Feminismo das Preta: superar as dores e reescrever a história

“Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é discutida em público. Essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras raramente falam abertamente sobre isso” – Bell Hooks (Vivendo de Amor)

Por Bruna Rocha*, no Portal da UJS

Bruna Rocha

Neste 25 de julho, Dia da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, nós reafirmamos nossa palavra de ordem: Resistência. Continuamos resistindo porque as opressões de raça, classe e gênero continuam operando pesado sobre nós; continuamos resistindo, porque a feminização da pobreza tem cor e é a nossa; continuamos resistindo porque a precarização do trabalho aprofunda as desigualdades e estamos na base da pirâmide socioeconômica do Brasil. Nos defendemos do sistema capitalista, racista, e patriarcal, mas não só isso: vamos pra cima dele todos os dias.

Vamos pra cima quando entramos na universidade, vamos pra cima quando assumimos nossa identidade racial, elevando a autoestima junto com o black power; vamos pra cima quando rompemos com as relações abusivas e violentas imposta pela heteronormatividade compulsória; vamos pra cima quando construímos alternativas econômicas e nos livramos dos postos de trabalho herdados da era escravocrata; vamos pra cima quando construímos uma cultura solidária e afetuosa, ainda que nossos corpos sejam tratados como depósitos de desamor.

Pois bem, não é fácil ser mulher negra. Ainda é um desafio afirmar nossas especificidades no interior do movimento feminista, assim como acabar com o sexismo no movimento negro. Na disputa dos espaços gerais da política, encontramos muito mais dificuldades. Até pouco tempo, nossa presença no movimento estudantil era absolutamente marginal: quando estávamos, estávamos em posições subalternas, com pouca capacidade de influenciar nas decisões centrais.

Sempre que evocamos Helenira Resende enquanto forte referência de mulher preta na história da UNE, cuja trajetória de luta tanto nos inspira, lembramos o quanto ainda somos exceção na história da política. Quantas heleniras nem entraram na universidade? Quantas heleniras nem saíram da casa dos patrões, onde já haviam trabalhado sua bisavó, sua avó e sua mãe? Quantas heleniras chegaram a se aproximar da luta política, mas não conseguiram vencer as barreiras do racismo e do machismo, para se tornarem dirigentes?

O Brasil mudou nos últimos anos e, com a nova composição social da universidade brasileira pós-cotas, Reuni e Prouni, pudemos sonhar novamente sair da exceção e construir uma geração de Heleniras que dão uma cara nova à UNE. O 7º Encontro de Mulheres Estudantes foi exemplo disso: quase quatro mil mulheres de todos os cantos do país, em sua diversidade, puderam construir um encontro com muito protagonismo das mulheres negras, com paridade racial em todos os espaços, uma marca forte de reparação histórica em toda a programação. Um EME que apontou uma agenda pela democracia e contra os retrocessos, um EME que organizou e continua organizando milhares de vozes feministas em um só grito: FORA TEMER!

Sim! Queremos dizer que este governo golpista não nos representa, que a operação misógina contra a presidenta Dilma afeta as nossas vidas. Este modelo de gestão conservador e privatista, que quer nos empurrar oitenta horas semanais de trabalho e rasgar todos os direitos conquistados pelo povo brasileiro, só virá adoecer mais os nossos corpos – já por demais adoecidos. Adoecidos porque sofremos a perda dos inúmeros jovens negros assassinados pela Polícia e pelo Crime Organizado, adoecidos porque a carga de trabalho já desumana que nos é imposta, é um fator de risco cotidiano para nossas vidas, adoecidos porque solidão gera depressão e depressão também mata.

E por falar em solidão, que tema solitário! Minha impressão é que este parágrafo aqui só as mulheres pretas podem compreender. ‘Solidão da Mulher Negra’: um tema complexo que vem sido citado em inúmeros textões nas redes sociais, mas que ainda é pouco compreendido ou devidamente valorizado pelas estruturas do Estado. A hipersexualização de nossos corpos sempre vêm acompanhada por uma subvalorização de nossa subjetividade. Homens brancos nos buscam para satisfazer seu prazer sádico; homens negros não nos querem como suas companheiras, sobretudo se estiverem em condição de ascensão econômica; é altíssimo o índice de mulheres negras solteiras na idade adulta.

O modelo de relacionamento heteronormativo e tradicional com certeza não é a solução para a nossa solidão, mas quando as estatísticas apontam esta perspectiva racializada do amor, significa que precisamos, no mínimo, fazer esse debate.

Nós, mulheres negras na UNE, entendemos o feminismo como a principal ferramenta de cura para a nossa solidão. Contar com a solidariedade de nossas irmãs é um verdadeiro bálsamo para as dores mais profundas e seguimos nos curando, como fazíamos na época das chibatadas. Mas também queremos falar do direito de amar, constituir família (hétero ou homoafetiva), compartilhar sonhos e momentos felizes. Não teremos tempo para nos aprofundar nessa questão densa por aqui, mas sugiro o texto “Eu Mereço Ser Amada”, de Lívia Nathália, publicado este ano no blog Favela Potente.

Bell Hooks também trata da solidão da mulher negra com uma sensibilidade e poética emocionantes. Diante do cenário permanente da violência racista, em que muitas vezes o endurecimento de nossas sentimentalidades parecia a única alternativa para a sobrevivência, ela foi feliz ao afirmar: “O amor cura”. E por falar em amor, é importante destacarmos como nossas práticas sociais sempre estiveram marcadas pelo amor e pela solidariedade.

Muitas mulheres negras são feministas e não sabem que são, pois a linguagem política por vezes não conseguiu dialogar com realidade concreta de suas vidas. As mulheres negras exercitam o feminismo há muito tempo, através das redes de colaboração que mantém as favelas e as roças sustentáveis, práticas de sociabilidade contra-hegemônicas exercitadas no dia a dia com suas famílias e comunidades, da oralidade antissistêmica ao epistemicídio que o racismo impôs aos saberes afrodescendentes.

Estas práticas revolucionárias estão conectadas às experiências de mulheres indígenas, afro-indígenas em toda América Latina e Caribe. São muitos os traços que unificam estas mulheres, desde às opressões impostas pelo capitalismo global dos países dominadores sobre seus territórios, até as diversas tecnologias sociais de resistência desenvolvidas por estes povos, com grande protagonismo das mulheres. Luiza Bairros em um texto sobre Lélia Gonzalez , traz uma leitura incrível sobre esta conexão, vale a pena a leitura.

Infelizmente, mesmo atuando enquanto agentes de paz, somos alvos prioritários das violências do Estado. No Brasil, no ano passado, nos defrontamos com os dados deprimentes do Mapa da Violência: um aumento de 54,2% no feminicídio de mulheres negras, numa década em que o país conseguiu reduzir o assassinato de mulheres brancas. A violência policial e suas incursões permanentes nas periferias, o genocídio da juventude negra, o escamoteamento do sistema de saúde, as condições precarizadas de trabalho, são mais fatores de risco que ameaçam nossas vidas todos os dias. Sobreviver é nossa tarefa genuína.

Todo 25 de julho é uma oportunidade para afirmarmos nossa luta ancestral, nossa resistência cotidiana ao sistema patriarcal, racista, lgbtfóbico. Precisamos enraizar nas universidades, nos movimentos sociais e nas estruturas de poder, a responsabilidade histórica de empoderar mulheres negras, pois somos sujeitas centrais na construção de todas as sociedades em que estamos presentes. Se é verdade que “nossos traços faciais são como letras de um documento que mantém vivo o maior crime de todos os tempos”, passam por eles também as letras de justiça, amor e igualdade que continuaremos escrevendo com nossas próprias mãos nos territórios, nas redes, na vida mais orgânica do povo brasileiro, latino-americano e caribenho.

Nós, mulheres negras, RESISTIMOS.