Racismo no esporte: Relatório sobre discriminação é divulgado no Vasco

O Clube de Regatas Vasco da Gama foi palco de um importante debate sobre preconceito no esporte. Foi divulgado no dia 10 de outubro, na sala dos grandes beneméritos do clube, o Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol em 2015, com os casos de racismo no esporte no ano passado.

Racismo Vasco Gama - Paulo Fernandes/vasco.com.br

O evento contou com a participação do presidente do Vasco, Eurico Miranda, do diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Marcelo Carvalho, do presidente do Conselho Deliberativo, Luis Manuel Fernandes, do diretor jurídico do clube, Maurício Corrêa da Veiga, e do Procurador do STJD, Felipe Bevilacqua, além dos jogadores Thalles, Jomar e Nezinho, sendo este último do time de basquete. Os atletas relataram casos de racismo que sofreram nas suas carreiras.

Basicamente, o Relatório da Discriminação Racial no Futebol está dividido em duas partes: a primeira fala dos casos ocorridos no Brasil, abrangendo atletas, árbitros, dirigentes, torcedores e funcionários de clubes em incidentes raciais, homofóbicos, xenófobicos; e a segunda trata dos casos ocorridos com atletas brasileiros no exterior. O documento não se ateve somente ao futebol e incluiu outras modalidades, como o basquete e o vôlei. Ao todo, foram identificados 41 casos de discriminação em território nacional, sendo 37 relacionados ao futebol e quatro relacionados a outros esportes. Deste total, trinta e cinco casos estão atrelados a discriminação racial, um com homofobia e outro com xenofobia. Sobre o local dos incidentes, vinte e quatro casos ocorreram dentro das arenas esportivas e onze através da internet.

Diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Marcelo Carvalho esclareceu que o Relatório registrou apenas os casos divulgados pela imprensa nacional e internacional e lamentou que muitas punições previstas em lei acabam não acontecendo justamente pela falta de debates sobre o assunto.

"O caso de racismo é noticiado, gera repercussão, mas não encontramos informações das punições. Existe lei contra o racismo, mas não há ninguém preso. O problema existe, mas o que a gente faz com esse problema? Se não debater, lutar contra isso, vai continuar existindo. O pior a se fazer é o silêncio".

O Relatório também destaca as punições realizadas na Justiça Desportiva e com registro de boletim de ocorrência. De oito casos encaminhados, dois não se transformaram em objeto de decisão do Superior Tribunal de Justiça Deportiva, o STJD. Dentro desse cenário, um jogador foi punido com um jogo de suspensão por não ter conseguido provar que sofreu injúrias raciais. O tribunal utilizou o artigo 221 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (o CBJD) que prevê punição por “dar causa, por erro grotesco ou sentimento pessoal, à instauração de inquérito ou processo na Justiça Desportiva”. Já os casos com registro de boletim de ocorrência, em apenas dois o agressor foi preso, identificado e liberado após pagamento de fiança. Vale lembrar que o delito de injúria racial, por se tratar de processo criminal, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol não conseguiu informações sobre o seu andamento.

O procurador do STJD, Felipe Bevilacqua, lembrou que muitos casos de discriminação não chegam aos tribunais desportivos e pediu a ajuda da imprensa para investigar os casos e punir os responsáveis.

"O que acontece é o seguinte: existem muitos casos que não chegam ao STJD. Existem casos que são competência dos tribunais locais, que na maioria das vezes não têm muita estrutura, e não têm muito conhecimento e muita capacidade pra poder avaliar aquela situação. (…) E aí o racismo que geralmente chega pra nós, no STJD, não é o racismo institucional, como o presidente (Eurico Miranda) colocou aqui, que historicamente foi combatido pelo Vasco, mas um racismo que, por incrível que pareça, vem da torcida. Não somente a torcida adversária, mas como da própria torcida, do próprio time que ela apoia. (…) São casos que realmente o STJD tem um pouco de dificuldade pra ter acesso a provas, acesso a esse tipo de circunstâncias. A gente precisa da ajuda não somente da imprensa. É uma ajuda realmente imprescindível para o STJD, porque nós não temos essa força, esse poder de polícia, de investigatório, de ir nos lugares. A gente não tem estrutura pra isso. A gente precisa da imprensa pra poder combater".

Sobre as punições aplicadas aos clubes, o Relatório aponta que apenas um caso de “suposto racismo” (de um total de trinta e cinco ocorrências) foi punido pelo TJD por ato discriminatório. Em outros dois casos, o agressor foi preso, identificado e liberador pelas autoridades depois de pagamento de fiança. E em um caso, a Federação local suspendeu preventivamente o acusado. Não houve punição ao agressor em nenhuma esfera nas demais ocorrências. Esse é um dos motivos pelos quais o diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Marcelo Carvalho, defende que a lei precisa de mudanças para punir atos racistas dentro e fora dos estádios de futebol.

"A Justiça Desportiva trata como ato discriminatório, independente se a lei é racismo ou não. Acho que pro esporte, em modo geral, ela não diz muito né? Eu acredito que a lei precisa ser mudada, mas aí é uma questão de fora do futebol. (…) A lei diz 'vamos punir o clube se determinado número de atletas cometerem o ato'. Mas ela não diz o que é esse determinado número. Por exemplo, o Grêmio foi punido (em 2014) com dez torcedores. Mas qual é o número de atletas? (…) Então a única ressalva que eu faço é essa. É preciso dizer qual é o número de torcedores para se punir um clube. (…) Se pune um clube quando alguém arremessa um objeto no campo, por que não punir no caso de racismo? Eu acho que vale a punição pros dois lados".

Marcelo Carvalho ainda explica que a legislação desportiva também pode se adaptar para punir os casos de racismo no futebol e dá sugestões para que esse cenário melhore no futuro.

"A grande mudança que se deu em objetos atirados no gramado foi essa: a punição aos clubes. Hoje em dia, quando um torcedor arremessa, o resto da torcida já identifica quem arremessou para que o clube não seja punido. Então eu acho que o caminho pro racismo é o mesmo. Se pune o clube até que ele tome medidas cabíveis ou possíveis de identificar. (…) A gente tem um número muito grande câmeras dentro do estádio. Então é possível identificar. Basta o clube querer. Então a primeira coisa que eu acho é o clube entregar pra Justiça as informações que ele tem. E a segunda é: campanhas preventivas pedindo "torcedor, não cometa atos de racismo porque o clube pode ser punido". Também é a parte do clube ajudando na questão".

A divulgação do Relatório da Discriminação Racial no Futebol em 2015 também trouxe relatos de casos de racismo no esporte. O zagueiro Jomar foi o primeiro a falar do que aconteceu no seu ex-clube.

"Já sofri racismo no meu ex-clube, quando fui substituído. Eram um branco e um negro. Eu saindo e me chamaram de macaco. Ali fiquei pensando: 'Qual palavra vou dar para ele?' Deus te abençoe. Tomei meu banho tranquilo, e a primeira coisa que fiz foi abraçar a minha mãe, chorando bastante. Mas eu creio que não posso levar essa coisa adiante, tenho que procurar esquecer e aprender cada dia mais. Temos que dar um basta nisso. Eu sou contra e creio que todos nós temos que ser contra o racismo. Então eu fico muito feliz em poder participar desse evento. Agradeço a todos".

O jogador de basquete Nezinho também relatou um episódio em que sofreu discriminação por causa da cor da pele no início de carreira e lamentou a maneira com que o racismo vem sendo tratado nos dias de hoje.

"Eu acho que infelizmente todos as pessoas negras já sofreram um ato de racismo na vida. (…) Eu estava iniciando a minha carreira no basquete com 18, 19 anos, não sabia se eu ia ser um jogador profissional, estava estudando ainda. (…) Estava numa semifinal do Campeonato Paulista e jogava pela equipe do extinto COC-Ribeirão Preto e jogando já contra jogadores renomados e de Seleção Brasileira. E quando sentiam que os jogadores mais jovens estavam chegando, incomodando, tirando eles desse lugar de poder, tentaram nos desequilibrar. Chamaram o Alex, hoje no Bauru, de pedreiro, e eu, de macaquinho e negrinho de merda dentro da partida. Com 18, 19 anos você não entende o que está acontecendo. Quando acabou o jogo, queria parar de jogar basquete, pensava que isso aqui não é pra mim, mesmo tendo passado pra final. (…) São várias situações em que a gente vai se calejando. Infelizmente é normal. Deveria ser uma coisa terrível. Não teríamos que estar debatendo isso hoje. (…) É triste. Muito triste".

Acesse e leia o Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol 2015, com os casos de preconceito e discriminação no esporte brasileiro em 2015