Che, o ícone que vai de pensador a revolucionário 

Che, fotografo, escritor e guerrilheiro, deixou para trás não só vontade de lutar por um mundo mais justo e por uma identidade latino-americana, mas também inúmeras reflexões sobre o marxismo e a economia. Permanece sendo um ícone, apesar da apropriação de sua imagem pelo mercado; sendo assim, não poderia ter recebido menos do que inúmeras homenagens 

Por Alessandra Monterastelli *

che guevara - Divulgação

Quando conheceu a luta social e o comunismo, na sua longa viagem pela América Latina, identificou-se totalmente com a causa.

Che escreveu dois diários publicados, um sobre sua jornada de Buenos Aires até Caracas de moto, quando ainda era jovem, e outra sobre a guerrilha na Bolívia, onde veio a falecer. Escreveu “Paisages de la Guerra Revolucionaria” e também um livro sobre o pensamento socialista em Cuba, onde faz reflexões sobre o marxismo e sua adaptação à economia. Foi fotógrafo, cobrindo os jogos pan-americanos de 1953 no México.

Quando assumiu como ministro da economia, fazia aulas de matemática para resolver as coisas de forma prática. Estudou metalurgia, mineração e química. Era um idealista, mas era essencial para ele achar meios de pôr em prática o socialismo, quebrando com o modo de produção capitalista e melhorando a vida em Cuba: “como imprimir a dinâmica revolucionária nas estruturas do Estado? ”. Foi pesquisador assíduo do marxismo, sem deixar de fazer suas críticas; a teoria deveria ser colocada em prática nas formas latino-americanas, considerando as peculiaridades próprias do continente. Como disse Fidel, a Revolução foi fruto de cem anos de história de um povo, que vinha desde a luta contra a escravidão.

Fazia suas próprias reflexões sobre o comunismo. Criticou o socialismo soviético, que fixou preços e criou estímulos comerciais para motivar as pessoas; segundo ele, os soviéticos estavam criando uma mentalidade capitalista.

Escreveu “O Socialismo e o homem em Cuba”, onde, segundo o educador cubano Alcides Carrazana, reflete sobre a ausência, na etapa de transição em que se encontravam, de uma educação para o trabalho social e a adequada distribuição de riquezas para todos, alertando que “com a vontade de fazer sempre o melhor, mas ainda sem todas as ferramentas e condições necessárias, corre-se o risco de cair na tentação dos caminhos desgastados do interesse material”.

Segundo Michael Löwy, formado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro “O Pensamento de Che”, em entrevista para a revista Caros Amigos, disse que “Ernesto Guevara é um dos pensadores marxistas mais criativos e importantes da América Latina. Sua reflexão sobre a revolução latino-americana (…) incluiu uma crítica do papel submisso da burguesia local, uma revalorização do papel revolucionário dos camponeses e uma perspectiva socialista” tudo isso em ruptura com o marxismo-leninismo de corte stalinista. Löwy ainda lembra que Che sempre defendeu a importância da arte para a expressão social. Em “O Socialismo e o Homem em Cuba”, o revolucionário critica abertamente as tentativas soviéticas de impor uma doutrina artística.

As palavras e a luta de Che continuam atuais. Por exemplo, na luta pelas cotas nas universidades, aprovadas na USP apenas esse ano; na exigência por uma universidade mais democrática e plural. Em um de seus discursos sobre a educação, Che proferiu: “que a universidade se pinte de negro, de mulato, não só entre os alunos, mas também entre os professores, que se pinte de camponês, que se pinte de povo, porque a universidade não é o patrimônio de nada e pertence apenas ao povo”.

O ícone

Quando Che foi capturado na Bolívia, estava sujo e com as roupas completamente desgastas e rasgadas. Em entrevista para a jornalista Maíra Streit, da Caros Amigos, uma enfermeira boliviana responsável por limpar o corpo de Che- já sem vida- conta que, devido a sua semelhança com Jesus Cristo (talvez pelos cabelos e pela barba comprida), até hoje fazem missas para Che no pequeno povoado boliviano onde foi assassinado, acreditando que ele operaria milagres.

Em La Higuera, há um busto de Che, no qual lê-se “o seu exemplo brilha um novo amanhecer”. Até hoje, inspira milhares de jovens que também defendem que todos os homens e mulheres devem ser iguais. Jean-Paul Sartre, filósofo francês, alguns dias após a morte de Guevara disse: “Che é o maior ser humano de nossa era”.

Löwy, na mesma entrevista para a Caros Amigos, compara-o com Dom Quixote, personagem idealista que busca combater as injustiças, e que acaba sendo derrotado.

Che passou, através de sua luta e seus princípios, um profundo sentido de humanismo. Sonhador, tornou-se símbolo de toda uma geração. Era contra o sistema, pegou em armas, leu e escreveu poesia e economia política. O jornalista José Eduardo Bernardes, em reportagem sobre como Che se tronou um ícone difundido em todo lugar pela foto de Korda, diz que “a imagem mítica, símbolo de toda uma geração de contracultura espalhada pelo mundo e também do projeto revolucionário cubano”. Ainda na reportagem José Bernardes, ele cita a fala do fotógrafo brasileiro Mauricio Lima, vencedor do Pulitzer 2016, para explicar o porquê de, para os grupos artísticos de contracultura, a imagem de Che se tornou o parâmetro de como agir e se posicionar em uma realidade essencialmente capitalista: “o poder da imagem está no valor que a pessoa fotografada representa, aliado à plataforma de difusão dessa imagem e, claro, os interesses da época”.

Apesar disso, a lógica do mercado se apropriou da imagem do guerrilheiro com a única intenção de gerar lucro, muitas vezes esvaziando o seu real significado. É um debate. Claudia Furiatti, na sua biografia “Fidel Castro- uma biografia consentida”, diz que “Che era movido por conhecimento, experiência, entrega e martírio, com poesia e humor. Os que o assassinaram se encarregaram de eterniza-lo. O tiro saiu pela culatra de certa forma”. E Löwy completa: “há a criação de uma imagem concreta que age sobre o povo para que ele se insurja e organize sua vontade coletiva”.

Contudo, como bem disse a jornalista Monica Rivero, “um novo discurso deve nascer. Será guevarista na medida em que seja rebelde. Ser como Che, supõe não o repetir em nenhum lema”. E esse discurso, essa luta, torna-se extremamente necessária no contexto atual, dominado pelo neoliberalismo e pelo imperialismo. Para Micheal Löwy, contudo, a resposta não estará em ícones, mas na organização de base: trabalhadores, juventude, mulheres, indígenas, negros e de todos os explorados e oprimidos. E reitera: “se as lutas de resistência se desenvolverem, com uma dinâmica subversiva, novos ‘ícones’ aparecerão- e serão provavelmente mulheres”.

As homenagens

“Ser essencialmente humano, ser tão humano que nos aproxime do melhor do que o ser humano possa ser, purificar o melhor do homem por meio do trabalho, do estudo, do exercício da solidariedade continuada com o povo e com todos os povos do mundo (…) desenvolver a sensibilidade ao máximo. Sentir-se angustiado quando se assassina um homem em qualquer parte do mundo ou sentir-se entusiasmado quando em algum rincão do planeta se levanta uma nova bandeira de liberdade” e por fim: deixa-me dizer-lhe, com risco de parecer ridículo, que o revolucionário verdadeiro é guiado por grandes sentimentos de amor. É impossível pensar em um revolucionário autêntico sem esta qualidade”.

Difícil não se deixar levar pela emoção de mudar o mundo com os discursos de Guevara. Suas palavras não inspiraram apenas luta, mas também arte. O Portal Vermelho traz algumas dessas homenagens.

Em 1968, Caetano Veloso compõe “Soy loco por ti américa”, homenageando na letra Che, que acabara de morrer. Em certa ocasião o artista revelou: “Pautei a canção, pedindo que Gil e Capinam fizessem uma homenagem a Guevara e que tivesse essa frase, ‘Soy loco por ti America’, que, aliás, vim a saber que é errada em espanhol. Quando Célia Cruz foi gravar essa música, na verdade, inicialmente ela se recusou ao saber que era uma homenagem a Che Guevara. Mas, finalmente, quando veio ao Brasil, Célia resolveu gravá-la e mudou para ‘Estoy loco por ti America’. Então, acabamos fazendo uma canção em ‘portunhol’ já na primeira frase, mas, na época, não sabíamos disso. Dei essa frase a Gil e Capinam, pedi que fosse uma homenagem a Guevara e também dei outros palpites na letra. Como na época não podíamos botar o nome dele, já que a Censura iria vetar, usamos a frase ‘el nombre del hombre muerto’. Capinam fez uma coisa maravilhosa a partir de um desejo meu. ”

Julio Cortázar, escritor argentino, escreveu e declamou um poema, intitulado “Yo tuve un Hermano” em homenagem a Che:

Che

Eu tive um irmão.
Não nos vimos nunca
porém não importava.
Eu tive um irmão
que ia pelos montes
enquanto eu dormia.
Quis-lhe a meu modo,
tomei-lhe sua voz
livre como a água,
caminhei às vezes
próximo de sua sombra.
Não nos vimos nunca
porém não importava,
meu irmão acordado
enquanto eu dormia,
meu irmão mostrando-me
por trás da noite
sua estrela eleita.

Além de homenagear o revolucionário com longos textos:  

“America te Hablo de Ernesto”, música de Silvio Rodriguez:



E, por fim, Eduardo Galeano, jornalista e escritor uruguaio, o homenageou com um poema:

Por que será que o Che
Tem este perigoso costume
De seguir sempre renascendo?
Quanto mais o insultam,
O manipulam
O atraiçoam
Mais ele renasce.
Ele é o mais renascedor de todos!
Não será por que Che
Dizia o que pensava e fazia o que dizia?
Não será por isso que segue sendo
tão extraordinário,
Num mundo onde palavras
e atos tão raramente se encontram?
E quando se encontram
raramente se saúdam
Por que não se reconhecem?