Desrespeitar partidos e proporcionalidade atenta contra a democracia

Desde 2014, a política brasileira parece ter entrado em parafuso. Uma crise para a qual não se veem muitas saídas. Suas instituições são desrespeitadas com naturalidade capaz de assustar até mesmo aqueles que eram mais céticos quanto à higidez de nosso sistema constitucional.

Por Pablo Holmes*

Congresso derruba três vetos presidenciais - Agência Câmara

E tudo isso sob aplausos de muitos, à esquerda e à direita. Seja em nome de convicções pessoais autoritárias (que querem se impor à vontade de eleitores) ou meros interesses (escusos ou não).

A crise do presidencialismo

Depois de termos visto importantes atores políticos desafiarem a legitimidade das eleições de 2014 apenas alguns dias depois de sua realização, testemunhamos, desde 2016, uma derrocada generalizada de diversos mecanismos fundamentais para qualquer democracia minimamente funcional.

Como sabemos, no presidencialismo, o poder Executivo é constituído de forma majoritária (mesmo onde o presidente governa com uma coalizão, como no Brasil). Quem obtém a maioria dos votos na eleição, governa e termina o mandato. A perda de maioria parlamentar ou a baixa popularidade não são razões para a deposição de um presidente.

Barak Obama governou seis anos com minoria no Parlamento. Françoise Hollande, presidente da França chegou a ter aprovação de apenas 4% do eleitorado. E Enrique Peña Nieto, presidente do México, tem aprovação de apenas 12%. Mas eles não serão depostos por conta disso.

Derrubar um presidente sem causas jurídicas claras, sob o argumento de que "ele não tem mais condições de governar", rompe com princípios fundamentais da democracia. E demonstra fragilidade do processo político constitucional. Por isso, muitos chamaram de golpe o impeachment de uma presidenta sob bases frágeis, num processo contestado internamente e internacionalmente.

Representatividade parlamentar e proporcionalidade

Em democracias, a representatividade nos parlamentos não se dá da mesma forma que se dá no Executivo. Ela se dá de forma proporcional.

Ou seja, cada partido elege uma bancada e essas bancadas devem ocupar os espaços parlamentares de modo proporcional ao seu tamanho na respectiva casa legislativa, seja na mesa que dirige os trabalhos, seja nas comissões que discutem e aprovam matérias.

Algumas comissões são fundamentais para a vida política do país, tratando de temas como economia, transporte, direitos humanos e sociais etc. Por elas, passam decisões que marcam a vida de gerações. E os cargos decisórios, como suas presidências, não são apenas cargos de prestígio: eles são responsáveis por conduzir o debate, pautar votações, fazer convites a especialistas. Eles influenciam de maneira direta a discussão das matérias.

A capacidade de influenciar a agenda parlamentar se trata, sem dúvida alguma, de um poder muito importante em qualquer democracia.

Por isso, é comum que as eleições para as mesas do Parlamento e para a composição das comissões parlamentares respeitem a proporcionalidade. Isso é previsto até no regimento das casas, que dispõem que a composição dos cargos respeitará, preferencialmente, a proporcionalidade das bancadas.

Muitas vezes, a eleição se dá por chapa única, mesmo quando há candidaturas avulsas para a Presidência, usadas para os partidos marcarem posição, ou por conta da vaidade de alguns parlamentares.

Normalmente, quem se exime de participar do processo de composição das representações (seja na mesa, seja nas comissões) pode se dar ao luxo de fazê-lo por simplesmente não ter qualquer representatividade. Nesse caso, chamar a atenção da opinião pública não é apenas uma escolha política, é o resultado da falta de opções.

Por outro lado, o partido que tem uma bancada representativa e não participa da condução, discussão e processo decisório em importantes espaços institucionais do congresso, inclusive ocupando cargos capazes de decidir, simplesmente desrespeita a vontade do eleitor. Pois, assim, ele rompe com a proporcionalidade que é condição para a representatividade eleitoral dentro do Parlamento.

As eleições da mesa depois do impeachment

O governo que tomou posse em 2016 padece de uma grave falta de legitimidade. Não só por ter aprovação extremamente baixa (apenas 10%, segundo as últimas pesquisas). Mas por ser suspeito de ter chegado ao poder por meio de acordos escusos que, além de desrespeitarem a Constituição, pareciam ter a finalidade de evitar a investigação de crimes de diversos de seus membros por parte de Justiça. Em apenas seis meses depois da posse, o governo já perdeu seis ministros, quase todos por conta de envolvimento com casos de corrupção.

Apesar disso, ele conta, graças aos acordos que fez para aprovar o impeachment, com expressiva maioria de apoio, tanto na Câmara como no Senado.

E, assim, ele pode excluir do exercício de funções parlamentares importantes aqueles partidos que, mesmo com bancadas representativas, não compuserem chapas com sua base de apoio.

Fato é que a bancada do governo, ao condicionar a composição proporcional ao apoio à sua candidatura, age de modo fisiológico. E, ao não denunciar o desrespeito à proporcionalidade como violação da vontade do eleitor, o PT, o maior partido de oposição ao governo no Congresso, deixa-se fazer refém do argumento de que estaria a aderir ao governo em um “conchavo de gabinetes”.

Cumprir a proporcionalidade não é fazer acordo. É respeitar a democracia. Descumprir a proporcionalidade é que significa um desrespeito. E é triste que confundamos coisas diferentes, sem levar em conta a importância das instituições democráticas.

O mais importante é valorizarmos exatamente a representatividade eleitoral dada pelas urnas. E não construirmos quimeras que, mais uma vez, desrespeitem a vontade eleitoral expressada em 2014.

Perspectivas progressistas para o Brasil

Não há democracia sem partidos representativos e representados. Não há democracia sem participação no processo institucional.

Embora esteja claro para todos os progressistas que é fundamental reconstruir os movimentos sociais e políticos extraparlamentares, o discurso anti-institucional produz apenas um movimento que é, em grande parte, incapaz de influir nas decisões que definem o presente e o futuro de todos nós. Não faz sentido representar eternamente uma pequena minoria, enquanto vemos piorar a vida dos que mais precisam da ação do poder público.

Se alguns podem, por privilégio ou sorte pessoal, dar-se o luxo de ter compromisso apenas com os seus sentimentos, culpas e emoções, a maioria dos brasileiros não está nessa posição.

O PT é um partido em crise. Cometeu muitos erros. E tem hoje em seus quadros muitos políticos que têm as piores práticas da política brasileira.

Mas o caminho para construir um país mais inclusivo não passa por ignorar a política partidária e a democracia representativa. Vemos o debate público chegar a um ponto muito triste. E passamos a naturalizar, de todos os lados, a destruição de instituições democráticas essenciais.

Parecemos nos colocar à espera de alguma figura individual que vá governar como queira, sem respeitar partidos, nem regras, nem o direito, nem a representatividade.

Não é demais lembrar que, onde se tentou esse tipo de experiência, os resultados foram sempre desastrosos.

*Pablo Holmes é professor no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília