Ideologia política e literatura (Lenin diante de Tolstói)

O autor deste texto é o grande pensador marxista espanhol Adolfo Sanchez Vásquez (1915 –2011). Ele se exilou no México em 1939 após a derrota da República espanhola pelas tropas fascistas de Francisco Franco. Foi professor na Universidade Nacional Autônoma do México, sendo autor de inúmeras obras sobre filosofia, literatura e arte; entre os livros publicados no Brasil destaca-se “As idéias estéticas de Marx” (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968).

Por Adolfo Canchez Vazquez

Tolstoi e Lenin - Wikicommons

A tarefa de Lênin diante de Tolstói

Entre 1908 e 1911 Lênin escreveu uma série de artigos sobre Tolstói. Diversos motivos e circunstâncias o levaram isso: os oitenta anos comemorados pelo grande romancista («Tolstói, espelho da Revolução russa); sua morte («León Tolstói»); as tergiversações liberais sobre a obra tolstoiana («León Tolstói e o movimento operário contemporâneo»); a necessidade de distinguir a ideologia tolstoniana e a do proletariado revolucionário («Tolstói e a luta proletária»); e, finalmente, o estudo sobre sua origem social e o papel de suas ideias («León Tolstói e sua época»)1.
Apesar da diversidade de circunstâncias e motivos, estes artigos tratam de um mesmo objeto, a ideologia de Tolstói, e perseguem o mesmo fim: esclarecer sua natureza e função.

Os acontecimentos envolvidos com o aniversário e a morte de Tolstói, que suscitaram os dois primeiros artigos de Lênin (que são os mais importantes) adquirem um profundo significado político-nacional na Rússia czarista. A imensa personalidade artística de Tolstói, unida à implacável crítica da autocracia que se vê em sua obra, deu lugar a que, por ocasião daqueles acontecimentos, as diferentes forças sociais tentassem expor sua posição política em formas diversas: artigos e declarações à imprensa, conferências, manifestações estudantis de rua, etc, etc, etc.

Os artigos de Lênin examinam a obra de Tolstói levando em conta o significado político primordial que, a seus olhos, apresentou nos últimos anos de sua vida, no momento de sua morte e depois dela.

Lênin não assume neste caso o papel de um crítico de Tolstói. Não pretende, de modo algum, expor as razões do valor literário de sua obra, que é amplamente reconhecido. Lênin o aceita e não trata de explicá-lo ou fundamentá-lo. Menos ainda se aproxima de Tolstói como o faria um teórico da literatura que estudasse sua obra para investigar como nela funcionam certas categorias.

Lênin, por exemplo, não tratou de explicar a maneira como as idéias estão no texto tolstoniano (problema de importância teórica fundamental), mas sim de desentranhar suas contradições internas e sua su relação com o contexto.

Finalmente, não pretende – como querem autointitulados críticos marxistas – fazer uma crítica sociológica ou histórica de Tolstói para deduzir dela certos julgamentos.

O que interessava a Lênin era o olhar à realidade histórico-social, era buscar na obra de Tolstói o solo fértil dessas ideias.

Lênin não se aproxima de Tolstói como um crítico ou um teórico da literatura, muito menos como um sociólogo ou historiador. Assim, como enfrenta Tolstói em seus artigos? Ele o olha como político, ou mais exatamente como um político revolucionário. Lênin é aqui o dirigente que reage diante de um acontecimento político – a obra de Tolstói funcionando como tal em circunstâncias concretas – e que reage por sua vez tendo em conta a projeção social das ideias tolstonianas, assim como as confusões e tergiversações que são tecidas em torno delas. Trata por isso de esclarecer seu verdadeiro significado ideológico, seus vínculos com a realidade e a função social que cumprem ou possam cumprir.

Esta tarefa é perfeitamente legítima em um dirigente revolucionário se se leva em conta que se tratam de ideias que exercem um efeito prático na política. E não só é legítima: é necessária, porque o significado ideológico da obra de Tolstói não é transparente ou unívoco. Suas ideias se apresentam com certa ambivalência, carregadas de luzes e sombras, com lados positivos e negativos. Por isso alguns falam, unilateralmente, de um Tolstói reacionário, e outros de um Tolstói liberal e inclusive revolucionário.

As contradições da obra de Tolstói

De certa forma, estes diversos Tolstói existem porque, na unidade de sua obra, existem estes aspectos contrários. E isto é o primeiro aspecto sobre o qual Lênin chama a atenção. Isto é, o caráter complexo e contraditório da obra tolstoniana.

Lênin começa por indicar a existência de quatro contradições:

a) entre o artista genial e sua crença religiosa;
b) entre o protesto sincero, vigoroso e franco, e o “tolstoniano” que dá golpes de peito e trata de se autoaperfeiçoar moralmente;
c) entre a crítica implacável da exploração capitalista e a pregação da não violência, e
d) entre o realismo lúcido e a pregação da religião e do clericalismo.

Lênin enfatiza, assim mesmo, que se trata de contradições nas ideias que, por sua vez, procura esclarecer.

Deve ficar claro, portanto, que não só o pólo positivo dessas contradições (protesto sincero, crítica implacável) faz parte do corpo verbal da obra mas também, no pólo oposto, as ideias de autoaperfeiçoamento moral como solução, pregação da «não violência», da religião e do clericalismo.

Essa ideologia que vai de um pólo a outro, da crítica ao obscurantismo, ou do protesto à submissão é, por conseguinte, como assinala Lênin, contraditória. E, ao mesmo tempo em que se apresentam plasmadas, materializadas literalmente, se tratam, pois, de contradições imanentes à obra. Nela estão, nela se fazem patentes, e nela Lênin as descobre.

No plano contraditório das ideias, o valor estético ou literário da obra está a salvo. Mais exatamente: ao político não são problema. Lênin fala de contradições em uma obra genial cujo valor literário ele aceita como um fato, sem colocar-se o falso problema de em que medida esse valor depende da ideologia.

É certo que, em três ocasiões, Lênin foi explícito sobre isto, ao se negar a submeter o valor da obra à ideología que a informa. Recordemos a este respeito:

a) quando assinala que a ideologia populista não impediu que escritores desta filiação traçassem quadros verídicos (isto é, com valor estético realista) da vida russa;
b) quando en 1901, em carta a Gorki, disse que inclusive de uma filosofía falsa um grande artista pode tirar partido, e
c) quando depois da revolução de 1917, em plena guerra civil, chegou a considerar o livro de um escritor “branco”, contrarrevolucionário, Averchenko, como “um livro de talento».

No caso de Tolstói não se trata simplesmente de uma ideologia reacionária, embora tenha aspectos regressivos, nem de uma ideologia revolucionária, embora tenha seus lados positivos. Trata-se, como disse Lênin, de uma ideologia contraditória. O problema colocado não é, portanto, o de como pode ser feita uma obra literária de alto valor a partir de certa ideologia, mas o de qual é a natureza desta e que função desempenha em uma obra cujo valor literário Lênin admite firmemente, valor que não pode ser questionado pela ideologia que aquela obra incorpora.

O problema que interessa a Lênin, em definitivo, é o do valor político da obra de Tolstói, nas circunstâncias dadas. Não se pode dizer – e Lênin não o diz -, invertendo a Plekhanov, que a obra assume um valor político em virtude de seu elevado valor literário. Podeia se juntar, em favor desta tese que justamente, por se tratar de uma obra valiosa como é reconhecida amplamente, interessa sua apropriação política em outra direção. Isso não deixa de ter um grão de verdade, mas as verdades de grau podem ser transformadas em seu contrário.

Certamente, se o aniversário e a morte de Tolstói se transformaram em acontecimentos políticos, isso se deu por tratar-se de um artista genial, e isto não passa inadvertido a Lênin.

Mas o cerne da questão não está aí, mas no fato de que a obra de Tolstói pode ser apropriada de diversas maneiras, ou admite várias leituras políticas no marco do reconhecimento comum de sua genialidade ou importância estética universal.

Lênin fala, a este respeito, de três leituras: a oficial (do Governo), a dos liberais e a do proletariado revolucionário (precisamente a que ele pretende levar a cabo). Pois bem, é a ideologia tolstoniana, e particularmente seu caráter contraditóio, que determina as diversas leituras políticas de sua obra. Por isso, ao destacar o valor político da obra de Tolstói, Lênin fixa a atenção no conteúdo de suas ideias, que são as ideias de um artista genial.

O problema de como o talento artístico tolstoniano conseguiu materializá-las, dar-lhes corpo em uma obra de alto valor literário, não é um problema propriamente político ou ideológico-político, mas de crítica ou teoria literária. Não é que Lênin ignore – e menos ainda exclua – a necessidade deste enfoque; é um problema muito importante, mas não é seu.

As ideias de Tolstói são contraditórias, mas por serem ideias de um artista em sua obra, ideias encarnadas, que receberam uma forma. Lênin, portanto, não pode ignorar que quando fala da ideologia tolstoniana não se refere a uma ideologia em estado puro, à margem da obra. Trata-se de uma ideologia formada que, portanto, só se manifesta na obra já produzida ou criada.

Até agora vimos que as contradições que Lênin assinala estão nas ideias. Mas devemos ter presentes outras duas contradições que ele também aponta e que, aparentemente, refutariam o que vimos afirmando.

Lênin sublinha, com efeito, estas duas contradições:

De um lado, é um artista genial, que não só produziu cuadros incomparáveis da vida russa, mas obras de primeira ordem na literatura mundial. De outro lado, é um latifundiário possuído por um fanatismo cristão…2

“De um lado, o realismo mais lúcido, que arranca todas e cada uma das máscaras; de outro lado, a pregação de uma das coisas piores que existem sob o céu, ou seja, a religião”3.

Poderiamos pensar estar, em ambos os casos, diante de contradições não internas mas externas à obra: entre o artista genial e o latifundiário fanático; entre o realismo lúcido e a pregação religiosa. Mas, na verdade, não se trata de contradições entre a obra e algo exterior a ela (certas ideias), mas entre a obra genial e seu realismo lúcido, por um lado, e o latifundiário que se faz presente nela por seu fanático cristianismo e pregação da religião, por outro.

A contradição se establece entre a obra, que dá certa visão da realidade («quadro incomparável da vida russa» por seu «realismo lúcido») e certas ideias sobre ela (as do latifundiário fanático). Mas esta contradição deixa de ser exterior quando se encontrem não em estado puro, ou à margem da obra, mas como ideias que receberam uma forma artística e que só existem, em Tolstói, em contradição com outras ideias.

Por ter recebido uma forma artística, seu status meramente ideológico é rebaixado; isso ocore também por se encontrar em uma relação de contradição com outras ideias; seu status ideológico particular pode ser rebaixado levando em conta o peso específico que, na ideologia da obra, podem tomar as ideias opostas: protesto, crítica implacável, etcétera. Mas não se trata de isolar as ideias positivas – como faz uma benévola leitura revolucionária -, nem de separar as negativas, reacionárias, para submeter Tolstói a uma leitura de sinal contrário; mas de ver suas ideias, e isso não cansamos de reiterar, encarnadas em sua obra em uma relação de contradição. E isto é cabalmente o que Lênin faz.

Nestes termos, Tolstói é um artista genial não só graças a seus elementos ideológicos progressistas, como uma crítica simplista pretendia fazer crer, em pendant com a crítica reacionária de seu tempo, que vincula sua grandeza artística a suas ideias místicas. Mas também não seria justo dizer que a obra de Tolstói existe e vale a pesar de seus lados reacionários, pois estes não podem ser separados dos elementos ideológicos positivos que formam, com eles, uma totalidade (a obra) complexa e contraditória.

Sem embargo, o fato de que na ideologia tolstoniana encontramos as contradições que Lênin assinala claramente, não significa que essa ideologia seja – e como poderia sê-lo? – neutra.

Tolstói como espelho da revolução russa

As ideias de Tolstói, sua obra enquanto encarnação delas, respondem a uma realidade histórica e social: a que se desenvolve no processo que ocorre na Rússia czarista de 1861 (abolição da servidão) a 1905 (primeira Revolução russa). E frente a esta realidade, como Lênin nos mostra, Tolstói toma posição.

Até agora, vimos Tolstói em seu texto, nas contradições imanentes à sua obra. Agora, Lênin o apresenta em seu contexto (em relação com certa realidade exterior). Temos consequentemente três tipos de questões nas quais se entrelaçam uma e outra relação:

Primeira: qual é o tipo de relação entre a obra de Tolstói (e, por conseguinte, a ideologia entranhada nela) e a realidade (processo histórico de 1861 a 1905)?
Segunda: qual é o ponto de vista ideológico que Tolstói, como artista, assume em sua obra?
Terceira: que contribuição traz o conhecimento dessa realidade, desde o ponto de vista em que o autor se coloca?

À primeira questão Lênin responde já no título de seu primeiro artigo: «León Tolstói, espelho da Revolução russa». O título original em russo («Lev Tolstoy, kak serkalo russkoi revolutsii») traz um «kak» (como) que, podendo ser omitido em poruguês ( e em espanhol), introduz um matiz que escapa à sua tradução. Se Tolstói é considerado «como» espelho da Revolução russa, isto significa, com efeito, que sua obra aparece no prisma de Lênin – isto é, do político ativo, militante – “como” um espelho da revolução. Com isso não se descarta, deliberadamente, que a obra de Tolstói responda ou não a esta intenção do autor, ou que a obra possa ser posta em outros planos, como objeto de outras análises, de um juizo estético, por exemplo, independentemente de que a éste se chegue através de uma análise histórico-social.

A obra de Tolstói se apresenta, aos olhos de Lênin, sejam quais forem as intenções de seu autor, e independentemente de outras análises possíveis, “como” um espelho da Revolução russa.

De imediato sublinhemos que o exame leniniano da obra tolstoniana e, particularmente, de suas contradições, não se desenvolve em abstrato mas em relação a determinado periodo histórico, periodo de sobrevivência do regime de servidão e desenvolvimento do capitalismo:

“A atividade de Tolstói corresponde principalmente a um período da história russa compreendido entre dois pontos cruciais dele, entre 1861 e 1905. No transcurso deste período, as marcas do regime de servidão e suas sobrevivências diretas penetravam de parte a parte toda a vida econômica (particularmente no campo) e política do país. Ao mesmo tempo, esse período foi precisamente um período de desenvolvimento acelerado do capitalismo desde a base da sociedade e de sua implantação a partir do alto”4.

Lênin põe a obra de Tolstói em relação com a revolução que culmina nesse período e com a ideologia que faz parte do processo que conduz a ela e que, por sua vez, na revolução que encerra este período, se mostra em toda sua nudez.

Os artigos de Lênin, particularmente os dois primeiros, constituem uma ocasião preciosa para abordar um problema que para ele tem uma dimensão não só teórica, mas também prático-política. Trata-se de esclarecer o caráter e o conteúdo da revolução, a ideologia de suas diversas forças e perspectivas. A obra de Tolstói se apresenta a Lênin com esta dimensão política justamente por se achar em relação com um processo histórico que culmina em uma prática política revolucionária.

O título do primeiro artigo caracteriza a maneira especular com a qual Lênin relaciona a obra de Tolstói com a revolução: reflete-a como um espelho.

Alguns estudiosos deste artigo apressaram-se a ver nele uma aplicação da «teoria do reflexo», exposta por Lênin poucos meses antes em seu Materialismo e empirocriticismo, à criação artistica. Mas o próprio Lênin se encarregou de negar, naquele artigo, a tendência de simplificar a relação especular entre a obra artística e a realidade histórica que ela reflete.

“À primera vista pode parecer estranha a associação do nome do grande escritor à revolução que – é evidente – ele não compreendeu – e de que – também é evidente – se isolou por completo. Por que chamar espelho ao que, sem dúvida, não reflete bem os fenômenos?”5

Ocorre que Tolstói, que não comprende a revolução e se coloca à margem dela, escreve uma obra que é o espelho dessa revolução. Mas fica também claramente assentado que Tolstói não a reflete bem. Portanto, espelho para Lênin não é sinônimo de reflexo fiel ou completo da realidade. Entretanto, com isso não se quer dizer, tampouco, que o espelho só seja concebido em um sentido oposto, a saber, como um reflexo falso ou totalmente deformado do real.

Para resolver a dificultade posta por um «espelho que não reflete bem a realidade», Lênin apela para a especificidade da obra de arte, neste caso realista, isto é, a um reflexo específico, artístico.

Que este «espelho», a obra de Tolstói, «não reflita brm a realidade» é fácil para Lênin demonstrá-lo; basta-lhe assinalar as contradições nas ideias que enumera. Tolstói não pode refletir bem o que não compreende e, na verdade, diz Lênin, não entende a realidade: o caráter da revolução, suas forças motrizes, nem os meios adequados para alcançar seu êxito. (Já veremos que, a partir do ponto de vista ideológico adotado por Tolstói, a revolução não podia ser entendida.).

Mas para Lênin uma coisa é compreender a revolulção – o que exigiria que Tolstói passasse de suas posições ideológicas socialistas cristãs ou utópicas às do socialismo científico – e refleti-la, portanto, em toda sua verdade e plenitude. E outra coisa é proporcionar certo conhecimento, mesmo que limitado, de alguos aspectos dela. E este último aspecto é justamente o que Lênin admite com respeito a Tolstói quando diz: «Todo grande artista de verdade reflete em suas obras, se não todos, alguns dos aspectos essenciais da revolução»6.

Por isso dizer que Tolstói é espelho da revolução significa, em primeiro lugar, que é um espelho contraditório, de contradições nas ideias, denúncia apaixonada da exploração e crítica da autocracia, ao lado da pregação da não resistência ao mal; em segundo lugar, é um espelho das contradições reais, pois na obra de Tolstói se refletem as contradições da época, da realidade histórica.

A Revolução russa – diz Lênin -é um fenômeno sumamente complexo e contraditório, e a obra de Tolstói permite que seja vista assim.

Entre as contradições nas ideias de Tolstói e as contradições reais, históricas, existe uma vinculação. As primeiras não se desenvolvem num plano abstrato, puramente lógico, mas refletem as contradições próprias da primeira Revolução russa. A crítica tolstoniana da ordem social e a pregação da «não violência» refletem o estado de ânimo de forças sociais reais, que é determinado por sua vez por condições históricas concretas:

“Tolstói refletiu o ódio acumulado, o maduro afã de uma vida melhor, o desejo de libertar-se do passado, a falta de maturidade dos sonhos do camponês, sua falta de cultura política e sua indecisão para realizar ações revolucionárias. As condições histórico-econômicas explicam a necessidade de surgimento da luta revolucionária de massas, sua falta de preparação para a luta e a não resistência ao mal, que foi uma causa importantíssima da derrota da primeira campanha revolucionária”7.

Assim pois a obra de Tolstói é um espelho contraditório de ideias e, portanto, de contradições reais. A crítica do regime e a pregação da não resistência se contradizem entre si, mas por sua vez, refletem contradições que existem na própria realidade.

O mérito de Lênin está em haver posto de relevo com a imagem do espelho essa relação de correspondência entre a obra de Tolstói e a Revolução russa. Por isso, quando Tolstói se contradiz em suas ideias, não se trata, como adverte Lênin, de contradições que se dão apenas no plano de seu pensamento:

“As contradições nas ideias de Tolstói são não só contradições em seu próprio pensamento, mas um reflexo das complexíssimas e extremamente contraditórias condições, influências sociais e contradiçõe históricas que determinavam a psicologia das diferentes classes e camadas da sociedade russa na época posterior à reforma, mas anterior à revolução”8.

Vemos pois que Tolstói por um lado reflete as condições reais que geram sua ideologia contraditória, e ao mesmo tempo exprime esta ideologia e se torna intérprete dela. Com isto passamos a responder à segunda questão colocada: qual é o ponto de vista ideológico que Tolstói assume como artista em sua obra?

Tolstói submete o capitalismo a uma crítica implacável e protesta energicamente contra a autocracia, mas ao mesmo tempo prega a não resistência ao mal. Trata-se de uma ideologia determinada – como disse Lênin – por peculiares e complexas condições históricas: a ideologia própria das massas camponesas. Critica e denuncia, mas o faz, segundo Lênin, como intérprete dos sentimentos e das aspirações do camponês que ve como o capitalismo o arruína e se apodera das terras da comunidade patriarcal, e não desde o ponto de vista do movimento operário contemporâneo e do socialismo científico, ao qual permanece estranho. O ponto de vista de Tolstói, isto é, o que faz de sua obra um espelho contraditório, é para Lênin o de um camponês patriarcal e ingenuo.

«As obras de Tolstói exprimiram precisamente a força e a debilidade, a potência e a limitação do movimento das massas camponesas»9.

Mas isso, longe de o impedir de refletir a revoluão, o permitiu -graças a seu talento artístico excepcional – captar alguns traços essenciais da revolução. E, assim, passamos à resposta à terceira questão acima formulada: o que Tolstói traz, com sua obra, a partir de seu ponto de vista ideológico, ao conhecimento da revolução da qual é «espelho» e que Lênin caracteriza assim mesmo como «uma revolução burguesa-camponesa»? E, sobretudo, o que traz para a luta revolucionária do proletariado contra o capitalismo?

A ideologia tolstoniana na obra

Referindo-se a Tolstói, Lênin disse que «todo grande artista de verdade reflete em suas obras senão todos ao menos alguns dos aspectos essenciais da revolução»10.

Entre estes aspectos se acham suas debilidades e defeitos, o comportamento e a ideologia das massas camponesas. Mas nesta caracterização da obra de Tolstói pelo conhecimento que proporciona sobre os aspectos essenciais da revolução é preciso ter presente o papel que desempenha a ideologa patriarcal camponesa, que faz parte dessa obra.

Dizer, portanto, que Tolstói é espelho da revolução, da qual reflete alguns aspectos esenciais, é falar da ideologia na obra já formada pelo trabalho de um «grande artista de verdade».

Insistamos neste ponto. Lênin não se coloca o problema, que certamente não era seu, da estrutura da obra de Tolstói, da forma que as ideias adotam nela, de como e com que recursos, ou em virtude de que trabalho artístico, ele consegue materializá-las. É inquestionável que para Lênin se trata sempre da ideologia na obra tal como existe, e forma corpo com ela.

Antes de Tolstói existia, na verdade, o camponês, o mujique, e também uma ideologia camponesa. Mas como disse Lênin em certa ocasião a Gorki, referindo-se a Tolstói: «Que gigante! Que colosso! Este sim era um artista… E, sabe você o que tem de assombroso também? Antes desse conde não existiu na literatura nenhum mujique autêntico»11.

Isto é, o que assombra a Lênin é esta capacidade tolstoniana de criar aquilo que antes não existia na literatura, criação que só foi possível pelo que Tolstói tem artisticamente de gigante, de colosso; ou seja, de verdadeiro artista.

Da mesma forma, antes de sua obra existia uma ideologia tolstoniana – vale dizer: camponesa patriarcal -, mas só Tolstói a transfunde em uma obra literária de gênio; e é assim, transfundida, formada, que Lênin a examina.

Uma e outra vez, como se quisesse frisar o trabalho artístico ao qual Tolstói submete as ideias existentes, Lênin foca a atenção na especificidade de uma crítica que é inseparável de sua força artística.

“A crítica que Tolstói formulou não era nova. Nada disse que não houvesse sido dito muito antes na literatura europeia e na russa por homens que se achavam ao lado dos trabalhadores. Mas o específico da crítica de Tolstói e seu significado histórico consiste em que, com uma força própria que apenas os gênios da arte têm, expressa as mudanças radicais na mentalidade das mais amplas massas populares da Rússia”12.

O específico da crítica tolstoniana está, pois, não em sua carga ideológica, mas na maneira artística de fazê-la. Não se pode separar em Tolstói, diz Lênin, o artista e o pensador, como tende a fazer certa crítica ideologizante, pseudomarxista. Tolstói «refletiu com assombroso realce em suas obras, como artista e como pensador e pregador, os traços da especificidade histórica de toda a primeira Revolução rusa…»13. Por isso é estéril buscar a genialidade artística em sua obra, apesar dos lados negativos de sua ideologia, ou graças a seus elementos ideológicos negativos. Para chegar a estas conclusões é preciso evitar fazer aquilo que Lênin, certamente, não fez: separar uns elementos do todo de uma ideologia contraditória e depois levar a cabo uma nova amputação, separando as ideias da obra como se fossem algo exterior a ela.

Podemos dar asas à imaginação e representar a obra de Tolstói assim amputada, ou com outras ideias, ou com outra correlação de seus elementos ideológicos; ou, finalmente, isenta de contradições.

Mas já não seria a obra que temos diante de nós, justamente aquela que com uma grande força artística, «com a força própria e tão só dos gênios da arte», encarna as ideias que em um Tolstói imaginário, e não real, resultasse daquela amputação.

A função social e ideológica da obra de Tolstói

Com seus elementos ideológicos negativos e sua não comprensão da revolução, Tolstói se mostra como um «grande artista de verdade». E por sê-lo, e isto foi o que interessava a Lênin sublinhar, como o artista que soube refletir «alguns aspectos essenciais da revolução», permite connhecer o estado de ânimo das massas camponesas em uma revolução específica (burguesa-camponesa) e ensina, por sua vez, ao proletariado a conheer em sua luta revolucionária seus inimigos.

Admitida a força ou genialidade artística de Tolstói, que Lênin aceita sem reserva, não é pouco o que o proletariado moderno pode aprender com sua obra. Isto apesar das contradições em suas ideias, seus elementos ideológicos reacionários e sua incompreensão das causas da revolução e dos meios de luta adequados.

Lênin assinala claramente o que a classe operária russa pode encontrar em sua obra como espelho da revolução:

“Estudando as obras literárias de Tolstói, a classe operária russa conhecerá melhor seus inimigos, e vendo claro na doutrina de Tolstói, todo o povo russo deve compreender em que consiste sua própria debilidade, que não lhe permitiu levar até o fim sua libertação”14.

Na doutrina de Tolstói fundem-se, como disse Lênin, «o protesto de milhões de camponeses e seu desespero». Este desespero, «próprio das classes que perecem […], dos que não compreendem as causas do mal, não vêm saída nem são capazes de lutar», é alheio ao proletariado industrial contemporâneo, cujos representantes estimam «que têm contra o que protestar sem ter por que se desesperar»15.

Ao destacar a função social e ideológica da obra de Tolstói, Lênin estabelece um laço direto entre ela (como espelho) e a revolução, e sublinha o valor dessa obra desde o ponto de vista ideológico «da classe dos assalariados [que] cresce inevitavelmente, se desenvolve e se fortalece em toda a sociedade capitalista, inclusive na Rússia»16. Ao destacar o valor da obra de Tolstói em função dos interesses desta classe, «cuja importância Tolstói não compreendeu e que é a única capaz de destruir o velho mundo que Tolstói odiava tanto»17, é antes de tudo o político revolucionário que fala. Mas um político que, ao falar assim, o faz consciente de que está diante da obra de um «artista de verdade», de um escritor «de importância mundial», e consciente, mesmo assim, de que sua obra não é patrimônio de todos.

Agora o político fixa a atenção não no que a arte traz à política, mas naquilo que esta traz necessariamente à arte, ao convertê-la em patrimônio não de uma minoria, mas de todos. Para isso

“É preciso lutar contra o regime social que condena milhões e milhões de seres humanos à ignorância, à opressão, a um trabaho próprio de escravos, e à miséria: é preciso realizar a revolução socialista”18.

A possibilidade de que a obra de Tolstói deixe de ser «patrimônio de uma minoria insignificante, inclusive na Rússia», requer para sua realização de uma empresa política revolucionária na qual se insere também, como demonstram os artigos de Lênin, a própria obra de Tolstói. Desta maneira, arte e política se imbricam mútua e necessariamente.

Lênin sabe muito bem que somente pela criação das condições necessárias pela revolução socialista que a obra de Tolstói, com toda sua força artística, será posta ao alcance das grandes massas.

Trata-se, no caso de suas obras, de obras literárias «que sempre serão apreciadas e lidas pelas massas quando estas, derrotando a opressão dos latifundiários e dos capitalistas, criarem para si condições de vida verdadeiramente humanas»19.

O político Lênin atende assim não só a função ideológico-política da obra tolstoniana, mas assinala claramente as condições para que seja patrimônio de todos, e estas condições são, como vimos, a criação, pela luta revolucionària, de «condições verdadeiramente humanas».

Notas

Este texto está Incluido no livro Cuestiones estéticas y artísticas contemporâneas. México, D. F., FCE 1996

1. Há tradução espanhola destes artigos. Em V. 1. Lenin, Obras completa, Cartago, Buenos Aires (versão castelhana da 4ª edição russa). Veja a este respeito os tomos 15 (“León Tolstoy, espejo de la Revolución rusa»), 16 (“León Tolstoy”, “León Tolstoy y el movimiento obrero contemporáneo» y «Tolstoy y la lucha proletaria») y 17 “León Tolstoy y su época»). Estes artigos também estão na colertânea (em espanhol) Lenin, La literatura y el arte, Editorial Progreso, Moscú, 1976 (existe uma antología similar preparada e com prólogo de Jean Freville, publicada pela Editions Sociales, Paris, 1957, que foi traduzida por Jaume Fuster e Maria-Antònia Oliver para Península, Barcelona, 1975, nota PG-A). Finalmente, o texto “León Tolstoy, espejo de la Revolución rusa», está incluído também no livro Estética y marxismo, tomo II, México, 1970.

2. «León Tolstoy, espejo de la Revolución rusa».

3. «León Tolstoy, espejo de la Revolución rusa».

4. «León Tolstoy y el movimiento obrero contemporáneo.”

5. «León Tolstoy, espejo de la Revolución rusa».

6. Ibidem.

7. “León Tolstoy, espejo de la Revolución rusa».

8 «León Tolstoy.»

9. «León Tolstoy».

10. «León Tolstoy, espejo de la Revolución rusa”.

11. Gorki, “V. I. Lenin. La literatura y el arte”, op. Cit-, pág. 246.

12. «León Tolstoy y el movimiento obrero contemporâneo

13. «León Tolstoy”.

14. «León Tolstoy”.

15. «León Tolstoy y el movimiento obrero contemporáneo».

16. Ibidem.

17. «Tolstoy y la lucha proIetaria”.

18. «León Tolstoy.»

19. Ibídem.