Temer promove ofensiva contra política de distribuição de renda

“No fundo, a história que a gente está vivendo é menos de um ajuste fiscal e mais de uma ofensiva de políticas contra a distribuição de renda”, avaliou Fernando Rugitsky, professor da FEA/USP, em relação às medidas apresentadas pelo governo provisório de Michel Temer.

Por Joana Rozowykwiat

Fernando Rugisky

De acordo com ele, a atual gestão e seus apoiadores tentam passar a ideia de que realizar um ajuste de curto prazo não resolve mais o problema da economia e, portanto, seria necessário promover um ajuste estrutural, que significa, na prática, reduzir o papel do Estado.

Doutor em economia pela New School for Social Research (EUA), Rugitsky analisa que, de certa forma, a atuação do ex-ministro da Fazenda da gestão Dilma Rousseff, Joaquim Levy, terminou por ser funcional a esse discurso.

“De alguma forma, ele legitimou do ponto de vista do discurso público, para os economistas de direita, a ideia de que o ajuste de curto prazo não adiantou: ‘Levy já tentou, já cortou 40% do investimento público em um ano e não funcionou e agora tem que fazer um ajuste estrutural’”, disse, durante o seminário “Austeridade contra a democracia”, realizado na semana passada, em São Paulo.

Para ele, contudo, o governo “está se lixando para ajuste fiscal, dívida pública, resultado primário” – vide o anúncio do maior deficit da história para 2016, de R$170,5 bilhões. O que estaria por trás da retórica seria a aniquilação de políticas públicas e direitos sociais.

“[A ideia] é dizer: ‘o resultado primário de curto prazo não vai melhorar, mas a gente faz outras coisas, corta direitos na previdência, eventualmente reduz saúde e educação pública. O ajuste fiscal sai de pauta, como ajuste efetivo para resolver o endividamento no curto prazo, e entra em pauta uma redução do papel do Estado, uma ofensiva contra a política de redistribuição de renda”, opinou.

Uma PEC ideológica

Referindo-se à gestão Temer como “interina” e “ilegítima”, o professor teceu críticas à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, apresentada pelo governo como a mãe das reformas que pretende levar adiante. Tal proposta limita o crescimento dos gastos primários do governo à variação da inflação do ano anterior. Isso significa congelar as despesas em áreas como saúde e educação, impedindo que elas tenham crescimento real.

Rugitsky leu trechos da PEC, que classificou como “uma pérola” e “profundamente ideológica”. Segundo o texto, a proposta é o “único caminho para a recuperação da confiança” no país.

A lógica utilizada pelo governo interino é a de que, ao limitar os gastos, a confiança voltará e isso fará a economia crescer, com geração de renda e emprego. O economista, no entanto, aponta a irrealidade desse discurso.

“Tem um cientista político escocês que gosta de dar esse exemplo. 'O desemprego está bombando, a renda caindo. Você acorda de manhã, perdeu o emprego, sua mulher também perdeu o emprego, mas você olha para ela e diz: hoje a gente vai gastar, porque o governo cortou os gastos e, eventualmente, lá na frente, os impostos vão cair. Então, mesmo que a gente esteja sem emprego e sem renda, a gente vai começar a consumir feito uns loucos. E daí, claro, vão cair os estoques das empresas e elas vão começar a investir também'. Bem, não parece que as pessoas se comportam bem assim. Nem as empresas”, disse.

O professor chamou a atenção para o fato de que a própria PEC já desvincula os gastos com saúde e educação que hoje possuem um piso, fixado como proporção da receita fiscal. E apontou a contradição no texto da proposta. Em um trecho, a PEC afirma que o teto irá contribuir “para melhorar da qualidade de vida dos cidadãos e cidadãs brasileiro.” Em outro momento, explica que, com a limitação imposta pela PEC, haverá “queda substancial da despesa primária do governo central como porcentagem do PIB”. Para o economista, esse cálculo “parece estranho”.

De acordo com ele, o “austericídio” levará a economia a um ciclo vicioso, que não ajuda a tirar o país da crise. “Pior ainda. A gente gera essa baita recessão, sai capital do Brasil, desvaloriza o câmbio, sobre a inflação, o Banco Central sobre os juros, aí aumenta a conta de juros do país”, previu.

O economista questionou o fato de que o teto para o crescimento de gastos não se aplica às despesas de natureza financeira, preservando, assim, os recursos destinados a rentistas. “Na conta do governo não cabem os serviços públicos, mas cabe o serviço da dívida”, ironizou.

Desigualdade

Fernando Rugitsky ressaltou que, nos últimos anos, especialmente durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva, houve uma redução da desigualdade salarial no país, mas não da desigualdade total. Nesse sentido, ele apontou os limites das políticas implementadas e defendeu que é preciso uma mudança na estrutura produtiva para solucionar a questão.

De acordo com ele, contudo, a proposta de Michel Temer não só não resolve esse problema, como o aprofunda, uma vez que acabar com o financiamento da educação e da saúde públicas, que atendem a mais de três quartos da população brasileira, significará “aumentar ainda mais o fosso que separa os mais ricos dos mais pobres”.

“Você cria esse teto, você inviabiliza a universalização da educação e saúde, impõe uma reforma da previdência super profunda e o próximo passo vai ser privatizar e começar a cobrar por serviços públicos”, criticou, citando a plataforma de Temer.

Paradoxo da redistribuição

Segundo Rugitsky, os defensores desse projeto tentam vendê-lo como parte do combate às desigualdades. A ideia seria a de que é preciso, por exemplo, cobrar mensalidade nas universidades hoje públicas, uma vez que elas atendem à elite que tem dinheiro e pode pagar.

“O problema é que, quanto mais focalizado for o gasto público nas pessoas mais pobres, mais você corrói a legitimidade do sistema tributário. Porque você cria aquele argumento, comum no Brasil, de que ‘eu estou pagando tudo isso, mas não recebo nada em troca’. Claro, porque você focalizou o gasto público para as pessoas que não pagam imposto direto, embora paguem muitos tributos indiretos”, disse.

Isso aprofundaria ainda mais os problemas fiscais do Estado, pressionando para baixo a carga tributária e diminuindo a capacidade do Estado de gerar redistribuição.

O professor afirmou que os países que conseguem melhor distribuir renda com o fundo público – tanto com o sistema tributário quanto com os gastos públicos – são os que têm gastos menos focalizados, mais universalizados, “para permitir que haja legitimidade do sistema tributário”.

Ir além

O economista brincou, dizendo que, diante do que vem se delineando para a gestão Temer, o país ainda terá saudades da gestão de Fernando Henrique Cardoso. Para ele, a gestão tucana era ruim, mas agora “é bem pior”.

“A gente não deve achar que voltou atrás para o governo Fernando Henrique. O debate aqui não é Estado contra mercado, não é desenvolvimentismo contra neoliberalismo. O debate que a gente tem fazer agora é democracia versus autoritarismo”, defendeu.

O professor mencionou que a direita tenta demonizar a política econômica, usa o argumento de que o Estado está quebrado e busca criminalizar a própria atividade política. “Falam: ‘olha, o Estado é só distorção, o único jeito é pelo mercado’. E a gente tem um discurso liberal voltando com força, que conecta mercado e democracia como se fossem a mesma coisa, mas a gente saber que mercado é antônimo de democracia, que mercado e capitalismo é contraditório com democracia. Mercado é o poder da grana, do dinheiro, não é o poder do voto”, colocou.

Nesse sentido, defendeu que é preciso combater, sim, o discurso liberal e defender a capacidade do estado brasileiro. Mas é preciso ir além.

“Sem dúvida, a gente precisa preservar minimamente a capacidade do Estado brasileiro, inclusive para, quando a gente superar esse governo ilegítimo e interino, ter uma capacidade pública de ação de redistribuição de renda, de regulação do mercado, de contenção das patologias geradas pela economia de mercado. Temos que impedir que essa capacidade seja desmontada, como em grande medida foi entre 1995 e 2002. Mas a gente precisa dar um passo além”.

Mexer no sistema tributário

Segundo o professor, o país não avançou mais no combate às desigualdades no último período, “porque conseguimos o que dava para ser feito nas franjas do pragmatismo da política econômica, entre 2003 e 2010, sem aumentar a porosidade do Estado para transformar a correlação de forças efetivamente e conseguir que a gente entrasse no centro da questão distributiva, que é o sistema tributário”.

O economista destacou que o Brasil conseguiu, durante as gestões petistas, distribuir renda “com o que dava”, que era o salário mínimo. “Super importante isso, mas precisa mexer no sistema tributário”, defendeu. E classificou como “uma vergonha” a isenção de Imposto de Renda nos Lucros e Dividendos, instituída no país em 1995, durante o governo Fernando Henrique. Entre todos os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), só o Brasil e a Estônia têm essa isenção.

“Isso gera uma distorção brutal na distribuição de renda no país”, avaliou, com críticas à regressividade do sistema tributário brasileiro, muito baseado em impostos indiretos, ou seja, que incidem sobre o consumo de bens e serviços e não sobre a renda e a propriedade.

“Com um Estado mais democrático, a gente muda a correlação de forças, consegue dar mais controle social e porosidade ao aparato público, para que a gente consiga fazer uma política econômica que efetivamente mude a estrutura produtiva”, defendeu.

Democracia x autoritarismo

Nesse sentido, o economista avaliou que não basta fazer o combate ao neoliberalismo, como se fazia na época de FHC. Para ele, o momento é de resistência e rearticulação.

“Uma parte dessa resistência já começou. Porque no fundo é de ajuste fiscal que se trata, quando o governador Alckmin tenta fazer a reformulação escolar e ela é barrada pelos estudantes, de baixo para cima. É esse tipo de resistência popular que a gente está vendo”, citou.

De acordo com ele, ainda que a legitimidade do governo FHC possa ser muito questionada, ele tinha ao menos o respaldo das urnas para implementar um programa liberal.

“Esse governo de agora é sem voto. Ele não tem nem a legitimidade eleitoral, quiçá a social. É muito difícil pensar que, sem profundo conflito social e sem mobilização, eles vão conseguir transformar a Constituição brutalmente, com uma PEC como essa, e mudar completamente a relação de Estado e sociedade no Brasil. Vai ter muito conflito”, previu.

Segundo ele, para implementar a plataforma Temer, será preciso maior autoritarismo, maior fechamento democrático e maior repressão. “O governo Alckmin sabe muito bem como é importante fazer isso, veja como ele tenta criminalizar os estudantes que estão se mobilizando contra ele. E ele passou esse know-how para o governo federal, junto com o seu secretário de Segurança Pública [Alexandre Moraes], que virou ministro da Justiça. É disso que se trata. É autoritarismo contra a democracia”.

O economista encerrou sua fala no evento opinando que, se é possível resistir a esse governo e fazer a democracia sobreviver a esse trauma, isso ocorrerá “construindo uma resistência de baixo pra cima a essas medidas trágicas”.

O seminário Austeridade contra a democracia foi promovido pela Plataforma Política Social e pelo Le Monde Diplomatique Brasil e contou com a participação também dos economistas Pedro Rossi, João Sicsú, além do assessor da Câmara dos Deputados, especialista em orçamentos e políticas públicas, Flávio Tonelli Vaz.