupção. Segundo pesquisa divulgada nesta sexta-feira (1º), Keiko tem 36,1%, seguida pelo candidato do “Peruanos por el Kambio” (PPK), Pedro Pablo Kuczynski, com 16.0%, e por Verónika Mendoza, com 14.8%. Verónica é a candidata da Frente Ampla e tem o apoio do Partido Comunista do Peru (Pátria Roja) e do Partido Comunista Peruano. Assim como no Brasil, se nenhum dos candidatos atingir mais de 50% dos votos válidos, haverá segundo turno entre os dois primeiros colocados, o que não permite dizer que Keiko tenha a vitória assegurada. De qualquer maneira, é inegável a força do fujimorismo no Peru. O dirigente do Partido Comunista do Peru (Pátria Roja), Manuel Guerra, faz uma análise deste fenômeno no artigo abaixo, traduzido pelo Resistência.

A árdua tarefa de superar a herança fujimorista

O fujimorismo irrompeu no cenário político peruano em um contexto bastante crítico de nossa história. A violência senderista e a guerra suja empreendida pelo Estado, sacudiram a nação gerando dezenas de milhares de vítimas, em sua maior parte camponeses indefesos. Os partidos de esquerda, imersos em uma profunda crise como produto da debacle da IU (1) e do fim da URSS sofriam, além disso, as consequências da ofensiva direitista que os vinculava ao terrorismo, o que afetava na mesma proporção o movimento popular. Os partidos tradicionais da direita (AP, PPC e APRA) estavam desacreditados ao não conseguirem resolver o problema da violência, nem a grave crise econômica que afetava o país. A isso se somava a escandalosa corrupção que começou a manifestar-se no primeiro governo aprista.

Por Manuel Guerra

O terreno estava preparado para o surgimento do out sider que derrotou a Fredemo (2) com um discurso contra os “políticos tradicionais” e contra o programa de ajuste que pregava o candidato da aliança direitista, Mario Vargas Llosa. Mas as condições também se mostraram favoráveis para que o modelo neoliberal começasse a ser aplicado sem encontrar maiores resistências. A derrota de Vargas Llosa não significou a derrota do programa que este propugnava; é conhecida a rápida conversão de Fujimori, que uma vez no governo começou a aplicar as medidas que havia rechaçado como candidato.

O fujimorismo inaugurou um estilo de governo que não pode ser explicado sem ter em conta as condições já citadas; tampouco sem considerar o sustento que lhe proporcionou o neoliberalismo, a cultura e os valores com que se alimentou o monstro que necessitava desse modelo para expandir-se a aprofundar-se. A guerra suja que começou a aplicar-se com o segundo belaundismo (3) e continuou com o governo aprista, chegou a uma macabra depuração com o fujimorismo através do controle das forças armadas e policiais e os serviços de inteligência, pelas mãos de Vladimiro Montesinos. Este cenário facilitou também o controle dos meios de comunicação, do poder judiciário, do parlamento e do conjunto de instituições do Estado. A corrupção que se tornou cada vez mais clara e alcançou níveis descomunais, fez parte deste processo como uma engrenagem vital de toda essa maquinaria.

Tudo isso com o beneplácito e o suporte do grande empresariado, dessa direita apátrida e tenebrosa que tem sempre trabalhado como representante do capital externo.

O fujimorismo passará a história como o regime mais daninho e pervertido que há houve no país. A corrupção, o entreguismo, a violação sistemática dos direitos humanos, são as características que comumente o define e o condena. Apesar disso, há um aspecto o qual não se presta a devida atenção e que, a meu juízo, constitui a sua herança principal e que explica por que ainda tem um espaço político importante na atualidade.

Esta herança consiste na vitória obtida pelo fujimorismo no terreno das ideias. A degradação moral, a cultura do “rouba mas faz”, o pragmatismo que alimenta os trânsfugas, o assistencialismo convertido em forma de fazer política aproveitando-se da pobreza do povo; tudo isso está profundamente arraigado na mente de importantes setores populares que constituem a principal base social do fujimorismo. De outra maneira não se explica que apesar das trapaças cometidas por esta confraria de delinquentes, cujo líder está cumprindo pena na prisão, Kenyi Fujimori tenha sido eleita com a maior votação do parlamento, que o fujimorismo conte com presença em não poucos governos municipais e regionais e que hoje Keiko Fujimori conte com a preferência de um terço do eleitorado.

Em consequência, o combate a fundo contra o fujimorismo tem que dar-se fundamentalmente na esfera da luta de ideias. Sendo importante não se opor apenas a uma candidatura; é preciso conquistar não só a emoção do povo, mas principalmente sua consciência, levar a cabo uma renovação da política, a assimilação de valores consistentes com as grandes mudanças de que o Peru necessita. Se trata de um trabalho árduo, que transcende a atual conjuntura eleitoral.

1 – IU – Sigla em espanhol da Esquerda Unida, frente que reunia sete partidos da esquerda peruana. Foi criada em 1980 e dissolvida em 1995. (NT)
2 – Fredemo – Frente democrática, agrupamento criado em 1988 que reuniu os partidos tradicionais da direita peruana. (NT)
3 – Segundo governo não consecutivo de Fernando Belaúnde Terry, de 1980 até 1985.