Retrocessos causam retirada de dois filmes brasileiros do Oscar

A uma semana da estreia nacional de Aquarius, segundo longa-metragem de Kleber Mendonça Filho, a polêmica em torno do sucessor de O Som ao Redor dá sinais de que está apenas começando.

Aquarius - Divulgação

Alvo de uma campanha virtual nomeada com a hashtag “BoicoteAquarius”, iniciada em maio último, quando o filme foi exibido na mostra competitiva do Festival de Cannes, na França, Aquarius vem despertando mal-estar entre setores da sociedade brasileira que apoiam a manutenção do governo interino de Michel Temer na presidência da República.


Gabriel Mascaro tirou seu filme da disputa do Oscar


Na contramão, nesta quarta-feira (24), a indignação do diretor pernambucano aos que pedem boicote ao filme ganhou a adesão de dois colegas de ofício, o conterrâneo Gabriel Mascaro, de Boi Neon, e Anna Muylaert, de Mãe Só Há Uma. Ana e Mascaro, cujos filmes mais recentes (os títulos mencionados acima), também são candidatos naturais à pré-seleção do Oscar, anunciaram que não participarão da peneira realizada pelo Ministério da Cultura, em solidariedade a Mendonça Filho e a equipe de Aquarius.

Entenda a polêmica

A reação de patrulhamento foi motivada pelo protesto realizado em Cannes por Mendonça Filho, parte do elenco e da equipe do filme, contra o processo de impeachment de Dilma Rousseff, iniciado dias antes da première mundial de Aquarius no festival. Um dos 20 selecionados para concorrer à Palma de Ouro, o longa, rodado no Recife, marca o retorno de Sonia Braga aos cinemas brasileiros depois de duas décadas e já foi licenciado para ser exibido em mais de 60 países.


Equipe de Aquarius, junto ao diretor Kleber Mendonça Filho, protesta em Cannes contra o golpe no Brasil 


Também por questões político-ideológicas, o filme tem sido alvo de farpas nas páginas pessoais do Facebook e do Twitter do jornalista e crítico de cinema Marcos Petrucelli, que, em publicação recente nas redes sociais, admitiu ainda não ter visto o filme. Mesmo com esse histórico, rechaçado por Mendonça Filho, no decorrer do mês de julho Petrucelli foi nomeado como um dos nove membros da comissão que definirá os longas-metragens brasileiros que serão indicados pelo Ministério da Cultura para concorrer a pré-seleção do Oscar 2017 na categoria Melhor Filme Estrangeiro. Aquarius também acaba de ser classificado pelo Ministério da Justiça do governo interino como inadequado para menores de 18 anos, devido a cenas de “situação sexual complexa”.


Em apoio a Aquarius, Anna Muylaert também decidiu tirar seu longa da disputa
 

No último dia 19, incomodado com o que considera um comportamento persecutório de Petrucelli, o cineasta pernambucano publicou uma carta aberta em seu Facebook, para questionar a parcialidade do crítico (leia, na íntegra, abaixo). Entre outras rusgas apontadas no desabafo do diretor, dias após o protesto realizado em Cannes, o jornalista afirmou em seu Twitter: “Filme feito com dinheiro público vai a Cannes e não volta com prêmio algum. A mentira do golpe só serviu para expor o Brasil ao ridículo”.

A seguir, leia o comunicado da equipe de Boi Neon e a carta aberta de Kleber Mendonça Filho:

Boi Neon – Seleção brasileira ao Oscar 2017

Decidimos tornar pública a nossa decisão de não submeter o filme Boi Neon à comissão brasileira que indica o representante nacional ao Oscar 2017. É lamentável que o Ministério da Cultura, por meio da Secretaria do Audiovisual, endosse na comissão de seleção um membro que se comportou de forma irresponsável e pouco profissional ao fazer declarações, sem apresentação de provas, contra a equipe do filme Aquarius, após o seu protesto no tapete vermelho de Cannes. Aquarius foi o único filme latino-americano na competição oficial de Cannes, tendo sido aclamado pela crítica internacional. Diante da gravidade da situação e contrários à criação de precedentes desta ordem, registramos nosso desconforto em participar de um processo seletivo de imparcialidade questionável.

Carta aberta sobre a comissão brasileira do Oscar

por Kleber Mendonça Filho

Por quê estou defendendo ponto de vista ligado à participação na disputa pelo Oscar, esta “coisa de Hollywood”?. Esta pergunta me tem sido feita ao longo das últimas semanas. A questão aqui não é Oscar, Goya ou Framboesa. A questão é defender um processo democrático.

A escolha do filme para representar um país no Oscar deve ser estratégica para o cinema do país. As comissões montadas pela Secretaria do Audiovisual para a seleção de um filme devem respeitar o processo democrático executado pelo Ministério da Cultura, órgão federal que defende, estimula e divulga a cultura brasileira. Antes de discutir o Oscar, o que ele é e representa, é importante defender a seriedade dos processos de seleção públicos para que a comissão, escolhida democraticamente por entidades ligadas ao audiovisual, possa fazer o trabalho corretamente.

Como muitos já sabem, há duas semanas começou a circular a informação de que o jornalista paulista Marcos Petruccelli anunciara nas suas redes sociais o convite, realizado pelo Secretário do Audiovisual do atual governo interino, o pernambucano Alfredo Bertini, para compor a comissão que irá escolher o filme brasileiro para o Oscar.

Tecnicamente, Petruccelli seria um nome adequado. É jornalista da área de entretenimento, atua na Radio CBN, e acredito que o mesmo padrão técnico aplica-se aos outros nomes da comissão, pessoas ligadas ao cinema e à cultura, livres para tomar suas decisões.

No entanto, a questão que vem sendo levantada pela imprensa e redes sociais, e que me trazem a esse posicionamento, é que o jornalista em questão vem atacando, por questões políticas suas, já há três meses, Aquarius, filme escrito e dirigido por mim, e que o jornalista membro oficial da comissão já informou não ter visto.

O posicionamento estridente do Sr. Petruccelli em relação a esse filme parece ter como base a sua insatisfação pessoal com o protesto democrático e que terminou sendo divulgado em mídia mundial, realizado por dezenas de trabalhadores do audiovisual brasileiro em Cannes e pela equipe de Aquarius no grande festival, onde o filme teve sua première em competição. Foi naquele momento do mês de maio que, vale lembrar, o Ministério da Cultura passou alguns dias extinto – decisão do governo interino que depois voltou atrás, ressuscitando a pasta.

Se esse comportamento do jornalista já faz da sua participação nesta comissão algo constrangedor para a SaV, a questão torna-se ainda mais séria quando alguns desses ataques sugerem publicamente mentiras sobre a equipe de mais de 30 profissionais de Aquarius ter ido a Cannes “de férias”, suas estadias que teriam sido pagas pelo dinheiro público com orçamento (“no chute” do Sr. Petrucelli) de “500” euros por dia. Esse é um comportamento irresponsável num momento político onde fatos já têm sido tão ignorados e distorcidos na mídia.

Este jornalista, que deveria ter intimidade com a área na qual trabalha, não parece entender que um filme como Aquarius, feito em Pernambuco, existe através de uma união de profissionais do cinema, trabalhadores do audiovisual que fazem parte de uma comunidade criativa relativamente pequena.
Para completar, parte importante dessa mesma equipe também estava em Cannes para apresentar um segundo filme pernambucano (na prestigiosa Semana da Crítica), O Delírio é a Redenção dos Aflitos, de Fellipe Fernandes, assistente de direção de Aquarius. Caso raríssimo de dois filmes pernambucanos e brasileiros, em Cannes, em mostras de enorme prestígio. É motivo para celebrar dois trabalhos bem feitos, de maneira honesta.

Em Aquarius, nossa equipe trabalhou durante 15 semanas, sete de preparação e oito de filmagem. Esses profissionais quiseram celebrar o longa e o curta, em Cannes. Com a seleção dos dois filmes, essa equipe fez esforços pessoais para ir à França, pois Cannes que é um encontro mundial de profissionais de cinema.

Para que fique claro, com a exceção da minha pessoa e Sonia Braga (despesas pagas pelos co-produtores franceses) e três apoios publicados em Diário Oficial da Agência Nacional de Cinema publicados (previsto, reconhecido, oficializado para profissionais brasileiros a trabalho em grandes festivais internacionais de cinema) para integrantes da nossa equipe de produção, as mais de 30 pessoas da equipe (demais atores, técnicos, produtores) usaram seu próprio dinheiro, parcelando passagens aéreas e dividindo hospedagem. Não há nada de sinistro nisso. Sinistra é a má fé de um personagem primitivo com acesso à internet, sem senso de informação.

É triste ter que corrigir com fatos, puros e simples, o tipo de mentira destrutiva que um comunicador tem espalhado de forma tão irresponsável. E essa pessoa está numa comissão que deveria defender os interesses do país, para julgar um filme que ele mesmo vem caluniando da forma mais torpe imaginável.

É esse tipo de postura sombria que, infelizmente, tem marcado as discussões políticas no nosso país, transformando qualquer artista brasileiro em criminosos instantâneos, sem provas de nada, e onde a defesa democrática de um ponto de vista sobre o Brasil é algo a ser descartada com ódio e sem diálogo.

Esse ano, a Academia de Hollywood tomou medidas novas para democratizar a opinião e o poder de voto dos seus membros, convidando cerca de 600 novos nomes de todo o mundo (uma dezena deles brasileiros, incluindo Anna Muylaert, Rodrigo Teixeira e Lula Carvalho), mulheres e homens de múltiplas culturas. Ironicamente, é nesse momento que o processo de seleção de um filme brasileiro para essa mesma Academia comece já tão errado.

Independente da escolha dessa comissão, Aquarius estará nos festivais de Toronto e Nova York em setembro, depois da estreia em Cannes com recepção espetacular da mídia internacional, ganhar o festival de Sydney e contar já com distribuição em mais de 60 países, em todas as plataformas (cinema, TV e VOD, incluindo Netflix em quatro territórios incluindo Ásia). É um filme sobre amar as pessoas, estar com elas. É também sobre a defesa de um ponto de vista, de uma opinião baseada em fatos e em experiência de vida através do respeito à história de cada um, e como isso choca-se com o poder. Ou seja, Aquarius está em casa.

Kleber Mendonça Filho
Roteirista e Diretor de Aquarius, filme brasileiro