Publicado 15/11/2017 14:13
Aquela luta social vinha desde o crescimento do abolicionismo, na década de 1880, que culminou com a proibição do trabalho escravo em 13 de maio de 1888.
Estes eventos históricos não podem ser separados – o fim da escravidão e, ano e meio depois, da Monarquia.
Quando o sistema escravista se esboroou, a Monarquia perdeu a razão de existir. Um dos fatores que a explicavam era a vigência do escravismo a nível nacional, do qual ela era a principal garantia.
Entretanto, o escravismo terminou praticamente à revelia do Partido Republicano, que teve participação limitada na luta abolicionista, e paradoxalmente nos eventos que levaram à implantação do novo regime.
A República veio através de um golpe militar. Os militares estavam em crise aberta com o governo monárquico, temendo perder a importância ganha desde a guerra do Paraguai (1864/1870), em concorrência com a Guarda Nacional ligada diretamente às oligarquias provinciais, e que podia concorrer, como força armada, com o Exército.
Os chefes militares pretendiam um Exército moderno, disciplinado e bem equipado. Socialmente, os militares representavam sentimentos e interesses de amplos setores das classes médias urbanas (profissionais liberais, religiosos, estudantes, intelectuais, comerciantes, além dos próprios militares) que se desenvolveram muito na segunda metade do século XIX, e cujos interesses podiam conflitar com os da elite agrária e mercantil-exportadora e com a forma monárquica de governo.
O movimento republicano, cujo marco inicial foi o Manifesto de 1870, era um conglomerado de tendências diversas. O marco da adesão dos grandes fazendeiros escravistas ao movimento de contestação à Monarquia foi a chamada Convenção de Itu (1873), à qual compareceram fazendeiros que aderiram à campanha sem o compromisso democrático e antiescravista do movimento iniciado em 1870.
O movimento ficou polarizado em torno de duas posições fundamentais. Havia a corrente “evolucionista” e reformista liderada por Quintino Bocaiúva, e formada por políticos que representavam donos de terra e escravos, fazendeiros de café e outros membros da classe dominante. Que esperavam a sucessão que seria aberta pela morte de Pedro II para implantar a República, que seria assim resultado de uma evolução pacifica e gradual. Quintino Bocaiúva queria uma "revolução, mas no sentido moral".
O outro pólo tinha líderes democratas radicais como Silva Jardim, Lopes Trovão, ou Teixeira de Souza; queriam mudanças sociais e democráticas mais profundas. Era a ala revolucionaria do movimento, que via na República uma conseqüência lógica da Abolição. Silva Jardim defendia a tomada revolucionária do poder, para que a República não fosse "a monarquia sem o Imperador". Pensava que "só os homens do povo podem governar povos! Não pode levar a nacionalidade pelos caminhos da glória aquele que jamais cansou o cérebro no labutar da ideia, ou calejou as mãos no trabalho honrado". Defendia a que a República nascesse de um movimento insurrecional amplamente popular e não de uma mera quartelada.
Entre esses dois grupos de republicanos históricos estavam aqueles que, embora deplorando a moderação de Quintino Bocaiúva, temiam a revolução popular e procuravam apoio na força militar para depor a monarquia. Um personagem destacado deste grupo era Aristides Lobo.
Finalmente, depois da Abolição, outro grupo aderiu ao movimento republicano: os antigos donos de escravos, descontentes com o fim do regime servil e, mais ainda, furiosos pelo fato de não terem sido indenizados pelo fim de sua propriedade escrava. Entre estes adesistas de última hora figuravam vários políticos destacados do Império, como Prudente de Morais que, como presidente da província de São Paulo, perseguiu propagandistas republicanos e mandou processar, em 1887, vereadores partidários do fim da monarquia.
Os "evolucionistas" de Quintino Bocaiúva prevaleceram no processo que levou ao fim da Monarquia. Os republicanos moderados atraíram para seu lado o Marechal Deodoro, figura de enorme prestígio entre os militares e amigo pessoal do Imperador. A armação desse esquema militar era necessária para permitir aos moderados o controle da transição para a República, mantendo o povo e os republicanos radicais afastados da ação política que levaria ao fim da Monarquia.
A manifestação de dois mil soldados, marcada para 15 de novembro, comandada por oficiais republicanos, pretendia apenas o fim do gabinete Ouro Preto e a nomeação de novos ministros pelo Imperador. Mas o movimento, que só pretendia desagravar o Exército e impor um novo gabinete, defrontou-se com um governo débil, impotente e acéfalo, pois o Imperador se encontrava, naquele momento, em Petrópolis. Assim, aquele pequeno grupo de oficiais republicanos moderados pressionou Deodoro para que proclamasse a República. E o poder acabou sendo tomado por uma aliança entre setores do Exército, fazendeiros paulistas e representantes das classes médias urbanas.
Significativamente, o setor radical do movimento republicano, representado por Silva Jardim, foi marginalizado nestes acontecimentos.
A aliança que derrubou a monarquia era muito débil, contudo. Num primeiro movimento, a facção agromercantil e os latifundiários (capitaneados pelos agricultores de São Paulo, cujos lideres tiveram papel de destaque na conspiração, na proclamação da República, na articulação do novo regime e na Assembléia Constituinte) se aliaram aos militares para produzir no 15 de novembro uma revolução sem mobilização popular.
Essa aliança durou o tempo necessário para cumprir a tarefa de estabelecer e consolidar a República. Ela começou a se desfazer quando os fazendeiros e seus aliados se moveram para assumir plenamente o controle do governo federal. Para isso manobraram para afastar os setores democráticos mais radicais e modernizantes não alinhados com as pretensões de continuidade da oligarquia.
A eleição para a Constituinte foi o momento de marginalização dos republicanos radicais. As regras eleitorais adotadas foram formuladas para favorecer a facção que controlava o governo. Democratas radicais como Silva Jardim e Lopes Trovão foram sumariamente excluídos da Assembléia Constituinte, e apenas candidatos apoiados pelo governo ou por oligarquias poderosas puderam ser eleitos. Foram criados mecanismos políticos que seriam usados, no futuro pela oligarquia para assegurar seu domínio. Um deles foi o direito atribuído às câmaras legislativas para verificar, reconhecer e acatar os candidatos eleitos, dispositivo que esteve na base da chamada “degola” que ocorreu em toda a República Velha. Era o mecanismo pelo qual as maiorias, na Câmara dos Deputados e Assembléias Legislativas, deixavam de dar posse aos oposicionistas que alcançassem, nas urnas, votação suficiente para ocupar os cargos eletivos.
Os grandes fazendeiros moviam-se por razões claramente econômicas. A república, para eles, representava o fim da centralização imperial, a federação e autonomia dos Estados e a possibilidade de impor ao país uma orientação favorável à expansão da economia agro-exportadora.
Os militares e a pequena burguesia, ao contrário, viam-se imbuídos da missão de lutar contra as oligarquias regionais, minar seu poder e estabelecer novas bases para a organização política do país. Por isso, eram favoráveis ao fortalecimento do poder central e de sua capacidade de intervenção nos Estados.
A história dos primeiros governos Republicanos – de Deodoro, Floriano e Prudente de Morais – é a crônica do movimento de marginalização dos adversários da elite rural que resolveu esse conflito.
Deodoro da Fonseca, o marechal que comandou a derrubada do Imperador, manteve-se apenas dois anos a frente do governo; tentou fechar o Congresso que lhe fazia oposição, e acabou deposto pelo vice, o marechal Floriano Peixoto, que consolidou a República, baseado nos setores urbanos radicalizados, e tentou desbancar as oligarquias estaduais, substituindo-as por lideranças favoráveis à República. Não conseguiu, e teve que transmitir o poder a Prudente de Morais, expoente latifundiário, cujo governo marcou o início da hegemonia das oligarquias estaduais sobre o governo federal.
O Brasil estava em plena transição entre os modos de produção escravista e capitalista, embora este ainda estivesse longe de ser hegemônico.
A mudança de regime teve conseqüências jurídicas notáveis uma vez que o modo de produção capitalista, que dava passos para sua consolidação, exige a chamada forma contratual de relações sociais, sendo assim incompatível com a escravidão: no capitalismo, ensinou Marx, o trabalhador precisa ser livre em dois sentidos – não pode ser subordinado a um senhor que tolhe sua liberdade de ação, e precisa ser proprietário somente de sua força de trabalho (e não dos instrumentos e matérias primas necessários para a produção), que seja obrigado a vender para um patrão capitalista e assim obter seus meios d vida. Para contrair contrato de trabalho com um patrão, o trabalhador precisa assim ser livre nestes dois sentidos.
Esta dupla condição de liberdade é fundamental para que a força de trabalho seja transformada em mercadoria e o trabalhador, juridicamente livre, possa, e seja obrigado, a vendê-la para um patrão.
No regime republicano burguês, esta liberdade se traduz numa situação de igualdade jurídica ante o Estado. Ela marca a relação entre as pessoas e o Estado, ao qual – pelo menos em tese – todos tem igual acesso.
A Constituição republicana estabeleceu a igualdade jurídica formal entre os cidadãos, que a Carta Magna do Império não reconhecia pois sua base, como carta de leis de um estado escravista, era a desigualdade sancionada juridicamente, deixando à margem da cidadania e do direito a imensa maioria de brasileiros formada pelos escravos, ex-escravos, e homens livres pobres.
O historiador Décio Saes analisou extensamente esta mudança, enfatizando a igualdade formal que ela estabeleceu entre os cidadãos, embora com limites. Por exemplo, ao manter a proibição do voto aos analfabetos e praças de pré, reduzia severamente o eleitorado e o direito fundamental da participação da vida política ativa. E, ao deixar de instituir o voto secreto, deixava ampla margem de manobra para as oligarquias imporem sua vontade eleitoral e seus interesses aos eleitores que dominavam.
“A Abolição, a Proclamação da República e a Assembleia Constituinte representaram”, escreveu Décio Saes, “etapas distintas de um único processo: o processo de transformação burguesa do Estado brasileiro; ou, dito de outra forma, o processo de formação do estado burguês no Brasil”.
Foi neste contexto que se deu a abolição da escravatura e a proclamação da República, lembra Saes. Um contexto de transição no qual as mesmas velhas oligarquias latifundiárias, agromercantis, exportadoras – e escravistas – que dominaram durante o período imperial, continuaram manejando as estruturas do mando sob a República.
O período inaugurado com a proclamação da República foi marcado por lutas intensas entre os setores urbanos democráticos que viam nela uma etapa nova no desenvolvimento político e social do país, e a aliança das oligarquias latifundiárias com o grande capital mercantil e financeiro e representantes do imperialismo.
Aquela aliança de proprietários pretendia apenas a mudança política cujo apanágio seria um liberalismo radical (que não pode ser confundido com democracia!) marcado pela federação e pela autonomia provincial e oligárquica, pela redução da intervenção do estado na economia e na sociedade, e pela livre ação das forças do mercado (do capital) na economia.
Referências
Basbaum, Leôncio. História Sincera da República. Vol. 2: De 1889 a 1930. São Paulo, Editora Fulgor, s/d
Bello, José Maria. História da República – 1889-1954. São Paulo, Cia Editora Nacional, 1976.
Costa, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo, Ciências Humanas, 1982.
Hahner, June E. Relações entre civis e militares no Brasil (1889-1898). São Paulo, Pioneira, 1975
Martins, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1979,
Queiroz, Maurício Vinhas de. Paixão e Morte de Silva Jardim. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967.
Saes, Décio. A Formação do estado burguês no Brasil (1888-1891). Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985