Aprovação da MP 744 não encerra luta em defesa da EBC

Junto com organizações da sociedade civil que encamparam a luta em defesa da EBC e da comunicação pública nos últimos meses, o FNDC continuará buscando reverter os retrocessos impostos pela MP 744/16, que deverá ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade no STF. Aprovada pelo Senado nesta terça-feira (7), a MP que altera a estrutura da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) coroou o processo de desmonte do projeto de comunicação pública inaugurado no país com a fundação da empresa.

Sede da EBC - EBC

Criada em 2008 para cumprir o papel constitucional de organizar e fortalecer o campo público da comunicação, a EBC foi um dos primeiros alvos do governo Temer, que logo após assumir interina e ilegitimamente o poder tratou de destruir a principal conquista obtida pela sociedade brasileira no setor das comunicações. A votação da MP, no entanto, não encerra a luta política em defesa da EBC, como garante a coordenadora geral do FNDC, Renata Mielli.

A MP extingue o Conselho Curador da EBC e o mandato de diretor-presidente da empresa, que passa a ser de livre nomeação pelo presidente da República. O Conselho Curador zelava pelos princípios e pela autonomia da EBC, impedido ingerência indevida do governo e do mercado. A instância era composta por 22 membros, sendo 15 representantes da sociedade civil – indicados via consulta popular, quatro do governo federal, um da Câmara dos Deputados e um do Senado Federal, além de um representante dos trabalhadores da empresa. Após críticas contundentes à extinção do Conselho, o relator da MP na Câmara, deputado Lasier Martins (PSD-RS), incluiu o Comitê Editorial e de Programação, que ainda não foi regulamentado. O mandato fixo de quatro anos para diretor-presidente, também extinto pela MP, impedia a troca do comando da empresa a partir de cada mudança do Executivo.

Bia Barbosa, secretária de Comunicação do FNDC, explica que esses  dois elementos conferiam à EBC o caráter público. “Além da presidência da empresa ficar à mercê do governo de plantão, o Conselho de Administração terá seus membros indicados pela Presidência da República, com exceção do representante dos funcionários, e não se sabe quais são os critérios de preenchimento do Comitê Editorial e de Programação”, afirma. “Isso claramente transforma a EBC numa empresa de comunicação governamental”, reforça Bia.

Renata Mielli é direta: “essa MP é inconsticional do ponto de vista formal e material, impõe censura às emissoras tuteladas pela EBC e não resolve os problemas da empresa – pelo contrário, agrava! Por isso vamos combatê-la enquanto houver essa possibilidade”. Ela ressalta que o FNDC e a Frente em Defesa da Comunicação Pública, entre outras entidades dos movimentos sociais que defendem a democratização da comunicação, “fizeram o que foi possível” para tentar barrar o retrocesso imposto pelo governo. “Procuramos fazer um debate qualificado sobre comunicação pública e sobre o protagonismo da EBC para o setor. Infelizmente, a correlação de forças no
Congresso Nacional é totalmente favorável ao governo. Em nenhum momento houve interesse do governo em debater a relevância da comunicação pública para a democracia”, observa.

A coordenadora geral do FNDC lembra que a EBC foi a primeira experiência de construção de um campo público de comunicação no país, voltada para a difusão de conteúdo pautado no interesse público. “Um projeto foi interrompido pelo golpe impetrado no Brasil, que também interrompeu um projeto mais amplo de nação que vinha sendo construído nos últimos 13 anos”.

Para Bia Barbosa, a votação da MP no Senado evidenciou a fragilidade da crítica feita pelos defensores da MP de que é preciso garantir a eficiência da EBC e cortar gastos. “É lemantável que um direito fundamental como o da comunicação tenha sido debatido apenas pelo viés equivocado de uma pretensa eficiência e de uma economia que não se materializará. No entanto, essa visão estreita é típica da mentalidade desse governo, que delega ao mercado a garantia de direitos fundamentais”, observa.

Confira os principais pontos negativos da MP 744/16

1. É inconstitucional

* Inconstitucionalidade formal: Não está presente a urgência ou relevância, duplo requisito constitucional para a edição de medidas provisórias. Onde residiria a urgência constitucional de reformulação da estrutura de uma empresa pública que vem desenvolvendo, na mais absoluta normalidade, suas atividades?

* Inconstitucionalidade material: A existência de um sistema de comunicação pública, não-governamental, tem por objetivo assegurar a efetiva realização da liberdade de manifestação do pensamento, pela possibilidade de serem ouvidas outras vozes, além daquelas emitidas pelo Poder e pelo mercado (artigo 220 da Constituição: “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”). Ao se amputar os dois principais mecanismos da estrutura administrativa da EBC existentes para assegurar a autonomia e o cumprimento dos demais princípios e objetivos do sistema (extinção do Conselho Curador e do mandato de seus dirigentes) se está criando uma efetiva restrição à livre circulação das informações. Além disso, ao aniquilar com a experiência de implantação de um sistema público no País, ao lado do estatal e do privado, a MP também desrespeita o artigo 220 da CF que trata da complementaridade entre os sistemas.

2. Resulta na prática de censura

Segundo nota técnica do Ministério Público Federal, como consequência da fragilização estrutural produzida na EBC, com “a subordinação da empresa às diretrizes do governo e o condicionamento
às regras estritas de mercado”, abre-se o espaço para a prática da “censura de natureza política, ideológica e artística”, tanto pela definição da linha editorial e da programação na perspectiva dos interesses dos governantes, quanto pelo silenciamento de vozes que ousem divergir do governo.

3. Ignora os benefícios trazidos pela EBC ao país

Apesar dos poucos recursos, o projeto de comunicação pública que vinha sendo desenvolvido pela EBC e seus veículos apontava para o caminho certo, seguindo bons exemplos internacionais de sistemas públicos de comunicação no mundo. Em 2015, um dos principais veículos da empresa, a TV Brasil, foi a emissora que exibiu o maior número de longas-metragens nacionais, veiculando ao todo 120 brasileiros. A Globo, segunda colocada, exibiu 87 filmes e a TV Cultura (SP), 55.

A TV Brasil também é o único canal da TV aberta com programação infantil, revertendo uma lógica imposta pelo mercado de que hoje, no Brasil, só podem assistir programas infantis as famílias que quem tem dinheiro para pagar uma assinatura de TV.

Diariamente, mais de 3.000 mil veículos reproduzem os conteúdos de texto e foto de qualidade que são produzidos pela Agência Brasil e distribuídos gratuitamente para qualquer mídia. Esse tipo de impacto não se mede com os cálculos tradicionais de audiência da mídia comercial.

4. Não resolve – e sim agrava – os problemas de eficiência da EBC

Segundo parecer do Conselho de Comunicação Social (CCS) do Senado Federal, a MP 744 não resolve os problemas da EBC. Pelo contrário. Nesta nova estrutura, a empresa tende a responder ainda mais diretamente às demandas do governo federal. Não se pode falar em eficiência se o principal órgão de controle social foi extirpado do cenário. Com a extinção do Conselho Curador e do mandato para presidente, todos os princípios definidos para a comunicação pública na lei perdem a materialidade. Por isso o CCS deu parecer defendendo que as prerrogativas do Conselho Curador fossem resgatadas.

Sua existência, com participação majoritária da sociedade civil, era fiadora do caráter democrático e do cumprimento das funções constitucionais da comunicação pública – e não obstáculo à obtenção da eficiência administrativa. Quem será responsável por essa fiscalização agora?

Chega a ser paradoxal, no momento em que a sociedade e o Poder Judiciário reivindicam medidas de controle sobre o Estado e, em particular, sobre as empresas estatais, que a única empresa pública a ter, definido por Lei, um Conselho Curador – ativo e operante – seja vítima de uma medida que justamente impede o exercício deste controle social.

5. Ignora os resultados do trabalho do Conselho Curador

O Conselho Curador da EBC era o elo de ligação entre a comunicação pública e a sociedade, com atuação focada em manter a empresa autônoma em relação ao governo e à iniciativa privada. Composto por 22 membros, entre representantes da sociedade civil, do governo e do Congresso
Nacional, o colegiado tinha como missão zelar pelo caráter público da programação da EBC.

O Conselho tinha ampla representação das mais diversas esferas sociais. Desde a sua instalação, realizou 70 reuniões, 11 audiências e 7 consultas públicas. As reuniões de pleno resultaram em 45 resoluções com determinações para a programação e processos da EBC, e as discussões produziram parâmetros para a comunicação pública em todo Brasil.

Em 2015, o Conselho organizou o Seminário Modelo Institucional da EBC, que apontou justamente para a necessidade de ampliar os mecanismos de autonomia em relação ao governo federal e de participação da sociedade civil. A MP 744 vai na contramão dos resultados do seminário.

6. Recebeu críticas contundentes dos órgãos internacionais

A importância de um sistema público de comunicação no Brasil já tinha sido objeto de diversas manifestações da Relatoria Especial das Nações Unidas sobre Liberdade de Opinião e de Expressão e da Relatoria Especial da OEA para este tema, que reconhecem que, diante de um cenário indevido de concentração da comunicação, o sistema público cumpre um papel fundamental para a promoção da diversidade no Brasil.

Após a edição da MP 744 em setembro, as relatorias da ONU e da OEA, assim como a Aliança da Mídia Pública Internacional (que reúne mais de 100 emissoras públicas do mundo), e Associação Brasileira de Emissoras Públicas Educativas e Culturais, além do Ministério Público Federal e do Conselho de Comunicação Social do Senado, emitiram notas e pareceres contrários à medida.

Os órgãos destacam que a retirada do caráter público da EBC revela um descompromisso com a construção de um país mais respeitoso e inclusivo, que trate a comunicação como política pública e como um dos direitos humanos fundamentais reconhecidos pelas Nações Unidas.