Até quando vamos negar que existe cultura de estupro no Brasil?

Na manhã desta quarta-feira (21), a notícia de que 37% da população brasileira concorda com a frase “Mulheres que se dão ao respeito não são estupradas”, foi divulgada por vários veículos e encheu as redes de indignação.

Por Juliana Gonçalves* e Helena Borges**, The Intercept Brasil

Cultura do Estupro - Foto: Ana Carolina Porto/Flickr/CC

O dado, divulgado em pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), se juntou a uma assustadora lista que, só em setembro, reúne:

  • Um pedófilo dizendo que “todo pai deve tirar a virgindade da filha”
  • Um promotor que humilhou uma adolescente estuprada pelo próprio pai
  • Uma sessão sobre violência contra a mulher obstruída por movimentos de extrema direita na Câmara dos Deputados
  • Um médico preso após abusar sexualmente de paciente em Florianópolis
  • Um pai preso por estuprar a filha de nove anos em Cuiabá
  • Uma onda de estupros amedrontando mulheres no Recife
  • Uma cartilha com orientações para mulheres evitarem ser estupradas
  • Um “maníaco sexual”que fez quatro vítimas em São Paulo
  • Um professor indiciado por estupro de aluna de 13 anos na Bahia
  • Mais uma investigação de estupro coletivo no Rio de Janeiro

Seguindo a lógica dos resultados apontados pela pesquisa, para uma parte significativa da população, casos como esses deveriam ter sido evitados pelas vítimas.

“Deem respeito para serem respeitadas”, proferiu o deputado Marco Feliciano (PSC-SP), em junho, durante reunião da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos deputados. Ele mesmo acusado de tentativa de estupro e agressão. O político paulistano negou, na mesma ocasião, a existência de uma cultura do estupro.

Mulheres se manifestam contra a cultura do estupro em protesto no Rio de Janeiro, em junho. Foto:Bruna Freire.



Essa é a ilustração perfeita de um ciclo destrutivo: mergulhada em uma cultura machista, a população elege políticos alinhados com seu pensamento. O resultado é a adoção de posturas e políticas públicas que minimizam a gravidade da violência e os danos causados às mulheres, enfraquecendo (e até ridicularizando) as reivindicações feministas. Naturalizada, essa visão é colocada em prática até mesmo por profissionais que deveriam ajudar as vítimas. Não por acaso, Feliciano teve 398.087 votos apenas em São Paulo, em 2014.

Em meio a essa mentalidade, vítimas seguem culpadas e caladas. São mulheres como a funcionária pública que afirmou se sentir responsável pelo próprio estupro, ou como a adolescente carioca de 16 anos que a se trancou no quarto e não contou a ninguém sobre o estupro coletivo que sofreu.

“Ou criamos reformas estruturais ou vamos continuar enxugando gelo.”

A pesquisa revela também que 85% das mulheres do país têm medo de serem vítimas de agressão sexual. Ao mesmo tempo, há uma falta de confiança na estrutura que deveria proteger essas vítimas: 53% da população acredita que as leis brasileiras protegem estupradores e 50% das pessoas entrevistadas não acreditam que a polícia militar esteja bem preparada para atender mulheres vítimas de violência sexual. Talvez haja alguma explicação em episódios como este: os 27 secretários de segurança do país, responsáveis pela coordenação das polícias militares, se reuniram para discutir estupro e, entre eles, havia apenas uma mulher.

Segundo Daniela Gusmão, presidente da OAB Mulher no Rio de Janeiro, o despreparo dos profissionais da polícia e da justiça é um reflexo da cultura de estupro do país: “O efetivo da polícia é formado por homens e mulheres educados dentro de anos e anos de cultura machista. O que a gente tem na PM são brasileiros. Ou criamos reformas estruturais ou vamos continuar enxugando gelo. As mudanças precisam vir da escola, mas parece que estamos caminhando ao contrário ao debater escola sem partido, sem discussão ideológica.”


Mulheres se manifestam contra a cultura do estupro em protesto no Rio de Janeiro, em junho. Foto:Bruna Freire.

Enquanto vítimas de estupro forem humilhadas pelas mesmas pessoas que deveriam lhe atender e ajudar, tendo de ouvir frases como “pra abrir as pernas e dar o rabo pra um cara tu tem maturidade”, como uma menina de 14 anos no Rio Grande do Sul ouviu do promotor de Justiça Theodoro Alexandre da Silva Silveira, vai haver subnotificação dos casos – e pouca mudança.

Esse é o quadro brasileiro no ano em que a Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, faz dez anos:

Estima-se que o número de denúncias de estupro represente apenas 35% do total de casos. E mesmo sendo um percentual baixo, os números já são extremamente alarmantes: a cada 11 minutos, uma mulher é estuprada, resultando 47.600 casos registrados em 2014.

E ainda tem gente que diz não existir uma cultura de estupro no Brasil.