Eu, Daniel Blake: se você é pobre, a culpa é sua!

Embora 2017 ainda dê os primeiros passos, Eu, Daniel Blake, o filme de Ken Loach realizado dois anos atrás e premiado pela segunda vez (fato raro) com a Palma de Ouro em Cannes, em 2016, se revela como uma das melhores e mais emocionantes produções cinematográficas do período. É um imenso sucesso de bilheteria no Brasil e na Europa e cotado para ganhar, concorrendo com o nosso Aquarius, o francês Cesar de melhor filme estrangeiro, este ano.

Por Léa Maria Aarão Reis*

Eu, Daniel Blake - Divulgação

Trata-se de mais um trabalho de Loach, de 80 anos, filme espartano e sem firulas, como é toda a sua vasta obra de cinema documental. Nele, mais uma vez, o diretor assume a defesa dos mais vulneráveis (neste caso, os idosos) no embate inglório com o sistema falido do bem-estar social da Grã Bretanha criado pelos governos progressistas anteriores à sinistra era Thatcher, um dos emblemas e modelo de política social de então, deletado pelo nefasto neoliberalismo da Dama de Ferro.

A história: um trabalhador honrado, marceneiro experiente, artesão de grande competência – como é incomum, nos tempos de hoje -, na casa dos 70 anos, viúvo e sem família, sofre um ataque cardíaco que o condena a um repouso temporário.

Sem renda pessoal, Daniel Blake procura a assistência do Estado – e fazer valer seus direitos – enquanto não pode retornar ao trabalho. Mas vai sendo, aos poucos, sufocado e triturado pela máquina de uma cruel espiral burocrática, puro Kafka neoliberal.


Daniel Blake é um marceneiro habilidoso 

Uma trajetória dramática bem conhecida dos dependentes das políticas de saúde pública no Brasil, um SUS cada vez mais relegado e esvaziado pelo governo golpista.

Este é o ponto central do roteiro do escritor e advogado Paul Laverty, 60 anos, amigo e brilhante colaborador de Loach em oito filmes, desde a época dos contras quando trabalhou para organizações de direitos humanos na América Central.

Laverty usa método semelhante ao do jornalismo investigativo. Durante meses conversa com dezenas de pessoas antes de construir seus personagens. No caso, percorreu bancos de alimentos, centros de empregos e outros cenários desalentadores do Reino Unido atual, onde conheceu muitos daniels.

A dignidade de Blake vai sendo solapada a cada consulta feita ao telefone para tratar da sua situação. É torturado com esperas absurdas, bem familiares de todos nós em algum momento da nossa vida. Ouve gravações de zumbis repetindo “… Continue na linha…”. Fala com atendentes robôs terceirizados e desqualificados. Recebe informações surrealistas: ”O senhor só fez 12 pontos em sua demanda; é necessário atingir 15…” Ao que ele retruca: “Mas isto não é um jogo!''

‘‘Aqui, tudo é informatizado,” lembram, friamente, os funcionários robôs.

No Departamento do Trabalho, o velho se submete a entrevistas humilhantes com funcionários desprovidos de humanidade, e sua dificuldade é maior porque é analfabeto digital assim como são outros milhões de idosos por toda parte – porque não tiveram tempo para se adaptar ao novo mundo digital ou porque, tensos, não têm paciência nem habilidade necessárias para apreender a nova linguagem.

Blake tenta se atualizar. É orientado a fazer cursos para aprender a trabalhar com computadores. Deste modo poderá preencher um formulário que é capital para o seu caso e está disponível apenas na Internet.

Nessa espiral intimidante, ele conhece Katie, desempregada e mãe de dois filhos, obrigada a se mudar para Newcastle porque o sistema diz que não há lugar para alojá-los, temporariamente, em Londres. Nota: a cidade possui 10.000 moradias pertencentes ao estado, vazias.

As políticas sociais neoliberais retiram de Londres esses necessitados, como a moça e seus filhos, e os enviam para pequenas cidades do interior onde o custo para mantê-los, temporariamente, é menor. Mas onde o indivíduo, como Katie, enfrenta um mundo com códigos da vida cotidiana que não conhece e num universo onde será ainda mais improvável conseguir trabalho no deserto de empregos em que se está tornando não só a Europa, mas o mundo.

Informação pertinente: dados da OIT, a Organização Internacional do Trabalho, anunciou, este mês, que em 2017 um entre cada três novos desempregados, no mundo, será cidadão brasileiro.

“Sabem quantas vagas foram abertas, recentemente, por uma empresa que estava contratando? Oito vagas. Sabem quantos candidatos se apresentaram? Mil e trezentos!’’ É o que o professor do cursinho onde Blake se matricula para aprender a montar o seu currículo ensina. Em bom português: ensina que, na verdade, não há mais empregos no mercado.

Blake não consegue o seguro desemprego e luta por um novo trabalho batendo de porta em porta. Faz fila, acompanhando Katie, para receber a cesta básica. A humilhação. Perguntam à sua amiga: “Quer absorventes também?’’

Passa-se nesse centro de distribuição de alimentos gratuitos uma das mais fortes sequências do filme: Katie, disfarçadamente, retira da prateleira do almoxarifado e abre uma lata de conserva. Começa a comer com sofreguidão o conteúdo até parar e começar a chorar, num canto, entre as prateleiras. Quando chegam para socorrê-la, ela diz, soluçando, envergonhada: ‘’ Desculpem; eu estava com tanta fome…’’

Para alimentar os filhos Katie comia uma maçã por dia há semanas.

A indignação vai tomando conta de Blake. “Do outro lado estão os rentistas, os velhos broxas educados em Eton preocupados em conseguir as melhores taxas em seus investimentos,” ele comenta, em uma conversa.

Decide, no desespero, pichar o muro do prédio do Departamento do Trabalho. “Eu, Daniel Blake. Não sou um cachorro. Exijo meus direitos.” O episódio se torna caso de polícia, é claro, e o velho vai parar na delegacia.

Kenneth Loach é um dos Grandes Velhos do nosso tempo. Homens de ação; não apenas teóricos. Com pensamento, ideias e posições de esquerda coerentes, e solidários como foram, até a morte recente, Zygmunt Bauman e o cineasta português Manoel de Oliveira. Como é Noam Chomsky, nos Estados Unidos e, em certa medida, o senador americano Bernie Sanders.

Em uma recente entrevista concedida ao jornal El País, por ocasião da Palma de Ouro ganha por Eu, Daniel Blake, em maio passado, Loach fez observações memoráveis.

Como chegamos à situação que seu filme descreve? perguntou o El País. “É a forma como o capitalismo se desenvolveu,” ele responde. “As grandes corporações dominam a economia e isso cria uma grande leva de pessoas pobres. O Estado deve apoiá-las, mas não quer ou não tem recursos. Então, cria a ilusão de que, se você é pobre, a culpa é sua. Porque você não preencheu seu currículo direito ou chegou tarde a uma entrevista. Montam um sistema burocrático que pune quem é pobre. A humilhação é um elemento-chave na pobreza. Rouba a sua dignidade e a sua autoestima.”

Abandonar os mais desfavorecidos é uma escolha política? Indaga o repórter. Resposta: “Sim. É nascida das demandas do capital. Se os pobres não aceitassem que a pobreza é sua culpa poderia haver um movimento para desafiar o sistema econômico. Os meios de comunicação falam de gente folgada, de viciados, de pessoas que têm muitos filhos, que compram televisores grandes… Sempre encontram histórias para culpar os pobres ou os imigrantes. É uma forma de demonizar a pobreza”.

Para ele, é óbvio que o sistema se tornou pior porque o processo capitalista avança. Pergunta: As histórias humanas são seu veículo para articular mensagens políticas? “Todas as histórias humanas são políticas”, ele sublinha. “Têm consequências políticas. Nem Katie nem Dan são animais políticos. Não fazem discursos, não participam de reuniões. Mas a situação em que se encontram é determinada pela política”.

Você é otimista, Loach? “Sou otimista sim. Sanders, Podemos, Syriza… Existe uma sensação de que outro mundo é possível”.

E como você gostaria de ser lembrado? “Como alguém que não se rendeu. Não se render é importante porque a luta continua. E as pessoas tendem a se render quando ficam velhas.’’

O recado de Loach e Laverty em Eu, Daniel Blake é transparente: quando perdemos a dignidade, perdemos tudo. Talvez até já tenhamos perdido nossa essência humana, a compaixão, o sentimento da solidariedade – e a resistência.

Milly, uma inteligente blogueira brasileira, resumiu o perfil do extraordinário personagem de Loach interpretado pelo magnífico ator Dave Johns. “Blake somos você e eu usados como instrumentos; você e eu sugados de nossa humanidade, de nossa dignidade, de nossos direitos mais básicos por um sistema que devora, mastiga, engole e depois cospe nossos restos.”