Macri perdoa dívida bilionária de sua família e culpa Cristina

Uma dívida de mais de 70 bilhões de pesos argentinos (equivalente a R$ 14 bilhões) desapareceu em uma canetada. O autor da canetada foi o presidente argentino Mauricio Macri, e a beneficiada pela medida é a família Macri.

Por Victor Farinelli

Mauricio Macri e Franco Macri - La Nación

Se trata da bilionária dívida que a empresa Correo Argentino tem com o Estado argentino, que se arrasta desde os anos 1990, e que existe praticamente desde que a Sociedade Macri (Socma) adquiriu a empresa, em 1997, após a privatização do serviço estatal pelo governo de Carlos Menem – que tornou a Argentina um dos primeiros países do mundo a privatizar seu serviço postal.

A Socma – ou Grupo Macri, como é mais conhecido – é uma sociedade pertencente ao magnata ítalo-argentino Franco Macri, que também tem entre os sócios três de seus filhos: Alejandro, Mariano e Mauricio Macri – este último, o presidente do país.

O caso vinha se arrastando na Justiça há mais de dez anos, e se encontrava bloqueado devido à falta de acordo entre as partes. O Estado argentino, durante os mandatos de Cristina Kirchner (2007-2014), rejeitou as propostas de pagamento oferecidas pelo Grupo Macri, por considerá-las enganosas. A decisão tomada pela gestão de Macri não só libera a família Macri de 98,82% da dívida que havia pendente como ainda outorga um prazo de 16 anos (até 2033) para quitar a porcentagem restante.

Porém, ainda pode haver outras complicações judiciais para o presidente argentino, já que a suspeita de conflito de interesses está sendo analisada pelo Ministério Público do país. Segundo o informe da promotora Gabriela Borquín, responsável pelo caso, “foi o Estado Nacional quem solicitou a audiência” para resolver o tema da dívida, e também “foi [o próprio Estado] quem se adiantou – segundo consta no expediente judicial – que poderia decretar conformidade em caso de não haver melhora na proposta”.

Culpa de Cristina

Em sua defesa, o governo argentino descarta que existam conflitos de interesse, e aponta que a verdadeira responsável pelo perdão à dívida da família Macri não é o presidente Mauricio Macri, e sim sua maior adversária política: a antecessora Cristina Kirchner.

Numa recente coletiva de imprensa, Marcos Peña, chefe de gabinete do governo de Macri, disse que o governo anterior é o verdadeiro culpado pela situação, por não ter aceitado as propostas anteriores oferecidas pelo Grupo Macri. “O Estado entrou numa discussão legal, e após 12 anos de desídia, não houve nenhuma resolução por parte das autoridades (…) é importante investigar por que não se fez um acordo durante o kirchnerismo. Acreditamos a explicação de que não estavam satisfeitos com a oferta é muito pobre”, disse o secretário de Macri, que insinua que os erros – talvez ilícitos – da ex-mandatária teriam obrigado Macri a decidir pelo perdão que favorece as empresas de sua própria família.

Peña também disse que “aqui não tem nada estranho, o que existe é a vontade de resolver um problema que muitos desses opositores, como a ex-presidenta, criticam levianamente, quando foram eles que não resolveram quando governavam”. Logo, finalizou dizendo que “é muito importante ser consciente da sensibilidade que o caso pode gerar, porque depois do festival de corrupção que assistimos em 12 anos (de kirchnerismo), este governo deixa absoluta transparência e tranquilidade”.

Uma privatização fracassada

Em março de 1997, o então presidente Carlos Menem outorgou a concessão do Correo Argentino ao Grupo Macri, fazendo com que a Argentina fosse um dos primeiros países do mundo a ter seu serviço postal operado exclusivamente pelo setor privado.

Segundo o contrato, o Grupo Macri seria dono da concessão dos correios durante 30 anos. Em troca, deveria pagar ao Estado nacional um valor semestral de 51,6 milhões de pesos (cerca de R$ 10 milhões). Porém, a empresa começou a se esquivar do pagamento desse valor semestral, já em 1999.
Dois anos depois, em meio à crise do “corralito”, a dívida do Grupo Macri com o Estado já superava os 200 milhões de pesos, considerando somente os pagamentos semestrais pendentes. Além disso, a empresa começou a enfrentar uma crise interna, com atraso nos salários dos empregados a partir de julho de 2001.

Para se ter uma ideia do resultado da gestão dos Macri na empresa Correo: a Socma assumiu uma planta que contava com cerca de 20 mil trabalhadores e que não tinha passivos financeiros. Durante os quatro anos de administração privada, empresa cortou quase metade dos funcionários (contava com 12,8 mil em 2001), e grande parte dos que ficaram foi à Justiça reclamar de abusos, porque a empresa os obrigava a fazer trabalho dobrado. Apesar deste corte de gastos, a empresa passou a ter balanço negativo, razão pela qual começou a atrasar o pagamento exigido por contrato ao Estado.

Tantos problemas levaram a empresa a ser reestatizada, o que finalmente aconteceu em novembro de 2003. A rescisão do contrato de concessão do Correo Argentino ao Grupo Macri foi uma das primeiras medidas adotadas pelo então recém assumido presidente Néstor Kirchner. Foi a primeira reestatização realizada pelo kirchnerismo, iniciando um processo de recuperação do patrimônio nacional que havia sido entregue durante os anos 1990 pela administração de Menem. Logo após voltar ao controle do Estado, Correo Argentino teve um balanço positivo em seus primeiro ano fiscal completo, apresentando um lucro bruto de 99 milhões de pesos (quase R$ 20 milhões).

Outro presidente-empresário complicado

Mauricio Macri não é o único presidente da nova direita latina acusado de atuar em favor dos próprios negócios. O outro caso é de um hoje ex-presidente, que também é um megaempresário em seu país. Tratase de Sebastián Piñera, que governou o Chile entre 2010 e 2013 e que enfrentou, durante o seu mandato, um diferendo marítimo entre o seu país e o vizinho Peru na Corte Internacional de Justiça de Haia.

Em novembro de 2010, com Piñera já ocupando o Palácio de La Moneda, a empresa Bancard, de sua propriedade, comprou ações da pesqueira peruana Exalmar, quando o litígio marítimo com os peruanos já estava tramitando no tribunal internacional. Porém, o primeiro registro público dos investimentos de Piñera na Exalmar só ocorreu em agosto de 2012, poucos meses antes dos dois países apresentarem suas audiências públicas em Haia.

Em janeiro de 2014, a Corte Internacional de Justiça anunciou uma decisão favorável ao Peru, já que, com uma mudança no ângulo do paralelo que determina a fronteira marítima, levou o país inca a conquistar 50 mil quilômetros quadrados de mar territorial que antes eram do Chile. A decisão também favoreceu a empresa Exalmar, de Sebastián Piñera, mas o caso e o possível conflito de interesses a respeito só viraram notícia em 2016.

Com a revelação do caso pela imprensa chilena, em novembro passado, se questiona se o ex-presidente – que também é pré-candidato para as eleições chilenas deste ano, nas quais pretende retornar ao poder – usou a informação privilegiada a qual tinha acesso como chefe de Estado para fazer seus negócios. Ele alega que, durante o seu mandato, seus negócios passaram a ser administrados por um blind trust, e que portanto ele não poderia haver influído na decisão de comprar ações da Exalmar. Porém, as investigações a respeito do caso indicam que entre os administradores do blind trust estavam alguns dos advogados que trabalharam para ele em empresas como LAN Chile (hoje Latam) e o canal de tevê Chilevisión, e até mesmo o seu filho, Sebastián Piñera Junior.

Outra curiosidade é que um dos membros do diretório executivo da Exalmar durante boa parte desse período hoje investigado é ninguém menos que Pedro Pablo Kuczynski, o atual presidente do Peru, que deixou a empresa somente em dezembro de 2015 – e o fez justamente para poder se candidatar à presidência do seu país.

Além de Kuczynski, Piñera também tem forte amizade com Mauricio Macri. Foi por sugestão de Macri, então presidente do Boca Juniors, que Piñera decidiu investir no futebol, como forma de alavancar sua carreira política. Com o futebol chileno fortemente mercantilizado, Piñera não teve dificuldades em se apoderar do clube de maior torcida do país, o Colo-Colo. Ele foi acionista majoritário do Colo-Colo entre 2006 e 2009, período em que afirmava que tinha como objetivo levar o clube a conquistar novamente a Copa Libertadores. O detalhe curioso é que Piñera é torcedor assumido da Universidade Católica, um dos maiores rivais do alvinegro chileno.