Abate neoliberal, democracia e juventude em tempos de rebanho

Para os jovens brasileiros nesse 7 de setembro de 2016, ano do golpe.

Por Márcia Tuburi*

O vazio do pensamento, da emoção e da ação é o resultado de um programa político e econômico que visa produzir escombros humanos e não pessoas. Subjetivamente empobrecidos, nos tornamos mansos, prontos para o abate neoliberal. Ainda não descobrimos a pergunta transformadora que poderia nos livrar dessa resposta. Ninguém até agora conseguiu dizer de maneira convincente por que nos contentamos em ser “gado”.

Muitos dirão que fomos transformados em gado e que aqueles que se negam a sê-lo sofrerão as consequências. Somos criados como gado e amansados desde cedo. A educação, a família, as instituições como um todo, preparam indivíduos para isso. Pode-se ler de Marx a Adorno, de Nietzsche a Foucault, de Maquiavel a Simone de Beauvoir, para meditar nas estratégias que fazem com que alguém acredite que é melhor fazer parte daquilo que, há muito tempo, vem sendo chamado de “rebanho”. O tema é constante na crítica filosófica, mas em certas épocas sentimos na pele aquilo que em tempos menos cruéis parece só teoria.

Curioso é que nos tempos mais sombrios os argumentos refletidos e pensados, e a inteligência, estejam em baixa e o autoritarismo, e a burrice, estejam em alta. O rebanho não gosta de ideias complicadas e para continuar dócil é preciso agradá-lo com seu próprio veneno.

Cortar o mal pela raiz

Vivemos em um tempo em que as pessoas têm mais respostas do que perguntas. Mesmo assim, vale a pena dedicar o pensamento a saber que perguntas nos ajudariam a despertar a capacidade de pensar de pessoas dominadas pelo vazio do pensamento, da emoção e da ação que seguem dóceis, na posição de rebanho, prontas sem saber para o grande abate neoliberal.

O caso da população jovem é preocupante nesse cenário. Cresce o número de jovens mortos nas periferias. Sobretudo, e isso não é nenhuma novidade, mata-se os jovens negros. Sabemos que matar jovens corresponde a “cortar o mal pela raiz”. A ideologia neoliberal é a ideologia do abate que permite justamente cortar o mal pela raiz. Se você for considerado o mal para o sistema, melhor cuidar-se mais. O mal, a propósito, resume-se em não concordar, em negar, em rejeitar, em ser e agir de modo diferente. Os jovens ainda não “formados”, ainda “em formação”, precisam ser moldados – ou “de-formados”, como costumamos dizer vulgarmente – segundo leis de uma sociedade que espera deles o mais do mesmo.

Pense em qual é a sua diferença e você saberá qual a probabilidade de ser descartado pelo processo neoliberal. A diferença é estética e econômica e é usada como causa – justa, nos moldes de uma mentalidade de assassinos – para o extermínio a curto, médio ou longo prazo.

O impronunciável

O abate neoliberal não é anunciado. Seu fundamento é algo impronunciável. Estamos numa época em que é preciso falar manso, ser manso justamente para sustentar esse impronunciável. Assim se esconde melhor o que deveria ser escancarado. Ora, o que deveria ser visto por todos é que o fundamento do neoliberalismo é o extermínio de quem não cabe no mercado.

Lembro de um jovem que foi abandonado pelo pai quando era ainda uma criança de colo. Um dia ele disse que era muito fácil colocar uma pessoa nesse mundo e depois dizer “se vira aí”. O ressentimento gerado nesse garoto era imenso e incontornável.

O neoliberalismo como ideologia naturaliza um abandono como esse. Ele diz para todos “se virem aí”. Ao mesmo tempo, não diz isso em nome da liberdade das pessoas, como alguns poderiam tentar argumentar, mas o diz para criar a ilusão individualista e meritocrática. Cada um deve acreditar que dá conta de viver nesse mundo sozinho, que deve competir com o próximo e colaborar com o sistema. Assim, o neoliberalismo garante tanto a fragilização das pessoas, quanto a fragilização da política democrática, aquela que todos fariam inventando algo de comum e justo para todos. Essa política democrática seria o antídoto contra o neoliberalismo.

Ora, onde há neoliberalismo não há democracia. Se as pessoas estão sozinhas elas não fazem política no sentido da democracia, aquela política que todos fariam juntos inventando algo de comum e justo para todos. E se as pessoas não fazem política elas não mexem com o poder. As coisas continuam como estão, conserva-se o poder na mão dos que o tomam à força todos os dias pelos meios mais sórdidos e desumanos. Silêncio sobre o significado disso tudo é fundamental para que o jogo dê certo e surjam os que foram capazes de sobreviver como heróis.

É preciso esconder que eles sobraram com vida.

Fazer política é criar voz

Assim é que o abate precisa ser manso e, no limite, sedutor. Não para todo mundo. Quem sofre, contudo, nem sempre tem tempo de gritar. Mesmo assim, quem morre não faz alarde e é fácil matar aqueles que não tem voz.

Sabemos que fazer política é criar voz. A voz chama a atenção. O poder não vive sem ela e sem a prontidão por ela criada. Justamente por isso o poder adora manipular as vozes, coisa que sempre fez muito bem usando os meios de comunicação. É por meio deles que o poder manipula as atenções e as toma para si, mas não para denunciá-lo e sim para cooptar quem estiver meio perdido politicamente.

Para quem não se deixa levar, o poder reserva seu covarde terrorismo de Estado que vai da polícia truculenta militarizada, pronta para matar jovens negros ou jovens manifestantes, ao desmantelamento das instituições que protegeriam os indivíduos. É importante convencer os jovens de que devem ficar mansos do lado dos que tem poder, senão correm risco de vida. Dá para ficar manso atrás de uma tela de computador xingando quem foi politizado de modo crítico. A covardia faz parte da mansidão e ajuda a sustentá-la. A mensagem subliminar que o neoliberalismo envia aos jovens é sempre a mesma desde sua pré-história.

Os movimentos de jovens imbecilizados que surgem no Brasil e no mundo são sinal disso. No fato de que a maioria da juventude ainda lute contra esse estado de coisas, que haja tantos jovens nas ruas contra o golpe, que a ocupação das escolas tenha sido entre a grande alegria política nos últimos tempos, é um sinal de que pensar democraticamente, contra o neoliberalismo que nos suga mais uma vez nesse momento, faz sentido e é urgente.