José Celso Cardoso: Réplica ao Relatório do Banco Mundial

O Banco Mundial acaba de lançar um relatório que analisa a eficiência e equidade do gasto público no Brasil. O economista do IPEA José Celso Pereira Cardoso Junior analisa o relatório e refuta a defesa que o organismo faz dos cortes de despesa pública, sobretudo na área social. O economista mostra que o documento é muito mais uma peça de apoio às reformas neoliberais do governo Temer, que uma análise técnica do atual estágio das contas públicas nacionais.

problema da educação não é crise, é projeto

Confira abaixo os principais pontos do relatório e a respectiva refutação do argumento elaborada por José Celso Pereira Cardoso Junior:

Banco Mundial: O Governo Brasileiro gasta mais do que pode e, além disso, gasta mal.
José Celso Pereira Cardoso Junior: O governo brasileiro gasta quase 10% do PIB anualmente com juros da dívida pública, cujos principais beneficiários são o topo da pirâmide distributiva. Assim, de fato, o poder redistributivo do gasto público total (primário + financeiro) é baixo ou anulado sobretudo porque o gasto financeiro é ultra concentrador de renda no topo, como o é esterilizador de recursos reais.

Então a primeira coisa para uma avaliação honesta sobre isso é separar o gasto real do gasto financeiro e olhar cada coisa pelas óticas do financiamento e do gasto. Depois, olhando apenas o gasto real, é claro que há problemas de alocação, focalização e poder redistributivo em várias áreas, mas a que menos padece desse problema, pasmem, é a área social. Isso porque a maior parte do gasto social real está concentrado na base da pirâmide social abaixo de 3 salários mínimos (incluindo o gasto com o ensino superior público!).

Significa dizer que o problema fiscal e redistributivo brasileiro está menos localizado no lado do gasto (embora, mais uma vez, haja espaço e áreas sobre as quais é preciso e possível racionalizar e melhorar a alocação dos recursos) e muito no lado da arrecadação que financia cada área específica. Exemplificando: o suposto problema de focalização da previdência rural não decorre do seu público-alvo (cuja focalização é alta) mas sim do fato de que são os trabalhadores pobres urbanos que financiam esses trabalhadores mais pobres ainda do campo.

Banco Mundial: Ao longo das duas últimas décadas, o Brasil observou um consistente aumento dos gastos públicos, o que agora coloca em risco a sustentabilidade fiscal.

José Celso Pereira Cardoso Junior: Mais uma vez aqui é preciso separar o gasto real do gasto financeiro. Este último cresceu mais que proporcionalmente ao gasto real. Por sua vez, o aumento do gasto real observado entre 2003 e 2013 esteve acompanhado do aumento mais que proporcional da arrecadação tributária, pois esta – sendo regressiva como é no Brasil – possui multiplicador maior que um em relação ao PIB e ao próprio gasto real do setor público. De modo que a brecha fiscal que se abriu desde 2015 se deve menos ao crescimento explosivo do gasto (que decididamente não aconteceu, muito pelo contrário) e muito mais ao colapso da arrecadação decorrente dos seguintes fatores: desastrosa política de desonerações em contexto de retração econômica; queda do crescimento e portanto da arrecadação (pois esta é super pró-cíclica no Brasil); aumento da sonegação e evasão fiscal (estimulada pela campanha política de descrédito em relação ao Estado e pelo próprio governo com seu conjunto de medidas de isenções, perdões, Refis e afins…)

Banco Mundial: O limite constitucional de gastos ("teto de gastos") adotado em dezembro de 2016 introduziu uma trajetória de ajuste gradual para os gastos públicos ao longo dos próximos dez anos.

José Celso Pereira Cardoso Junior: A emenda Constitucional 95 (EC/95) que trata do teto dos gastos precisará ser revogada pelo próximo governo eleito, acreditando que haverá um governo eleito. Pois tanto sufoca e colapsa diversas políticas públicas (sobretudo na área social) que necessitam de gastos correntes para existir e funcionar, como induz a economia como um todo a um regime de semi-estagnação, já que o gasto público é, no Brasil, o principal indicador e estimulador dos gastos privados de monta, mormente em áreas de grandes investimentos como infraestrutura, por exemplo.

Mas a EC/95 também desestimulará a produção privada em setores não intensivos em capital ou investimento, como o são quase todos os grandes setores fornecedores de bens e serviços correntes ao governo, como nas áreas de educação, saúde, e custeio da máquina pública. Ou seja: travar compras governamentais significa travar o poder indutor do gasto e do investimento privado mesmo em setores tradicionais da indústria nacional, que são muito dependentes dos gastos públicos.

Banco Mundial: Este estudo tenta demonstrar como tal priorização pode ser realizada de forma a proteger os mais pobres e vulneráveis e minimizar os impactos negativos sobre os empregos e a prestação de serviços públicos.

José Celso Pereira Cardoso Junior: Ao invés de garantir uma dinâmica de crescimento que gere emprego e renda pelo mercado (diretamente ou indiretamente induzido pelos gastos públicos correntes), este governo e sua equipe econômica preferem pensar em um grande programa extremamente focalizado de transferência direta de renda, nos moldes do Programa Bolsa Família, apenas para os mais pobres dentre os pobres, com grande chance de insucesso porque ultra focalização já foi tentada em outros momentos e governos, com resultados pífios em matéria de transferência de renda e indução da economia local.

Ademais, o tamanho (em termos tanto absoluto como relativo) da população brasileira vulnerável, que já é grande, tornar-se-á ainda maior ao longo dos próximos anos, em função da aplicação simultânea das novas regras de regulação do mercado laboral e também das novas regras de acesso aos bens e serviços das políticas sociais, tudo mais restritivo doravante.

Banco Mundial: A princípio, a redução dos gastos não é a única estratégia para restaurar o equilíbrio fiscal, mas é uma condição necessária.

José Celso Pereira Cardoso Junior: Sim, porém palavra alguma é dita sobre : i) gasto financeiro e muito menos sobre como reduzi-lo e desestimulá-lo; ii) estrutura tributária e muito menos sobre como reformar o atual sistema no sentido da simplificação, racionalização, progressividade e vinculações sociais mínimas.

Banco Mundial: A fonte mais importante de economia fiscal de longo prazo é a reforma previdenciária.
José Celso Pereira Cardoso Junior: Não há consenso sobre isso, mas em minha opinião não é uma verdade. De uma perspectiva de longo prazo, tanto o RGPS (Previdência do Setor Privado) como o RPPS (Previdência do Setor Público) Federal já estão minimamente equacionados do ponto de vista atuarial com as regras vigentes aprovadas desde 1998, 2003 e 2013.

Definitivamente, não é tornar a previdência pública superavitária (isso em si mesmo um disparate num país ainda tão desigual e heterogêneo como o Brasil, onde a previdência tem sim que cumprir um papel redistributivo) que resolverá o problema fiscal brasileiro de longo prazo. Esse problema apenas pode ser resolvido numa economia como a brasileira a partir de um mix de reformas estruturais, das quais eu destaco as acima já mencionadas: i) reforma tributária progressiva na arrecadação e redistributiva no gasto; ii) reforma financeira que tanto desestimule aplicações e enriquecimento financeiro como estimule a reinversão produtiva dos estoques de riqueza real e financeira e dos fluxos correntes de renda do capital; iii) recalibragem do gasto real em cada área específica de política pública segundo a tríade eficiência, eficácia e efetividade do gasto.

Banco Mundial: Serão necessárias medidas adicionais para tornar o sistema previdenciário mais equitativo e sustentável financeiramente.

José Celso Pereira Cardoso Junior: A lógica por trás dessa reforma passa longe de qualquer critério de equidade e justiça distributiva. Prima apenas por introduzir critérios de capitalização individual num sistema que a Constituição Federal de 1988 formulou e organizou como de repartição simples. Ao tornar a previdência pública autofinanciável por seus próprios "clientes", esta reforma na verdade vai tanto expurgar parcela considerável de pessoas que jamais conseguirão cumprir os seus requisitos mínimos como eliminar o seu potencial redistributivo intergeracional, tornando-se na verdade mais um elemento concentrador de renda no país.

Banco Mundial: Para solucionar o déficit remanescente do RGPS, as seguintes medidas deveriam ser consideradas: reduzir taxas de reposição e desvincular o valor mínimo de aposentadoria do salário mínimo.
José Celso Pereira Cardoso Junior: Vide resposta anterior, ou seja, mais do mesmo.

Banco Mundial: Os déficits do RPPS e a iniquidade do sistema previdenciário como um todo poderiam ser solucionados por meio da remoção dos privilégios concedidos aos servidores públicos contratados antes de 2003.
José Celso Pereira Cardoso Junior: Outro absurdo desse documento e da ideologia punitivista e individualista que o ampara é tratar como iguais segmentos e sistemas muito diferentes entre si. É preciso tanto separar o RGPS do RPPS como separar os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para tratar da previdência de cada um em separado. Ao fazer isso, ver-se-á que o RPPS do executivo já eliminou a maior parte dos privilégios e já desenhou soluções (como o teto e a contribuição elevada nas fases ativa e inativa de vida dos servidores e aposentados etc), que praticamente resolvem o problema estrutural no longo prazo.

Diria eu, inclusive, que hoje em dia é um mal negócio tornar-se servidor público, pois embora o salário corrente em algumas áreas seja ainda atrativo (relativamente a ocupações similares no mercado privado), esse contrato paga mais em termos percentuais sobre a folha, paga mais IRPF sobre a folha, não possui FGTS e ainda por cima está preso ao teto do INSS quando da aposentadoria. Ou seja, tirando a vantagem da estabilidade funcional, os ganhos em valores líquidos pode ser menor que um salário nominal igual na iniciativa privada. Além disso há hoje claramente uma perseguição ideológica contra quem é servidor no discurso do governo, de seus aliados, da mídia e do empresariado que já perpassa para a população em geral.

Banco Mundial: Uma reforma adicional a ser considerada seria o reconhecimento de que as aposentadorias rurais do RGPS e o BPC (Benefício de Prestação Continuada) são, de fato, programas sociais. Portanto, a reforma deveria considerá-los como tal.
José Celso Pereira Cardoso Junior: Ou seja, querem transformar direitos sociais de ambos os programas em assistência social discricionária e com isso transformar os seus respectivos segmentos sociais de cidadãos a clientes da focalização eventual e punitiva. Ademais, o que não se diz é que parte do gasto público alocado a esses programas é na verdade autofinanciado pelos próprios beneficiários, já que consomem tudo o que ganham.

Ou seja: considerando a regressividade da estrutura tributária centrada em impostos e contribuições sobre o consumo de bens e serviços, parte considerável da arrecadação que financia tais programas provém, em primeira instância, dos gastos de consumo desses segmentos sobre os quais incidem a maior parte dos tributos no Brasil. Em termos relativos, isso é verdade tanto mais quanto mais pobre for o beneficiário que, novamente, consome tudo o que ganha.

Banco Mundial: A massa salarial do funcionalismo público pode ser reduzida significativamente.
José Celso Pereira Cardoso Junior: A massa salarial do funcionalismo, mesmo considerando os aumentos reais do período recente, foi efetiva e orçamentariamente incorporada na estrutura de gastos do Estado brasileiro porque tais aumentos (de pessoas e de salários) vieram acompanhados de aumentos mais que proporcionais da arrecadação e do PIB no mesmo período, de modo que a relação gastos de pessoal sobre o PIB, sobre a arrecadação total e sobre a massa salarial do setor privado estiveram praticamente estabilizadas entre 2003 e 2013.

Sem falar que o quantitativo de servidores civis ativos hoje na União é praticamente o mesmo de 30 anos atrás, tendo havido, ademais, uma mudança importante na composição final desses servidores, no sentido de maior e melhor profissionalização, pela qual hoje há mais servidores em atividades finalísticas que intermediárias, há mais mulheres, mais negros e maior escolarização que há 30 anos atrás.

Por fim, importa lembrar que esse mesmo contingente de servidores que há 30 anos produz hoje, em termos de políticas públicas, bens e serviços, muito mais que antes. Portanto, sou obrigado a concluir, ainda que usando o raciocínio rasteiro e ridículo dos economistas, que o setor público brasileiro hoje é mais produtivo que há 30 anos. Com isso não quero eu dizer que tudo são flores, evidentemente, mas sim dizer que os problemas existentes em termos de ocupação no setor público brasileiro dizem hoje respeito mais a aspectos do ciclo laboral no serviço público (seleção, alocação, progressão, remuneração, sindicalização, representação, aposentação) que ao enganoso discurso simplista seja do inchaço da máquina seja da explosão dos gastos com pessoal.

Banco Mundial: A redução dos prêmios salariais excepcionalmente altos dos servidores públicos também seria desejável de um ponto de vista de equidade.
José Celso Pereira Cardoso Junior: Aqui temos outra falácia, pois por argumentos já citados antes, hoje não é mais tão atrativo tornar-se servidor de nível superior no Brasil. Em várias das áreas de formação e atuação comparáveis com o setor privado, ganha-se tanto ou mais no mercado, paga-se mais contribuição previdenciária atual e futura (inclusive contribuição previdenciária durante a aposentadoria), não se acumula saldo algum de FGTS e desde 2013 os novos servidores estão limitados ao teto do INSS.

Banco Mundial: A melhora dos métodos de aquisições públicas de bens e serviços geraria economias em todos os níveis de governo.
José Celso Pereira Cardoso Junior: Claro! Quem é contra eficiência e racionalização em nome de mais eficácia e efetividade que levante a mão. Problema aqui é que com mais eficiência apenas não se produz nem mais eficácia nem mais efetividade. Mas curioso é que não há no relatório palavra alguma sobre isso em termos do gasto financeiro.

Banco Mundial: As despesas com políticas de apoio às empresas cresceram rapidamente, atingindo 4,5% do PIB em 2015; porém, não há evidências de que os programas existentes tenham sido eficazes e eficientes em seu objetivo de impulsionar a produtividade e a geração sustentável de empregos.
José Celso Pereira Cardoso Junior: Enfim, um ponto com o qual concordo

Banco Mundial: Os programas de proteção social e emprego também se beneficiariam de reformas que introduzissem incentivos mais bem alinhados e mantivessem o foco nos grupos populacionais mais vulneráveis.

José Celso Pereira Cardoso Junior: Viva a loucura liberal. Querem na verdade é vigiar e punir os mais vulneráveis, claro e sempre. Ou seja, por detrás do palavrório bonito, mais políticas e critérios de ativação das políticas públicas cuja contrapartida é a criminalização e a suspensão dos direitos (em forma de benefícios sociais) para aqueles que não aceitarem os empregos e as remunerações que o Deus mercado lhes puder ou quiser oferecer. Viva a precarização ou a brasilização como, na Europa chamam esse tipo de medidas de ajuste macroeconômico.

Banco Mundial: As despesas públicas com ensino fundamental e médio apresentam ineficiências significativas, e o mesmo nível de serviços poderia ser prestado gastando 1% a menos do PIB em nível local.
José Celso Pereira Cardoso Junior: De novo, quem é contra eficiência e racionalização em nome de mais eficácia e efetividade que levante a mão. Problema aqui é que de mais eficiência apenas não se produz nem mais eficácia nem mais efetividade. Mas curioso é que não há no relatório palavra alguma sobre isso em termos do gasto financeiro.

Banco Mundial: A vinculação constitucional dos gastos em educação a 25% das receitas dos municípios pode ser uma das principais causas da ineficiência dos gastos.
José Celso Pereira Cardoso Junior: Pois eu sou a favor das vinculações de recursos para a área social como um todo. Imaginem só em que posição nos rankings internacionais estaria o Brasil, se não houvesse patamares mínimos de gastos em saúde, educação? Mas claro que aqui vale a máxima anterior: quem é contra eficiência e racionalização em nome de mais eficácia e efetividade que levante a mão! O problema aqui é que de mais eficiência apenas não se produz nem mais eficácia nem mais efetividade. Mas curioso é que não há no relatório palavra alguma sobre isso em termos do gasto financeiro.

Banco Mundial: As despesas com ensino superior são, ao mesmo tempo, ineficientes e regressivas. Uma reforma do sistema poderia economizar 0,5% do PIB do orçamento federal; no setor da saúde, cerca de 0,3% do PIB poderia ser economizado através de melhorias de eficiência a nível local, mantendo o mesmo nível de serviços de saúde, e mais 0,3% com o fim dos créditos tributários do IRPF para despesas privadas com saúde; em síntese, com base em uma análise aprofundada de políticas setoriais, este estudo identifica pelo menos 7% do PIB em potenciais economias fiscais em nível federal até 2026; as economias identificadas neste estudo exigirão alterações das atuais regras e rigidezes orçamentárias; por fim, além do atual ajuste fiscal, a melhoria da qualidade das despesas públicas exige a institucionalização de um sistema regular e rigoroso de monitoramento e avaliação das políticas públicas.
José Celso Pereira Cardoso Junior: Em todos esses casos de novo vale a máxima anterior: quem é contra eficiência e racionalização em nome de mais eficácia e efetividade que levante a mão! Problema aqui é que de mais eficiência apenas não se produz nem mais eficácia nem mais efetividade. Mas curioso é que não há no relatório palavra alguma sobre isso em termos do gasto financeiro.

*José Celso Pereira Cardoso Junior é economista formado pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP), com mestrado em Teoria Econômica e doutorado em Desenvolvimento (com especialização em Economia Social e do Trabalho), ambos pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/UNICAMP). Desde 1996 é técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA, tendo sido coordenador da área de Trabalho & Renda e do Boletim de Políticas Sociais: acompanhamento e análise, diretor-adjunto de Estudos e Políticas Sociais (Disoc/Ipea), diretor de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (Diest/Ipea) e diretor de Planejamento, Monitoramento e Avaliação do PPA 2012-2015, na Secretaria de Planejamento e Investimentos Estratégicos (SPI) do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG).