A incrível história do jornal metafísico criado por García Márquez

Fazia um calor úmido em toda a cidade. Um calor cartagenero provocado pela brisa do mar, que termina de repente em um velho malecón cercado de muralhas, testemunhas de um passado de invasões piratas e de batalhas marítimas cruéis entre aventureiros e corsários. Era final de outubro e apenas um chuvisco havia caído na cidade alguns dias antes.

Por Albany Flores Garca

Gabriel García Márquez - Reprodução

Em qualquer outra região do continente aquilo teria sido raro, mas não para uma cidade costeira do Caribe latino-americano. Da clara janela do sexto andar do hotel, às cinco da manhã, quando gaivotas voam pela costa em busca de peixes, a imagem de Cartagena das Índias brilhava em minha imaginação, como se fosse o dia em que Santiago Nasar levantara ao amanhecer para aguardar pela chegada do bispo, enquanto os irmãos Pedro e Pablo Vicario esperavam pacientemente pelo momento preciso em que acabariam com sua vida. Ainda que a novela mágica de García Márquez não aconteça em Cartagena, mas no povoado de Rioacha, o Caribe inteiro nos dá essa sensação de velha solidão costeira, marcada por um passado fantasmagórico que ainda passeia por suas ruas.

Às nove e quinze de uma manhã de segunda-feira, saímos em um microônibus Coaster, chamado de rapiditos em Honduras. A maioria dos jornalistas havia chegado dias antes à Colômbia. Estávamos ali vindos de toda Iberoamérica, convidados pela FNPI (Fundação Gabriel García Márquez para o Novo Jornalismo Iberoamericano) para o Encontro Iberoamericano de Jornalismo Jovem e Empreendedor, que reuniu cerca de 60 jornalistas de mais de 17 países para conversar sobre os novos rumos do jornalismo.

O microônibus seguiu devagar pela larga avenida à beira mar, até cruzar a estreitíssima porta que dá acesso à cidade amuralhada de Cartagena e ao seu centro histórico onde está localizado o edifício da Aedcide, palco das atividades do encontro.

Me espantei com a representatividade e heterogeneidade cultural nas ruas de pedras, onde um velho mulato sentado debaixo do sol, na calçada da rua principal, vendia pequenas estátuas de bronze e metal que simulavam com resultado feliz as figuras volumosas de Fernando Botero.

Durante a abertura do evento, enquanto me inteirava do roteiro de atividades, o diretor geral da FNPI, Jaime Abello Banfi, destacou a participação especial de um homem de sobrenome Dávila, que no início da década de 50 havia fundado um jornal com Gabriel García Márquez.

Minha primeira impressão foi que todos me olhavam até que descobri, fascinado, que na realidade olhavam para um senhor de barba completamente branca, com penetrantes olhos azuis e um chapéu caribenho, que havia estado ao meu lado e com quem eu trocara uma tímida saudação. Ele se levantou de repente com um sorriso vivaz, pegou o microfone e se dirigiu emocionado a todos:
– “Muchísimas gracias”, disse, enquanto fazia uma espécie de reverência com seu pequeno chapéu branco. “Estou muito contente de ver tantos jovens e me enche de alegria saber que o novo jornalismo está nas mãos de uma juventude empreendedora, que hoje mais do que nunca deixou para trás o medo”.

Me impressionou a simplicidade com que se dirigiu a todos, a mesma simplicidade de sua pessoa, que até então havia passado quase despercebida entre todos os presentes. Fiquei com uma enorme inquietação. Lembrei de minha infância e dos primeiros anos da adolescência, quando lia e relia os três autores permitidos a mim na casa provinciana de minha avó materna. Um era H. G Wells, e os outros dois eram Julio Verne e Gabriel García Márquez. Eu devia ter uns 12 ou 13 anos.

Recordei as diversas ocasiões em que ficava impaciente esperando que chegaria o dia em que conseguiria emprestado um novo livro de Gabo na Biblioteca Municipal de Yoro, e ouvir a bibliotecária Alicia Sandoval me dizer que definitivamente não, porque havia alguns livros do escritor colombiano que eu ainda não podia ler por ser muito jovem, como quando tentei pegar emprestado O Amor nos Tempos do Cólera ou Notícias de um Sequestro. Por sorte, voltei para minha casa e pude ler o que quis de qualquer autor na Biblioteca Nacional Juan Ramón Molina, localizada no centro histórico de Tegucigalpa, a poucas quadras da casa em que morava.

Agora estava ali ao lado de um homem que de um instante para outro deixou de ser um senhor vestido totalmente de branco sentado ao meu lado direito para se transformar num mestre da vida e das letras e que havia convivido e trabalhado lado a lado com um dos meus autores latino-americanos prediletos. Me senti profundamente afortunado, ao mesmo tempo que fiquei atraído pela personalidade simples de um homem tão importante.

A uma da tarde chegou a hora do almoço. Quis me aproximar do senhor, mas, como era de se esperar, uma fila de jornalistas se formou de imediato para cumprimentá-lo, combinar uma entrevista ou fazer uma foto com ele. Fui para o restaurante e decidi abordá-lo quando ele estivesse sozinho ou menos ocupado. Esse momento chegou, mas ao contrário do que pensei, foi ele quem se aproximou de mim.

− Me emociona que sejas tão jovem e estejas participando deste encontro, me disse, enquanto sorria com os lábios cerrados e os olhos azuis pareciam com a íris de uma serpente.

− Me emociona compartilhar com você este encontro, respondi. Suponho que assim estamos quites, acrescentei.

Ele me olhou com um ar mais amistoso e deu uma risada sonora.

− Por que diz isso?, replicou.

− Sou um dos mais jovens e você é o mais veterano neste assunto.

− Sendo assim, disse ele, isto significa que sou o bisavô do jornalismo a que você se refere, além de ser seu bisavô e de quase todos aqui.

− E desde quando você exerce o jornalismo?, perguntei rapidamente.

Ele me olhou por um instante e quase paternalmente respondeu:

− Desde nunca. Sou linotipista.

‎Fiquei mudo por um momento. Não sabia exatamente o que era ser linotipista. Fiquei envergonhado, mas em seguida me recompus.

− E em que consiste seu trabalho?, perguntei.

− A linotipia é a arte de sentir o que sente um escritor, essencialmente. O linotipista passava os textos dos autores para as prensas, através de uma máquina para compor os textos tipográficos, que fundia o metal das letras de uma linha completa de texto e facilitava a sua composição. Comecei a exercer a profissão muito novo, com 12 anos.

− Ainda trabalha como linotipista?

− Não, sorriu ligeiramente. A linotipia acabou como profissão na Colômbia há mais de vinte anos. Assim que isso me torna um homem especial, pois tenho uma profissão que não existe mais e sou o gerente do único jornal metafísico do mundo.

− O que quer dizer com isso?

− Já vais saber, disse, e voltou para o salão onde estava pronto para participar das mesas-redondas do encontro.

No dia seguinte, no momento principal do evento, Jaime Abello apresentou oficialmente Guillermo “El Mago” Dávila, fundador da Associação Colombiana de Mágicos e gerente de Comprimido, o jornal que fundou em 1951 com Gabriel García Márquez.

Quando pegou o microfone, muito emocionado, a primeira coisa que disse foi que não tiraria o chapéu por temer que um bando de coelhos saísse dali e se espalhase por todo o salão, interrompendo sua história.

Até pouco tempo, El Mago Dávila fizera silêncio sobre seu papel como joven sócio das primeras aventuras do Gabo jornalista, apesar de García Márquez tê-lo citado em seu livro de memorias Viver para contar. Se acomodando na cadeira, começou a contar sua história, citando uma entrevista realizada por Gustavo Tatis Guerra para El Universal de Cartagena, em março de 2015.


Terceiro número do jornal criado por Gabo em parceria com Guillermo Dávila (el Mago)

 

− O El Universal dirigido por Domingo López Escauriaza, fundado em 8 de março de 1948, me procurou em Bogotá para que eu prestasse meus serviços como linotipista. Fui trabalhar ali quando o chefe de redação era Clemente Manuel Zabala, homem lembrado por sua vasta cultura. Entre os colaboradores estava o jovem Gabriel García Márquez. Foi em 1951, em uma época crítica para o jornalismo colombiano, que esteve sujeito à censura em todo o país. Os jornais de linha liberal deviam trazer um aviso na primera página: “Esta edição está sob censura oficial”. Como linotipista compus os escritos originais de Gabriel. Nos unia, além da amizade, a juventude. Estávamos com 22 e 24 anos de idade. Nas horas de descanso e de conversa, voltei a ter o desejo de editar um jornal. García Márquez foi para mim o companheiro ideal… Nunca pensamos nos custos da redação pois eu e Gabriel fazíamos tudo. Ninguém nos deu apoio. Os comerciantes turcos que dominavam o comércio de Cartagena não nos deram nem dez centavos. Os únicos e valiosos estímulos foram de meu pai Julio Enrique Dávila Villamizar, tipógrafo, que costumava dizer todos os dias: “E aí, Guillo… Como estão as coisas? O que diz o diretor Gabo? Quantos anúncios te deram os turcos? Vocês vão ser grandes! O jornal vai crescer!”.

Comprimido surgiu em 1951, tendo Gabriel García Márquez como diretor e Guillermo Dávila como gerente. Se sustentou graças a 128 pesos, todas as economias de Dávila. Foram publicados três números, com oito páginas cada um. A história é contada no livro Gabo jornalista, na edição preparada por Héctor Feliciano:

“Entre 18 e 23 de setembro de 1951 Garcia Márquez publicou em Cartagena, como diretor e talvez único redator, Comprimido, um jornal gratuito de tamanho médio, com oito páginas, que não se encontram mais exemplares, tendo como sócio Guillermo Dávila, apelidado de “El Mago”, o mais jovem linotipista do El Universal, que lhe deu a ideia tendo como modelo o jornal conservador El Fígaro.

Nas palavras de Gabo, no primeiro editorial: 'Comprimido não é o menor jornal do mundo mas almeja sê-lo com a mesma tenacidade com que outros aspiram a ser os maiores… Esta iniciativa – como lhes apresentamos com interesse – tem o privilégio de prosperar ao custo de sua própria falência'. No último editorial o descreve como 'o primeiro jornal metafísico do mundo'.

Desde que Comprimido desapareceu deixando de ser o jornal que aspirava se transformar no menor do mundo, para se converter no primeiro jornal metafísico da história, e depois da morte de seu diretor-redator, El Mago, em seu cargo de gerente do jornal, aguarda o instante − que a espera que se prolongue − em que por fim se reunirá com o grande criador do Realismo Mágico, para seguir fazendo magia.