Tensões entre vida e obra nas biografias de Lima Barreto

A homenagem feita pela Feira Literária Internacional de Paraty (Flip) a Lima Barreto (1881-1922) vem movimentando o mercado editorial: são lançamentos e relançamentos, em edições críticas e/ou esteticamente bem trabalhadas. A variedade é considerável.

Lilia Moritz Schwarcz - Adriana Vichi

Talvez a obra que mais tenha repercutido na crítica jornalística seja Lima Barreto – Triste Visionário, uma biografia escrita por Lilia Schwarcz e recentemente lançada pela Companhia das Letras. Outra biografia do autor foi relançada, desta vez pela Autêntica: A vida de Lima Barreto, escrita pelo pesquisador Francisco Assis Barbosa – o primeiro trabalho sério e amplo de resgate da obra de Lima Barreto, na década de 1950.

Diante deste movimento em torno da obra de Lima Barreto, publicamos hoje um texto crítico escrito por Carmem Lucia Negreiros, professora da UERJ e especialista na obra de Lima Barreto. Ela cotejou as duas edições e teceu considerações sobre a pesquisa publicada por Schwarcz em Triste Visionário.

Carmem Negreiros é autora de Trincheiras em sonho – ficção e cultura em Lima Barreto e Lima Barreto e o fim do sonho republicano. Ela acaba de lançar, pela EdUSP, Lima Barreto, caminhos da criação.

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Em meio a tantas comemorações e festas, a obra de Lima Barreto ainda desafia, pois chama atenção a carência de novos estudos críticos, apesar das muitas reedições dos seus textos.

Entre as homenagens motivadas pela Flip 2017, destacam-se o lançamento de uma nova biografia (Companhia das Letras) e a reedição de A vida de Lima Barreto, de Francisco de Assis Barbosa (Autêntica). Seria a vida do escritor tão fascinante a ponto de ofuscar o interesse pela leitura crítica de sua obra?

A reedição da biografia de Francisco de Assis Barbosa traz um breve prefácio de Beatriz Resende e mantém os diversos prefácios das edições anteriores que expõem a trajetória da obra, os acréscimos e apoios recebidos, os caminhos da vasta pesquisa. Publicada pela primeira vez em 1952, ainda guarda viva a emoção, descrita pelo biógrafo, do encontro dos manuscritos, a luta pela recuperação de diferentes originais, o contato com os herdeiros. Estão ali as saborosas conversas com os amigos e familiares do escritor, as dificuldades da família de sua mãe, os percalços dos Pereiras de Carvalho, a trajetória da formação do jovem Lima Barreto, as nuances da vida literária, as reflexões acerca das obras e personagens, além de muitos trechos de romances, contos, crônicas e memorialística, assim como referências à recepção crítica dos textos literários.

A vida de Lima Barreto demonstra sua importância e vigor quando posta em diálogo com Triste visionário, a nova biografia do escritor feita por Lilia Moritz Schwarcz. A autora assume-se devedora da obra de Francisco de Assis Barbosa, “impossível não tê-la como ‘guia’ de viagem” (p.19). E afirma: “esta não é a história de Lima Barreto(…) Esta é a minha história, aquela que aprendi com ele” (p.19).

De fato, Triste visionário constitui-se a partir das sequências, temas, comentários críticos e depoimentos apresentados por Francisco de Assis Barbosa. Utiliza as mesmas referências, depoimentos, dados sobre a família/amigos e documentos. Mantém, ainda, a associação da vida do escritor a aspectos de sua obra.

Como historiadora, Lilia Moritz Schwarcz recupera aspectos histórico-culturais, amplia cenários e paisagens por onde o autor e sua família viveram. Relata os processos históricos que cercaram a Abolição, tanto no Brasil quanto na América Latina, e apresenta o dia a dia de afrodescendentes pobres, como os pais de Lima Barreto, que acreditavam na educação (como já apontara Francisco de Assis Barbosa) enquanto possibilidade de vencer o “cipoal” de poderes – na expressão do próprio Lima Barreto.

Apresenta, portanto, um painel da vida carioca e brasileira das primeiras décadas do século 20, detalha os cenários e personagens de ruas, botequins, bondes e subúrbios; trata das tensões sociais acerca do trabalho, a chegada dos primeiros imigrantes, as greves operárias e os movimentos políticos, além de vasto quadro das teorias raciais que inflamavam os intelectuais e interferiam na sociabilidade urbana.

Destaca-se, ainda, interessante levantamento de trechos das obras do escritor carioca que se referem a negros, “mulatos”, “mulatas” ou, como pontua a autora, todas “as cores de Lima”. Nesse bom momento do livro, o painel histórico se aproxima da escrita extremamente visual do escritor.
No entanto, lidar com duas grandes figuras intelectuais, Francisco de Assis Barbosa e Lima Barreto, implica riscos. E muitos.

Para acompanhar o ritmo do biógrafo dos anos 1950, Schwarcz também parte da premissa da vinculação das etapas da vida do escritor a suas obras. Nessa linha, o romance de estreia de Lima Barreto (e depois toda a sua literatura), Recordações do escrivão Isaías Caminha, aparece como na crítica dos contemporâneos do escritor: um romance à clef. Embora não considere o romance uma obra de grande qualidade estética, chamando-a de satírica, Francisco de Assis Barbosa se furta de imprimir-lhe um rótulo e passa a palavra para a recepção crítica. Mas, para a autora de Triste visionário, o romance, apesar de muito lido, “pede uma espécie de ‘bula’, especialmente na segunda parte para sua plena compreensão” (p.231), acrescentando que “soa rancoroso” (p.219) e “menos cuidadoso” (p.220). E conclui: o romance “é mesmo à clef e concede muito aos gostos e desgostos de Lima” (p.226).

Uma afirmativa bem categórica, a despeito de Francisco Barbosa ter apontado que “de todas as restrições da crítica ao seu livro, o que mais magoou o escritor foi terem considerado a sua obra de estreia um romance à clef”(p 188). Lima Barreto lutou até perto da morte contra esse argumento.

A própria recepção crítica vem debatendo as estratégias ficcionais do romance até hoje. Desde Lúcia Miguel Pereira que, nos anos 1940, considerou a obra exemplo de domínio da narrativa psicológica, mas manteve a observação da presença de atitude personalista na segunda parte [nota 1], até os debates que prosseguiram com Carlos Fantinatti, Osman Lins, Antonio Arnoni Prado, Alfredo Bosi, Robert Oakley, entre outros, nos anos 1970-2000.

Se a escrita de Recordações do escrivão Isaías Caminha muito incomodou os contemporâneos de Lima Barreto, hoje não deveria surpreender tanto, uma vez que, como afirma o crítico Silviano Santiago, “inserir alguma coisa (o discurso autobiográfico) noutra diferente (o discurso ficcional) significa relativizar o poder e os limites de ambas, e significa também admitir outras perspectivas de trabalho para o escritor e oferecer-lhe outras facetas do objeto literário, que se tornou diferenciado e híbrido” [nota 2].

Para Lilia Moritz Schwarcz, Recordações do escrivão Isaías Caminha seria um romance datado?
Refletir sobre a obra literária considerando as ambivalências da vida do autor é tarefa complicada. A saída que a autora encontrou para o dilema foi adotar o selo à clef, compreendendo as demais obras do escritor dentro dessa chave de leitura.

Assim, Triste fim de Policarpo Quaresma seria sua obra “não exatamente à clef” (p.304), com leitura próxima ao belo estudo de Silviano Santiago, em “Uma ferroada no peito do pé”. Já Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá seria seu livro “mais equilibrado e autobiográfico” (p. 466) e ao qual a autora dedica menor quantidade de comentários, bem diferente das longas paráfrases que marcam as referências às demais.

Em Triste visionário, desponta um Lima Barreto autor de literatura à clef. Segundo a historiadora “realizar uma literatura à clef no seu caso, implicava abrir uma porta em duas direções: para dentro e para fora. Não restam dúvidas de como, de um lado, a realidade social era seu fermento na construção de suas narrativas, no desenho de seu destino, na discriminação dos preconceitos, na descrição dos padrões de sociabilidade distintos que vêm sendo criados durante a República. De outro o próprio escritor se moldava e de maneira reflexiva pela 'verdade' de seus protagonistas. Era sempre Lima, na mesma medida em que ia assim se transformando em cada um de seus personagens” (p.429).

Lilia Moritz Schwarcz debate-se no terreno movediço que é a obra de Lima Barreto. Nela, o autor insere novas formas de pensamento e percepção, questiona os limites do indivíduo, estende as fronteiras entre gêneros. Expor os conflitos da subjetividade representa forte característica da sua produção literária. No entanto, esse debate fica empobrecido pela tentativa da historiadora de projetar sem mediações as atitudes do escritor em seus textos.

Nesse caso teria sido muito útil a volta ao “guia”, à obra de Francisco de Assis Barbosa : “Mas aí quem fala não é Lima Barreto, e sim um personagem, ainda que na qualidade de porta-voz do romancista. Nada de conclusões apressadas, portanto”(p. 309). Ou, ainda, considerar as observações críticas feitas pelo próprio biografado quando ele comenta, por exemplo, a obra de Machado de Assis. Segundo Lilia: “Lima buscou ainda separar a vida da obra de Machado” (p. 329). Pelo visto, a obra de Lima Barreto não teve o mesmo tratamento cuidadoso.

Schwarcz talvez tenha se tornado presa das fascinantes e conhecidas ambivalências que marcam o pensamento, atitudes e escolhas do escritor. A obra Triste visionário se ressente disso na sua própria composição. Pelo gigantismo de dados, torna-se repetitiva quando os mesmos assuntos e temas voltam à narrativa. Algumas das afirmações diante do objeto surpreendem pelas contradições entre si.

De um lado, observamos muitas passagens interessantes, que pontuam a dúvida diante de objeto tão sedutor quanto os escritos literários de Lima Barreto: “Literatura nem sempre é boa etnografia ou documento aferível – no sentido de ser fiel ao contexto que procura descrever” (p. 166). Ou, ainda: “se o relato de Lima é bem testemunho, e muitas vezes parece etnografia fina, não deixa de ser narrativa de alto teor ficcional” (p. 187). Por outro, encontram-se tentativas de aprisionar as contradições e tensões da obra e da vida do escritor em frases de efeito como “Lima Barreto acredita tanto na representação que nela se enreda” (p. 235) ou a de que o escritor carioca “faz da sua literatura um bom pretexto para a crítica social” (p. 253).

Outros problemas chamam atenção ao longo da biografia. Atribuir a Lima Barreto a fala de personagens (p.58). Usar citações que são referentes a algum momento da vida do autor que, segundo a historiadora, é o ano de 1911, mas que, na verdade, correspondem ao ano de 1917 (p. 271). Ao comentar o prefácio do romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha, Schwarcz afirma que “Os recursos literários, apesar de previsíveis em seu conteúdo, são bastante inovadores na forma” (p. 216). Logo em seguida, voltam os argumentos em torno do romance à clef – o que faz questionar a coerência da reflexão proposta, visto que são afirmativas de ordens distintas. Trata-se de um conjunto de pequenas incongruências que demonstram o vaivém da biografia entre os inúmeros acontecimentos histórico-culturais e os fragmentos literários selecionados.

Os capítulos finais de Triste visionário tratam da morte do escritor, como em A vida de Lima Barreto. Ali estão os mesmos depoimentos colhidos por Francisco de Assis Barbosa sobre o velório, as pessoas presentes, o enterro, realizado sob “uma chuvinha miúda e persistente, chuvinha criadeira”, como descreveu o biógrafo (p.339).

Lilia Schwarcz acrescenta comentários sobre os artigos publicados depois do falecimento de Lima Barreto, seguidos por um levantamento de trechos das obras literárias que tratam da temática morte. Há ainda a associação com o capítulo “O enterro” do romance Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, relacionando-o às cenas do velório do próprio escritor, “com semelhanças que parecem premonitórias” (p.487). Para a autora, Lima Barreto “não perdeu nenhum detalhe ao criar [em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá] a hora derradeira de seu enterro imaginário” (p.487). Segundo Lilia Schwarcz, o escritor criara (no imaginário) a hora derradeira do seu enterro real, em 1922.

Restam perguntas: por que é tão importante, neste ano de 2017, qualificar a obra a partir da vida do autor? Qual a contribuição dessa perspectiva aos estudos literários? Ainda cercada de muitos adjetivos – “ressentido”, “bovarista”, “do contra” –, cresce a figura de Lima, encarado como porta-voz e representante do que a biógrafa denomina “literatura negra”. Se, por um lado, Triste visionário reforça as lutas do escritor com as questões do seu tempo, por outro não deixa de empobrecer a leitura de suas obras quando estas são reduzidas às oscilações temperamentais do escritor ou às ambivalências de sua atuação intelectual e política.