Carlos Campelo Júnior: O descompasso entre o Brasil real e o legal

“Em um país onde as desigualdades sociais, os problemas raciais, todos os demais tipos de preconceitos e violências de toda sorte que, até bem pouco tempo eram negadas pela nossa elite, ou no máximo camufladas para atender minimamente às pressões sociais, será que foram superados pela ‘crença do poder mágico da Lei ou das ideias’”?

Por *Carlos Campelo Júnior

pessimismo político no Brasil

No Brasil, parece que a finalidade do discurso, da palavra pública, da Lei, tem sido a de esconder e não a de revelar a realidade, como avalia o professor Nelson Piletti, no seu livro História da Educação no Brasil. Transita nestas ações distintas: o que é dito e o que é feito; o real e o camuflado; o desiderato efetivamente querido, e o oficial. Como afirma o poeta Machado de Assis: “o país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco”.

Ao longo da história da organização política e do estado brasileiro, a elite econômica dominante e seus legisladores teimam em manter uma tendência de elaborar “Leis perfeitas”, desconectadas da realidade. Alguns motivados por propósitos sinceros e outros que se aproveitam para usufruir das circunstâncias de um dado contexto histórico ou em benefícios de seus interesses de classe, com a finalidade de distorcer, esconder, camuflar e não revelar a realidade. A aristocracia, desde a chegada do “velho mundo”, tratou de se acomodar, onde fosse possível, com os seus direitos e privilégios, afirma o autor do livro Raízes do Brasil. De acordo com o educador Anísio Teixeira, em relação ao “poder mágico das Leis”, afirma: “a Lei era algo mágico, capaz de subitamente mudar a face das coisas”.

Aparentemente, a crença nos dispositivos legais e no seu poder mágico, tem a pretensão de atender os descontentamentos e superar os problemas culturais e seculares da nossa sociedade, num piscar de olhos. Mas de fato permanecem as injustiças.

No livro Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda avança no “poder mágico das ideias” e pergunta: “Não existiria, à base dessa confiança no poder milagroso das ideias, um secreto horror à nossa realidade”? Afirma ainda: “De todas as formas de evasão da realidade, a crença mágica no poder das ideias pareceu-nos a mais dignificante em nossa difícil adolescência política e social. Trouxemos de terras estranhas um sistema complexo e acabado de preceitos, sem saber até que ponto se ajusta às condições da vida brasileira e sem cogitar das mudanças que tais condições lhe imporiam”.

À luz da história, distorcer, camuflar a realidade, tem sempre a intencionalidade de atender o “grito”, por uma sociedade mais justa em “doses homeopáticas” e manter os privilégios para alguns. Muda-se a lei se for preciso, aperfeiçoa-se se necessário, mas não muda a realidade. É uma característica da nossa elite dominante.

Vejamos por exemplo o surgimento de duas leis do nosso século: a Lei Maria da Penha e, a mais recente, da criação da Lei de Incentivo ao Esporte do Estado do Ceará.

No caso da Lei Maria da Penha, criada 2006, este texto não se propõe a contestar a sua importância na proteção das mulheres, mas a refletir criticamente se, apesar dos avanços do combate à violência contra a mulher em outras esferas, se a injustiça foi solucionada.

Segundo dados do Mapa da Violência contra a mulher, o levantamento mostra que 13 mulheres são assassinadas por dia, em média, no país – uma a cada duas horas – e que as mais desprotegidas são as mais pobres e as negras. O estudo mostra que os índices de violência contra a mulher subiram mais nas regiões Nordeste e Norte e que as maiores vítimas são as negras. Em 10 anos (2003 – 2013), o número de mulheres brancas assassinadas caiu 10%. E o de negras subiu 54%. Os dados apontam que a cada 5 mulheres assassinadas, 3 são negras. 50% dos homicídios envolvem violência doméstica e familiar, ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A violência sexual é mais comum contra crianças e adolescentes do que contra jovens e adultas. Isso permite supor que a violência contra a mulher é mais sistemática e repetitiva do que a que acontece contra os homens. Os dados do relatório apontam que a Lei Maria da Penha não foi suficiente para impedir a violência contra as mulheres.

Já a Lei Estadual de Incentivo ao Esporte, criada em 2014, foi uma conquista e um clamor de todos os setores envolvidos numa construção de uma política contínua do esporte. A Lei que está vigorando há quase três anos não está sendo aplicada, gerando desgastes e críticas ao poder público e frustrações para os atletas, federações, profissionais de educação física e universidades. Um instrumento que deveria fortalecer atividades de caráter desportivo, lúdico e de lazer ao permitir que pessoas físicas e jurídicas destinem parte do ICMS para projetos nas três dimensões do esporte: de participação, educacional e de rendimento; além de construção, reforma ou ampliação de equipamentos, a lei hoje esta natimorta, por inoperância dos gestores públicos.

Após sua publicação e regulamentação, o que assistimos com a Lei de Incentivo ao Esporte é uma completa omissão quanto ao seu descumprimento. Uma Lei que tinha como objetivo fomentar as modalidades esportivas e incluir todas as pessoas de todas as idades, através do esporte. Na ânsia de atender uma demanda legítima, o Estado desconsiderou o cenário prospectivo futuro de incertezas, como a baixa arrecadação dos tributos estaduais, mudança no cenário político nacional que abalou as instituições brasileiras e a economia, diminuição dos repasses dos recursos federais aos estados (o que impacta diretamente na execução orçamentárias e nas despesas das mesmas), falta de antecipação no planejamento dos processos de como fazer de forma clara e transparente as doações, ausência de comunicação e diálogo inter-secretarias afins, unicidade nos processos.

Uma mudança de paradigma da cultura do cidadão é essencial para o cumprimento das Leis, não só na elaboração, mas no acompanhamento e na fiscalização: estas são as principais causas que apontamos pelo não cumprimento dessa Lei de relevância extraordinária e transformadora. Apesar de toda “boa intenção” da sua criação, caímos mais uma vez na falácia do mito, do “poder das leis mágicas”.

Em um país onde as desigualdades sociais, os problemas raciais, todos os demais tipos de preconceitos e violências de toda sorte que, até bem pouco tempo eram negadas pela nossa elite, ou no máximo camufladas para atender minimamente às pressões sociais, será que foram superados pela “crença do poder mágico da Lei ou das ideias?”

As elites interpretam “os ideais de progresso” a seu bel prazer, criando dispositivos legais na tentativa de conciliar a barbárie das desigualdades sociais com o estado liberal pós-moderno. A lei não é um ponto de chegada e sim um ponto de partida. Pelo menos na visão interpretativa literal da norma pelo hermeneuta. Como disciplina social, o direito deve assegurar a cientificidade no olhar do ponto de partida e chegada da Lei, como um movimento contínuo e dialético e o jurista entender e explicar que esse processo de interpretação da norma deve, então, fundar-se em vários elementos além do literal, o sistêmico, social, histórico, finalístico e outros, e não apenas em um deles.

De forma simplista, a lei tem que ter objetivo e vem a atender uma demanda reivindicatória. Se a lei tem ponto de partida tem que chegar a algum lugar. O que dizer então das inúmeras leis criadas que nem partiram? No Brasil do “faz de conta que atendeu” e do “faz de conta que foi atendido”, a possibilidade transformadora da realidade, foi novamente abortada e escondida.

As classes sociais que permanecem à margem das “igualdades de oportunidades”, devem procurar transformar a ação e o agir em atitude de pressão, lutar por mais direitos e manter os que teoricamente já foram conquistados. Ampliar o leque de ação, combater as Culturas das violências e exigir Leis e políticas públicas efetivas que atendam suas necessidades.

Verificamos também que esses problemas históricos da sociedade brasileira, a exemplo da segregação territorial, crises institucionais, uma jovem e fraca democracia, ascensão de forças radicalmente conservadoras de cunho fascista, programas policialesco de conteúdo violento que colaboram com o aumento da sensação de insegurança, baixa frequência escolar, tráfico de drogas, questões econômicas, desemprego, cortes e ameaças de direitos sociais consagrados (trabalhistas e previdenciários), grande concentração de renda, desigualdades sociais, impunidade, questões de gênero e a cor da pele, permanecem, sendo os fatos sociais constantemente presentes na realidade de um país dividido que insiste em manter uma pequena minoria privilegiada, intocável, acima do bem, do mal e das Leis.

Culturalmente concentradora e acumuladora de riquezas, esta minoria dominante é incapaz de aceitar o mínimo de concessão de direitos ou de programas sociais que beneficiem os menos favorecidos, de redistribuir renda, insensível à realidade cruel de uma grande maioria de brasileiros.

Uma questão imprescindível é a participação popular em todo processo. Elegemos os parlamentares (legisladores), muitas vezes sem lembrar nem o nome, quanto o mais a quem ele representa. A população tem que começar a olhar mais para o Poder Legislativo. O parlamentar-legislador é um representante eleito pelo povo, que deveria se comportar como um espelho da realidade social, na busca da utopia do “Bem Comum”.

Bem Comum entende-se em criar Leis que se preocupam em atender interesses coletivos na esperança de que consigam curar mazelas sociais que comprometem a convivência entre os indivíduos. A tarefa de legislar não é fácil! E muitos legisladores, não merecem crédito por não levarem a sério o exercício de suas atribuições e prerrogativas, além de terem seus nomes envolvidos em escândalos de corrupção. Aí esta a nossa classe política para confirmar esse fato: alguém acredita na sua retórica e em seus propósitos anunciados? Sem vigilância, pressão e organização popular não é possível transformar nossa realidade. Estes fatores continuam definindo quem vive e como vive,“quem apanha no tronco” ou quem morre, numa realidade crescente e sistêmica da violência, dos conflitos sociais e da omissão do Estado, independente das “crenças mágicas das ideias e das Leis”na mudança da nossa realidade.

*Carlos Campelo Júnior é professor e ex-secretário executivo da Secretaria de Esporte e Lazer de Fortaleza (Secel).

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