Artigo: TVs locais abrem mão da produção de conteúdo regionalizado

Meio de comunicação mais utilizado pela população para se informar sobre o que acontece no Brasil, a TV detém 63% da preferência das pessoas, conforme os dados da Pesquisa Brasileira de Mídia 2016. No Ceará, a “máquina de Narciso”, para citar a expressão utilizada por Muniz Sodré, é o meio utilizado por 65% dos respondentes da mesma pesquisa (imagem 2 abaixo), organizada anualmente pela Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República.

* Por Samira de Castro

Nenhuma novidade num Brasil em que, ao longo dos anos, o debate público é pautado pela emissora da “famiglia Marinho”, seja pelos seus noticiosos, seja pelos programas do chamado “entretenimento”, incluindo aí o poderoso núcleo da dramaturgia. A “boa nova” é que a TV não reina mais absolutamente sozinha – e seus donos – incluindo muitos políticos, numa afronta gritante à tão remendada Constituição de 1988 -, olham com grande desconfiança a figura da internet, que aparece ali no retrovisor, dando sinal de luz pra fazer a ultrapassagem quando a banda larga for acessível ao contingente da base da pirâmide.

As mudanças na forma como a sociedade consome informação não atingiram apenas os jornais impressos e as revistas. A televisão também foi afetada, assim como o rádio. Desde o surgimento da internet comercial (que possibilitou ao telespectador assistir, baixar e até postar vídeos em plataformas como o Youtube, seja no PC ou no smartphone), passando pelos canais a cabo até o mais recente fenômeno da Netflix (sim, a empresa do serviço de streaming se intitula do gênero feminino). Hoje, o telespectador assiste ao que quer, na hora que quer, sem depender de uma grade de programação que lhe impunha horários.

Até aqui, em termos de democratização da mídia, não nos ajudou o Senhor. Aliás, talvez o homem lá de cima seja parceiro apenas do bispo Edir Macêdo, dono da concessão de televisão que prospera com pouco jornalismo e muito programa da igreja fundada por Macêdo. O segundo colocado na preferência dos brasileiros para se informar, a internet, figura com 26% das respostas. No Ceará, a margem de preferência da rede mundial é um pouco abaixo da média: 24%.

O nariz de cera acima é para chegar a uma reflexão que tem me tirado o sono desde os últimos anúncios — comemorados até pelos colegas de profissão — de que as TVs Diário e Ceará estão abrindo mão de suas produções locais para veicularem, respectivamente, conteúdos dos canais Viva (que pertence aos Marinho) e Cultura (de São Paulo). Enquanto a TV Diário protagonizou um dos maiores passaralhos pós-reforma trabalhista no Ceará, demitindo inclusive seu staff da linha de shows, a TVC, que é mantida pelo Estado, manteve seus quadros, mas jogou a toalha e anunciou com pompa e circunstância que vai disponibilizar aos cearenses a programação de qualidade da sua coirmã mantida pela Fundação Padre Anchieta.

O prenúncio de que a situação das emissoras locais era esse descrito acima ou o arrendamento de horário para as igrejas – o que também fere a capenga legislação do setor -, foi o fim das operações da TV O Povo, concessão da Fundação da família Dummar. Após colocar a pá de cal em seus programas, a emissora anunciou também com o rufo de tambores que retransmitirá o Canal Futura, mais um dos Marinho.

Triste fim de policarpos quaresmas que somos nós cearenses, que não temos direito de nos ver nas telas, de ver nossos problemas cotidianos de moradia, saúde, educação, segurança – e tantos outros. Que nem podemos gargalhar de nós mesmos com o humor por vezes caricato e matuto; que sequer podemos nos gabar dos nossos Mestres da Cultura. Não conhecemos nossas paisagens e nem vamos debater em profundidade nosso futebol de primeira e segunda divisão no Campeonato Brasileiro.

Enquanto todos os estudos sobre a sobrevivência do jornalismo apontam a necessidade de intensificar a sua regionalização – aquilo que na carta Cidadã de 1988 já se falava, mas nunca foi regulamentado –, as emissoras locais, inclusive as educativas e supostamente públicas, vão na via contrária. O resultado: mais desemprego para jornalistas, radialistas, artistas… e uma sociedade cada vez mais mal informada e desvalorizada nas suas mais diversas características, necessidades e ações.

Cada vez mais, reproduzimos uma lógica de consumo de informação que privilegia o que é de fora, deixando a população cearense à mercê dos discursos dominantes das agências de notícias, das matrizes de Globos da vida (do Viva!!). Lamentável que os gestores dos veículos não compreendam que a crise do jornalismo é uma crise de falta de investimento na produção local, na falta de diversidade de vozes e representações, na falta de ética nas coberturas. Lutemos!