Wanderley Guilherme: Os salvadores da Cultura nacional

O cretino episódio de fechamento e reabertura do Ministério da Cultura obriga a essencial distinção entre oposição a um governo usurpador e repúdio a solidariedades extorquidas por contrabandistas políticos. Durante anos os democratas foram manietados e amordaçados pelos que defendiam a estratégia oportunista de combater a ditadura por dentro.

Por Wanderley Guilherme

Temer e Mendonça Filho

Sempre que há um deslize autoritário surge o infalível aproveitador do momento, embuçado em bandeiras de irrepreensível decência. Agora não está sendo diferente, e a indignação seletiva dos democratas de boa fé construiu admirável palanque para a publicidade de algumas dessas espécies de roedores. Não há porque se intimidar com a usual ameaça de difamação, sim porque também existe um estilo Eduardo Cunha à esquerda. Hora de partir os fritos, como se diz no Nordeste.

Foi de vento na popa a disputa pela liderança do movimento de resistência democrática. Unidas em frente única na redução do foco às manifestações contra o estúpido fechamento do Ministério da Cultura, com referências simbólicas às políticas sociais sem mídia, as conhecidas organizações centralizadoras e as empresárias de negócios culturais (“autorizar biografias só mediante acordo sobre quanto vão pagar!”) reivindicam o generoso saldo de uma vitória benvinda, mas periférica no combate ao reacionarismo em expansão. Administradoras de negócios orientaram celebridades de suas carteiras de clientes para difundir a patranha de que o ápice da luta contra o golpe não é a denúncia da truculenta mutilação dos múltiplos programas de atendimento aos desvalidos de renda, educação, saúde, moradia e defesa jurídica, mas o resgate de uma burocracia medíocre diante da heterogeneidade e instabilidade dramáticas da cultura brasileira. Estão saindo no lucro, com a perspectiva de novos adeptos, em um caso, e, no outro caso, dobrando ou triplicando o cachê de seus contratados para turnês internacionais com audiências bem pagantes, e ainda aplaudidos como heróis da resistência. Empresárias vorazes na exploração cultural, e até temidas pela concorrência, se apresentam de cara limpa como porta-vozes da democracia, a falar sobre valores quando os únicos que lhes importam são os denominados em reais, dólares, ou, ainda, em euros. Ingênuos os que de boa fé emprestaram sua força de trabalho, solidariedade e manifestação artística a um movimento já embolsado pelas empreiteiras dos negócios culturais. Mas este não é o único contrabando.

Pilantras exploradores de criações culturais do povo, burocratas daquela esquerda mafiosa, discriminadora, e sem currículo em qualquer manifestação de cultura, embora agasalhados por colunas e noticiários de jornalistas sem opção de emprego, surfam na espuma produzida pelas empresárias de negócios culturais, faturando com a violência da espoliação de quem efetivamente vive da criação cultural. Acumulam créditos sem lastro de obra pessoal, à espera de resgate sob a forma de bem remunerada hospedagem em governo estadual ou municipal amigo. Lombrigas desde sempre, alimentadas pela saúde produtiva de efetivos criadores de bens e valores culturais, já anunciam que o governo usurpado se legitimou pela recriação do MinC. Não demora e descolarão uma sinecura que não dê na vista.

Estive em outra palestra e debate, desta vez no Instituto de Psiquiatria da UFRJ, dia 19 de maio, com cerca de 200 professores e estudantes de mestrado na complexa área de Saúde Mental. Buscavam entender o inesperado fenômeno da formação de tamanha maioria parlamentar, com substancial apoio na classe média, para destituir uma presidente legitimamente eleita e sem comprometimento comprovado com qualquer crime constitucional. Investigavam formas de contribuir para a denúncia da usurpação e, também, de defesa das vulneráveis políticas da área, como vulnerável é, por exemplo, a política de direitos humanos ou a do cálculo do salário mínimo. Que fazer? Os meninos e meninas da UBES, perseguidos e espancados pela polícia, sem desistir, foram citados na conversa. Lembrei-me do Diretório Acadêmico da gloriosa Faculdade Nacional de Filosofia e imaginei que, certamente, convocaria os universitários de direito e medicina para que formassem grupos de assistência jurídica e de atendimento médico a essa garotada e a todos os feridos pela repressão, que tende a aumentar. É um passo. Outros profissionais e cidadãos inventarão formas de resistir ativamente à truculência que atinge, antes de qualquer profissão, artística ou não, ao público da bolsa-família, aos desabrigados do minha casa-minha vida, aos clientes das farmácias populares, aos atendidos pelo SUS, às mulheres violentadas, aos negros e às negras, que ascendiam com dificuldade na escala da estima social. Há muito a fazer e muito haverá, sobretudo quando cessar a derrama do potencial faturamento monetário, gerado pela mobilização das pessoas de boa fé, artistas, funcionários e estudantes, capturados pelo demanda simpática, mas monocórdia e de contrabandeado interesse, da alegada salvação da cultura.

Dicionário:

Produtor cultural não é um autor de teatro, de telenovela, ou cantor, músico, criador de bens culturais, mas empresário, produtor de lucro, que faz negócios com a cultura produzida por outros. Exemplos: Paula Lavigne, agenciadora de vários produtores de cultura do Procure Saber, como Caetano Veloso e Erasmo Carlos, produtora do filme sendo rodado por Cacá Diegues, para quem o governo não é ilegítimo. Paula Lavigne já se reuniu com o interventor no recriado Ministério da Cultura.

Burocratas que se apropriam das importantes posições de gestores de cultura, instalam grupelhos e submetem os efetivos produtores a regulamentos de chantagem, adesões a patotas e sujeição a lealdades, mediante uso da blogoesfera mafiosa e de jornalistas sem opção de emprego fora do sistema Globo. Exemplo: Juca Ferreira, fraude intelectual e operacional, como denunciado pelos órgãos de controle do governo e explicitado por Marta Suplicy, crítico duas caras de Dilma Rousseff, mordomo do ex-presidente Lula.