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Dalmo Dallari: Educação para a cidadania

O ser humano tem natureza associativa e deve ter assegurado o direito, que deve ser reconhecido como fundamental de todos, de receber informações sobre a organização da convivência, sobre sua possibilidade de conhecer e avaliar as regras de convivência, de fazer a comparação das diferentes possibilidades e de fazer suas escolhas em função de seus valores fundamentais, assim como sobre a responsabilidade disso decorrente inerente à sua condição de cidadão. 

Cidadania

Todo cidadão pode e deve ter participação ativa, o que se caracteriza como um direito fundamental, mas é também uma responsabilidade, pelas consequências sobre a vida do próprio indivíduo, das demais pessoas e de toda a comunidade.

Por Dalmo de Abreu Dallari*, no Jornal do Brasil

Neste momento em que estão em curso muitas discussões sobre a reforma do ensino fundamental, é de grande importância que se considere com a máxima seriedade a extraordinária importância da educação para a cidadania. Esse tema ganhou agora especial relevância com a aprovação, pelo Conselho Nacional de Educação, de um documento estabelecendo a Base Nacional Comum Curricular. Na parte relativa ao Ensino Fundamental consta o ensino da História, mas não apenas como recuperação de datas, nomes e eventos, mas, como acentua o documento, procurando fazer a identificação de modos de vida na cidade e no campo no presente, comparando-os com os do passado. E, obviamente, considerando a experiência histórica para reflexões sobre o futuro.

Evidentemente, para consideração e análise dos modos de vida está implícita a necessidade de identificação e exame das regras e condições de convivência em cada época e circunstância, tanto para conhecimento delas quanto para avaliação dos reflexos de tais regras e condições sobre a convivência humana. E aqui surge a necessidade de consideração das peculiaridades da pessoa humana, de suas necessidades e possibilidades, para a busca das melhores formas de convivência. E daí decorre a oportunidade, e mesmo a necessidade, de abordagem da influência das características essenciais da pessoa humana, surgindo o conceito de cidadania como decorrência da natureza associativa dos seres humanos. É necessário e oportuno que se inclua no ensino fundamental a educação para a cidadania, a fim de que, com base nas experiências passadas e tendo em conta as necessidades e possibilidades da pessoa humana, sejam estabelecidas formas de convivência que sejam benéficas para toda a humanidade.

Para que se faça a educação para a cidadania é necessária a transmissão de conhecimentos sobre a história da humanidade, com informações básicas sobre as muitas opções já experimentadas, sobre as formas de governo da sociedade e sobre a participação permanente da cidadania no governo, sem privilégios e discriminações. Isso tudo é necessário para que se procure, permanentemente, o aperfeiçoamento das regras de convivência, buscando o estabelecimento e a continuidade de uma convivência pacífica e justa, na qual todos os seres humanos tenham, efetivamente, a possibilidade de gozo efetivo dos direitos fundamentais consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos textos constitucionais.

Uma parte necessária da educação para a cidadania é a conscientização para o significado dos direitos humanos na busca de uma convivência pacífica e justa. E aí se incluem os direitos civis e políticos, assim como os direitos econômicos, sociais e culturais, fazendo parte dessa educação a conscientização sobre a necessidade e a justiça da colaboração de toda a cidadania para que esses direitos sejam concretamente assegurados para todos. E isso implica também a necessidade de conscientização sobre a necessidade e a justiça do estabelecimento de uma contribuição obrigatória de todos para que, na realidade concreta, todos os seres humanos e todos os grupos familiares e sociais tenham acesso a tais direitos.

Todas essas considerações vêm muito a propósito num momento em que ocorre a supervalorização das riquezas materiais, assim como das vantagens individuais de minorias, o que fica muito evidente pelas evidentes e reiteradas demonstrações de resistência aos direitos humanos, especialmente aos direitos sociais. Nas camadas mais ricas das populações é comum que os detentores da riqueza, numa atitude egoísta e injusta, recusem-se a contribuir para a efetivação dos direitos humanos, havendo especial resistência aos direitos sociais, falsamente imaginados como sendo os únicos direitos que necessitam para sua efetivação de recursos financeiros, que, obviamente, serão requeridos daqueles cuja renda e cujo patrimônio permitem que lhes seja imposta uma contribuição. Dizem os que assim resistem, que cada um deverá ser responsável pela satisfação dos seus próprios direitos, assim como dos direitos de seus familiares.

É oportuno lembrar aqui que a natureza associativa dos seres humanos já foi assinalada de maneira brilhante por Aristóteles, filósofo grego do século quarto antes de Cristo, quando ensinou que o ser humano é um “animal político”, o que, no sentido grego da expressão, significa precisamente que é um animal que, por sua natureza, necessita da convivência com outros seres humanos, necessita da “polis”, que é a cidade ou outro núcleo de convivência humana. Isso foi depois reproduzido e reafirmado através da história, nunca tendo sido negada a qualificação dada ao ser humano como “animal político” ou “animal social”. O que muitos pensadores fizeram foi tornar bem evidente essa natureza associativa, tendo em conta várias necessidades essenciais de todos os seres humanos que só podem ser atendidas na convivência. Assim ocorre com as necessidades materiais, como alimentação, a moradia, o cuidado da saúde, como também com os direitos civis e políticos. Sem qualquer esforço pode-se constatar que nenhum ser humano, por mais rico que seja, satisfaz tais necessidades sem a ajuda de outros. Mas foram também assinaladas outras necessidades, como as intelectuais e espirituais, que só podem ser satisfeitas na convivência com outros seres humanos. Não há uma só pessoa, por mais rica que seja, que não dependa de outras para a satisfação de tais necessidades fundamentais.

Por tudo isso e muito mais que poderia ser acrescentado, é fundamental a educação para a convivência, que deve ser ministrada a todos, crianças, adolescentes e também àqueles que, mesmo já tendo já concluída sua formação, pelo simples fato de existirem irão participar da convivência e receber seus benefícios. É necessária, e benéfica para a busca da convivência pacífica e justa, a educação para a cidadania, que deve fazer parte dos currículos escolares e ter continuidade nas discussões das propostas sobre a melhor forma de organizar e desenvolver a vida social, superando impulsos egoístas, como também a intolerância e as discriminações, e despertando a consciência de todos para o reconhecimento da pessoa humana como o primeiro dos valores. E assim dando aplicação ao artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos, segundo o qual “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir, uns em relação aos outros, com espírito de fraternidade”.

* Jurista