Wladimir Pomar: Massacre da Lapa, 40 anos depois

Em dezembro de 1976 o Brasil ainda vivia sob a ditadura militar. Ela se encontrava, então, numa complexa retirada estratégica. Por um lado prometia distensão lenta e segura, de “retorno ao Estado de Direito”. Por outro, suas forças de segurança faziam perseguição feroz a todos que se opunham ao regime.

Por Wladimir Pomar*

Wladimir Pomar - Reprodução

Sob Geisel, já haviam sido mortos: em 1974, 16 dirigentes de organizações de esquerda, a exemplo de David Capistrano, João Massena e Luiz Maranhão, do PCB; Ana Kucinski e Issumi Nakano, da ALN; Daniel Carvalho e Onofre Pinto, da VPR; e Ruy Frazão, do PCdoB; em 1975, 14 integrantes do PCB, entre os quais Hiran Lima, Jayme Miranda, Nestor Vera, Itair Veloso, Orlando Bonfim, Elson Costa e Vladimir Herzog; e, em 1976, até dezembro, 12, incluindo Zuzu Angel e Manoel Fiel Filho.

O assassinato de Fiel trouxe à tona a disputa interna do regime, com a exoneração do comandante do II Exército. O que não deu fim aos assassinatos, como ficou evidente em dezembro, com a morte de João Batista Drumond, nas dependências do DOI-CODI, e o fuzilamento de Ângelo Arroyo e Pedro Pomar, do PCdoB, na casa em que se encontravam, na Lapa, em São Paulo.

Assim, por um lado, militares de alta patente falavam de “volta aos quartéis”, com Geisel implantando sua “distensão”. Por outro, tanto militares de alta patente quanto o aparato de repressão, aplicavam a política da matança (com a qual Geisel se solidarizou). Era, pois, no contexto da contraditória retirada estratégica militar que, em dezembro de 1976, o comitê central do PCdoB realizava mais uma de suas reuniões.

Embora sua pauta central fosse a guerrilha do Araguaia, a esse tempo o “milagre econômico” já se transformara em desastre, a maioria parlamentar da ditadura naufragara, e o estamento militar corria o risco de ser dado como único responsável pela desastrosa situação do país. O que poderia liquidar o papel histórico desse estamento como “poder moderador”. Portanto,naquela reunião, além da avaliação do Araguaia, também estava em pauta o rumo estratégico a ser seguido.

Se a derrota do Araguaia fosse considerada tática, por erros militares, o PCdoB deveria continuar aplicando o tipo de preparação armada que levara a cabo. Porém, se ela fosse considerada estratégica, seria necessário se voltar para o “trabalho de massa”, construção de “bases políticas de massas”, que levasse em conta os níveis de luta e de organização das massas populares e, também, as mudanças políticas em curso.

Já haviam mudanças nesse sentido, como a incorporação em lutas sindicais e populares, e o lançamento de candidatos aos parlamentos. Assim, além de retornar a um trabalho que jamais havia abandonado inteiramente, nas organizações de base e políticas da sociedade, o PCdoB também tinha que se empenhar mais na tática aprovada em sua conferência de 1966, de luta pela Anistia e convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.

Por outro lado, embora não tivesse visão ampla da “retirada estratégica” dos militares, nem da disputa feroz entre eles, tinha noção de que o regime continuava empenhado em completar a matança seletiva das esquerdas. No caso do PCdoB, além dos já citados, após a descoberta da preparação da guerrilha do Araguaia, em 1972, haviam sido assassinados vários de seus principais dirigentes, como Carlos Danielli, Lincoln Oest, Luiz Gullhardini, Armando Frutuoso e Lincoln Bicalho Roque.

Em vista disso, o PCdoB adotara a política organizativa de “fingir-se de morto”. Ou seja, evitar qualquer tipo de atividade, incluindo reuniões, que o colocasse em risco. O que deveria estender-se ao comitê central. Mas isto foi postergado pela necessidade de avaliar a derrota da guerrilha do Araguaia e de adotar nova estratégia. Assim, apesar da decisão de “fingir-se de morto”, seu comitê central manteve suas reuniões.

Durante o transporte dos dirigentes para a reunião da casa da Lapa, nada de suspeito foi notado. E nada se notou de estranho durante o transporte de saída dos participantes, na noite de 15 de dezembro. Porém, durante a saída da última turma, na madrugada do dia 16, um fusca de cor prata fez esforços incomuns para demonstrar que realizava uma perseguição, obrigando o motorista do comitê central a realizar manobras arriscadas de fuga. Quando pensou haver se desvencilhado do perseguidor, soltou os dois dirigentes que estava conduzindo, e tentou retornar à Lapa.

No entanto, logo depois foi cercado por inúmeros carros da polícia política. E, por puro acaso, um desses acasos que podem explicar tudo o mais, o motorista ainda ouviu um dos policiais, com um walk talk, avisar que podiam “continuar a operação”. Só bem depois entendeu que esse aviso significava invadir a casa e matar Ângelo Arroyo e Pedro Pomar.

É evidente que, com esse golpe, promovido por muitas certezas, mas com um pequeno acaso esclarecedor do vulto do planejamento da operação, a ditadura militar não conseguiu destruir o PCdoB. Pela primeira vez, em anos, assassinatos e prisões dessa envergadura não resultaram em quedas em cascata de outros militantes e dirigentes. O restante da estrutura do partido foi afetado apenas por cortes de contatos e pela necessidade de verificações cuidadosas.

Assim, os dirigentes e militantes presentes no Brasil e no exterior puderam se rearticular. Mas, com esse golpe, a ditadura rompeu e afetou profundamente o processo de avaliação da experiência do Araguaia e de construção de uma nova estratégia. E introduziu uma discrepância acentuada em torno das responsabilidades sobre o acontecido. Alguns chegaram a achar mais fácil dizer que não havia discussão alguma sobre o Araguaia, responsabilizar o “liberalismo” de Pomar pela queda e, com isso, encerrar o assunto.

No entanto, como notaram alguns dos presos da Lapa, havia indícios demasiados sobre o planejamento minucioso da operação policial-militar, e sobre a possível participação de algum membro do comitê central em tal planejamento. Falando mais francamente: havia indícios de um delator, ou traidor, no comitê central. E as características da operação também indicavam que ele participara da reunião. No entanto, apesar desses indícios, ou porque sua comprovação podia estabelecer elos de responsabilidade, houve quem achasse melhor dizer que o dirigente suspeito de traição fora morto e estava “desaparecido”.

Assim, apenas em 1979 descobriu-se que o suspeito de traição estava vivo. Depois, nos anos seguintes, altas patentes militares e “arrependidos” do DOI-CODI começaram a comentar o passado, e o nome do traidor responsável pelo massacre planejado da Lapa se tornou evidente.

Nos anos seguintes, a vida mostrou que, diante da retirada estratégica efetiva dos militares e de democratização do país, a continuidade da estratégia de “preparação militar para a guerra popular” não seria correta. O PCdoB viu-se compelido a mudar sua estratégia e a revogar, mesmo silenciosamente, uma série de medidas adotadas no espírito daquela estratégia militar.

Quarenta anos depois, queiramos ou não, esses acontecimentos continuam pesando sobre a história. É evidente que o peso maior daquele massacre deve recair sobre a ditadura e seu estamento militar. Eles foram os executores macabros, seja por imporem a um antigo dirigente sindical e político o papel de traidor, seja por haverem morto, por tortura ou metralha, outros três combatentes do povo.

Estes agora fazem parte da história do grupo maior de combatentes caídos na luta por um Brasil socialista. E, fazendo parte da história, a verdade de sua luta e de sua morte, mais cedo ou mais tarde, será plenamente conhecida. O que nos sobra então, nestes 40 anos do “massacre da Lapa”, é declararmos nossa sentida homenagem e reafirmar que não os esqueceremos.