Metá Metá a banda que canta a aridez do Brasil

Metá Metá significa, em língua iorubá, “três em um”. Este trio que atuou no Festival Músicas do Mundo (FMM) 2017, na cidade portuguesa de Sines é uma das revelações da música brasileira.

Por Nuno Ramos de Almeida

Metá Metá - Divulgação

A entrevista começa com bom humor. Somos dois órgãos de comunicação a falar com os três elementos dos Metá Metá Juçara Marçal (voz), Kiko Dinucci (guitarra) e Thiago França (saxofone) ): o i e o site do país vizinho especializado em música Los Festivaleros. Perante este assédio jornalístico, Thiago França insiste em tirar uma fotografia para imortalizar o momento: “Temos que tirar uma foto, é a nossa primeira coletiva de imprensa.” Esta banda de São Paulo é uma das revelações da nova música brasileira. Vindos da área do jazz e com um domínio musical muito grande, o seu som foi-se tornando mais pesado e duro, sem nunca perder complexidade, com músicas fortes em que, apesar da força instrumental, a voz poderosa de Juçara Marçal não fica subjugada. Em vez disso, integra-se nesta batida forte, às vezes quase xamânica. Foram a banda que abriu as hostilidades no Festival Músicas do Mundo de 2017, no palco junto à praia Vasco da Gama, perante milhares de pessoas.Los Festivaleros – Como foi o vosso último disco “Metal Metal”, que vocês gravaram em três dias?Thiago França – As pessoas sempre frisam esse lance dos três dias.i – Provavelmente por serem três, como Metá Metá. [risos]Kiko Dinucci – Foi tudo muito calculado. [risos]

Thiago – Na verdade, quando se fala em três dias, não foi assim: “Ohhhh, foi gravado em três dias…” A gente aprendeu a gravar nesse tempo pela necessidade que temos como artistas independentes. A gente juntou o dinheiro, contou e viu: “Isso dá para fazer o quê? Dá para fazer em três dias.” Foi isso. O dinheirinho juntado de cachê e não sei do quê, e foi o que deu. A gente tem muito pouco recurso, então tem que entrar e resolver. Virou um formato, como se diz, legítimo de fazer. E tem que ver também como o nosso jeito de tocar que é um jeito intrínseco de fazer, a gente vai criando coisas que depende muito um do outro. Às vezes começa-se pela guitarra e eu, em cima do que o Kiko está a fazer, vou vendo o que vou fazer, vamos encontrando os encaixes, junto com a voz. É um processo que só funciona com a gente toda tocando junto. Tem outros estilos em que é possível ir gravando os instrumentos em separado sem ninguém se encontrar, mas isso não dava na nossa música. A gente até colabora em discos de pessoas que são gravados assim. Mas não são o Metá Metá.

Isso é a vossa herança do jazz e das jam sessions.

Thiago – Claro. Todos os discos de jazz foram gravados assim, você aperta o “rec” e toca como se estivesse no palco.

Juçara Marçal – A ideia é aproximar o que se grava ao máximo do que acontece no palco. Se você separasse os instrumentos, ficaria um outro resultado, igualmente válido, mas para o nosso jeito de fazer não funciona muito. A gente grava e faz quase tudo ao primeiro take.

Thiago – As músicas que têm muito improviso acabam de sair sempre de primeira, porque improviso é uma coisa que não dá para repetir. Quando fazíamos o segundo take não dava, já não tinha nada a ver. Em várias músicas, a gente começou a tocar um segundo take e parou no meio. E concluíamos, “relaxa, não vai rolar”, e ficávamos pelo primeiro take.

Há uma evolução nos vossos discos: a sonoridade parece mais dura.

Kiko – Exato. É a nossa vida. A vida dos brasileiros está mais dura e isso reflete-se na nossa música.

Quando pensa em Temer. a bateria bate mais forte [risos].

Kiko – Sempre que pensamos nele, a bateria bate com mais força. É engraçado, em alguns países em que o disco circulou na Europa, em que ninguém entendia as letras em português, quanto mais misturado com o iorubá, os críticos, sem entender a letra nem entender uma única palavra, definiam a letra como uma trilha sonora de um caos político brasileiro [risos]. E a gente: “Nossa, não sabia disso.” Mas é interessante que, de 2013 para cá, o nosso som foi ficando mais duro e panela de pressão. O que tem muito que ver com a situação do Brasil: em 2013 começou a crescer um negócio em que ninguém sabia o que ia dar. E ninguém sabe onde vai dar, pode ainda piorar. A gente tenta melhorar no som para compensar. Faz a coisa dura, mas a gente tem consciência que, às vezes, com um mau momento no país, crise económica, ditadura e golpe, os artistas tendem a ficar mais criativos.

Thiago – E tem o lado da nossa história ser muito mal contada. Mesmo em livros de História. O artista fica com uma aflição nesse sentido, se você vai deixar algo registado que seja algo que retrate um pouco o que está acontecendo. O momento político reflete-se em tudo. Não está apenas ligada à questão do voto. Mas tem implicações em toda a vida: a especulação imobiliária, o aumento de violência, muitas vezes gerada pelo desemprego, uma maior violência policial, tudo é condicionado pela política. Toda essa panela de pressão afeta a cidade, é muito difícil você ficar imune e dizer: “Não, vamos falar do arco-íris e dos dias tão bonitos que estão.”

Sente-se uma mudança mesmo a partir de 2013. Quando se ouve a música de Criolo Louco sobre as manifestações de junho de 2013, há uma certa esperança na melodia e na letra quando ele diz: “Vai, que eu quero encontrar este lugar/ E possa dizer: ‘valeu a pena essa porra de vez!’/ Vai ser assim, senhor.”

Kiko – Deu errado porque estava saindo muita gente para a rua sem saber o que estava fazendo. Tinha o movimento contra os aumentos nos transportes, essas pessoas apanharam muito da polícia, e essa violência gerou uma certa comoção na população e as pessoas saíram para a rua contra o aumento dos transportes. Só que no meio desse povo, as pessoas já começaram a gritar: “Fora a Dilma, fora tudo.”

Juçara – Uma luta meio sem foco.

Kiko – No meio da luta justa dos transportes, que era muito crucial no sofrimento dos brasileiros – toda a gente sofre com os transportes -, no momento que evitaram o aumento e ganharam a causa, o foco mudou. Ninguém sabia mais o que fazer. Invadiram o Congresso e a Dilma até teve uma reação boa, disse que ia apressar a reforma política. Mas logo depois da reeleição, ela foi boicotada pelo Congresso e não conseguiu nem sequer começar a reforma. Curioso que tinha uma embaixadora dos EUA, que estava no Paraguai quando foi lá o golpe, que rapidamente passou a ser colocada no Brasil. Quando aconteceu essa manifestação no Brasil, ela mudou para o Brasil correndo. Em 2014, pouco tempo depois, apareceu um movimento de extrema-direita, o MBL, a disputar as ruas.

A escolha do vosso nome usando a língua iorubá tem um significado político de resgatar parte das culturas indígenas e africanas que são mais invisíveis no Brasil?

Juçara – O iorubá está muito presente na religião que os descendentes de africanos trouxeram consigo, que é o candomblé, com os seus orixás. Os termos que vamos conhecendo são do iorubá e convivemos com esse linguajar e vamos descobrindo mais coisas. Inevitavelmente, isso vai influenciando a nossa música. Ela expressa também essas raízes africanas.

Kiko – A gente absorve muita coisa. Essa cultura iorubá está presente em muitas regiões do mundo: Haiti, Cuba, Porto Rico, Nigéria, e isso também se reflete na nossa música. A influência africana não vem apenas daí. Hoje é possível ver um cara tocar guitarra no deserto no YouTube, conhecer o trabalho de um músico a muitos milhares de quilómetros de São Paulo. A nossa música é permeável a uma cultura pop africana que não é a que veio com os negros para o Brasil.

Thiago – A nossa influência não é só essa. Há um mecanismo nosso que vai muito beber ao free jazz americano dos anos 70 também. Que também, coincidentemente, estava num momento de regressar à procura das raízes africanas. Os negros tinham perdido a conexão e estavam a sentir a necessidade de voltar a olhar para lá. Mas não são só influências históricas. A nossa própria vivência tem um papel. Há o ruído. Eu moro no centro de São Paulo e vivo permanentemente imerso em barulhos e ruídos, o tempo inteiro. Eu acordo com britadeira na minha janela e vou dormir com o camião do lixo na minha janela.

O free jazz também corresponde aos chamados anos de chumbo que foram a ressaca do Maio de 68. Esta vossa inspiração também se deve aos anos difíceis que se vivem hoje na América Latina?

Kiko – Pode ser isso, mas também pode ser mais. Quando se é músico e se começa, há um monte de gente que diz: “Você nunca vai ser o Tom Jobim”, “nunca vai ser tão bom como fulano”. Isso cria-nos a necessidade de procurar novos e outros caminhos. Muitas vezes, esse free jazz muito próximo da sonoridade do rock é uma forma de fugir da comparação. A melhor música feita no Brasil não é feita por músicos, mas por pessoas simples que cantam depois do trabalho. E isso é muito ignorado. Para nós, isso é uma fonte.

Los Festivaleros – E também a viagem que vocês fizeram a Marrocos influenciou bastante este último disco.

Juçara – Foi mais uma inspiração. Nós não fomos pesquisar. Mas as rádios de lá, os sons das ruas, os chamamentos à oração – cinco vezes por dia, os muezins entoavam esse chamamento -, davam uma tonalidade diferente que, de alguma forma, nos inspiraram a tentar outras coisas. Isso entrou no disco.

Kiko – Há um mistério e uma estranheza no ar. Mesmo nas pequenas coisas, como entrando no mercado e ver um cara fritando ovo. Há uma pilha de comida com óleo. A gente olhava para as coisas com olhos diferentes, de fora. Um ovo estrelado permitia-nos sentir outros sons.