Chile e Bolívia, um conflito a ponto de sair de controle

Dias atrás, dois policiais militares chilenos foram detidos pela polícia boliviana após perseguirem um veículo que eles consideravam suspeito.

Por Victor Farinelli

Fronteira entre Chile e Bolívia - Divulgação

Na perseguição, os chilenos avançaram mais de 10 quilômetros dentro do território do país vizinho, sem a devida autorização, o que levou à interceptação da dupla por um grupo de agentes bolivianos. Os policiais transandinos ficaram presos por quatro dias, acusados de transgressão da fronteira, resistência à autoridade, tentativa de fuga, contrabando e porte ilegal de armas.

Após gestões realizadas pelo Ministério de Relações Exteriores do Chile, foram devolvidos ao seu país. Ao cruzarem a fronteira, foram recebidos como heróis injustiçados por uma comitiva liderada pelo comandante chefe dos Carabineros de Chile (a polícia militarizada chilena). Algumas autoridades chilenas alegaram que o caso se tratou de uma espécie de vingança por parte da polícia boliviana.

Isso porque um episódio semelhante aconteceu entre março e junho deste ano, mas com os papéis invertidos. No dia 19 de março, um grupo de nove oficiais bolivianos, entre policiais e agentes aduaneiros, perseguiram um caminhão que supostamente continha contrabando, e durante o incidente foram interceptados e detidos pela polícia chilena.

Os bolivianos foram presos acusados de estar colaborando com os contrabandistas. O governo da Bolívia respondeu dizendo que se tratava de um operativo de busca e apreensão, baseado num acordo verbal entre as aduanas chilena e boliviana para permitir ações desse tipo nas fronteiras andinas entre os dois países, que possui trechos onde não há limites bem delimitados, e onde há caminhos de terra clandestinos, os quais são usados por contrabandistas.

Essa alegação, aliás, foi a mesma usada pelos chilenos para defender seus policiais no caso mais recente, mas as autoridades chilenas rejeitaram o argumento naquele então e mantiveram os bolivianos presos por três meses. Durante esse tempo, o Ministério da Justiça da Bolívia chegou a acusar o Chile de tortura contra os seus agentes presos, durante um evento oficial da OEA (Organização de Estados Americanos).

Em junho, a Justiça chilena condenou os nove bolivianos pelos crimes de contrabando e porte ilegal de armas, mas aceitou que a pena de prisão fosse transformada em deportação e proibição dos agentes em ingressar novamente em território chileno. Em seu regresso, os nove agentes também foram recebidos como heróis em La Paz, e condecorados pelo presidente do país, Evo Morales.

Aos poucos, o que antes era uma picuinha entre os vizinhos começa a ganhar contornos perigosos, com declarações em tom confrontacional de ambos os lados, com os agentes policiais fronteiriços envolvidos e enfrentados, numa tensão que só faz crescer e que parece estar a apenas uma faísca para explodir, embora nenhum dos dois se atreva a fazer esse movimento definitivo.

Porém, existem dois elementos que podem tornar o panorama ainda mais complicado. Um deles é a intensa disputa entre os dois países na Corte Internacional de Justiça (CIJ), em Haia. São dois os casos que o tribunal avalia, envolvendo chilenos e bolivianos: um sobre a soberania sobre o Rio Silala (cujo leito passa pelos dois territórios) e outro sobre o que a Bolívia considera um compromisso chileno de negociar uma saída marítima soberana – esse segundo caso deveria já ter uma resolução definitiva entre o final deste ano e princípios de 2018.

Diferente do que aconteceu em 2014, quando a CIJ decidiu sobre um diferendo marítimo entre Peru e Chile – com uma sentença conciliatória, porém parcialmente favorável à estratégia peruana, já que entregou ao país cerca de 38 mil km² que antes pertenciam ao mar territorial chileno -, a disputa marítima entre chilenos e bolivianos envolve orgulhos feridos de forma muito mais profunda. Neste caso, é muito difícil que uma resolução evite uma maior confrontação entre vencedores e vencidos, ou mesmo que busque uma saída salomônica.

O outro elemento que pode levar a relação entre os países ao ponto de ebulição é a possível volta da direita ao poder no Chile. Mesmo a atual presidenta Michelle Bachelet não está isenta de fomentar a controvérsia, mas ainda assim busca fugir de uma postura verdadeiramente beligerante, cuidado que a oposição não pretende manter nem mesmo durante a atual corrida presidencial – que ainda não está definida, mas que apresenta o mega empresário e ex-presidente Sebastián Piñera liderando com 26% das intenções de voto, sendo o favorito para vencer o pleito.

Em sua nova empreitada presidencial, Piñera vem fugindo um pouco da imagem mais liberal de outros tempos, e assumiu alguns elementos do discurso usado pelo presidente estadunidense Donald Trump quando foi candidato, defendendo leis mais duras para os imigrantes e uma postura mais hostil para com os países vizinhos, especialmente a Bolívia.

Caso ele retorne ao Palácio de La Moneda, dificilmente veremos cenas como as do seu primeiro mandato, quando ele chegou a convidar Evo Morales e seus assessores para jogos de futebol e churrascos. Algumas farpas trocadas entre correligionários de Piñera e figuras políticas ligadas a Evo nos últimos meses mostram que o presidente indígena é um dos inimigos escolhidos pela direita, e isso tende a ser usado politicamente caso o setor volte ao poder – assim como Evo e todos os seus antecessores sempre usaram politicamente os problemas históricos com o Chile para buscar apoio popular.

A diferença é que agora o tom que parece estar a ponto de sair das bravatas. E talvez isso não seja involuntário, para nenhum dos dois lados. Nos últimos dois anos, tanto Chile quanto Bolívia realizaram exercícios militares em regiões próximas à fronteira em comum – e se acusaram mutuamente, dizendo que os exercícios eram uma forma de provocação. Nas aduanas, o clima é de tensão permanente: agentes chilenos e bolivianos sabem que qualquer novo deslize, em operações que antes eram aceitas normalmente pelos dois lados, pode ser alvo de uma nova represália. Situação que, junto com a forte expectativa que existe nos dois países pelas decisões em Haia, faz com que a possibilidade de um conflito fora de controle já não esteja somente nas mãos dos mandatários.

Problemas que deveriam ter maior atenção dos demais países da região, mas que são deixados de lado devido a um cenário onde muitos países se dabatem em suas próprias turbulências internas, sejam elas políticas, econômicas, sociais ou um pouco de tudo isso, e onde os organismos multilaterais, como a OEA e o Mercosul, só têm olhos para os problemas internos da Venezuela. Em breve podemos nos deparar com um conflito muito mais complexo, que parecerá ter surgido do nada, mas que já vem sendo encubado há bastante tempo.