Entre o céu de Watergate e o inferno de Jayson Blair

O grau de confiabilidade da população quanto ao jornalismo norte-americano vem caindo. Existe uma relação disso com os grandes momentos midiáticos vividos pelo país – e o contexto em que o jornalismo é produto de uma sociedade liberal-burguesa

Por Dennis de Oliveira*

Nixon renuncia- escândalo de Watergate

O relatório National Leadership Index, produzido pela JFK Scholl da Universidade Harvard analisa, de tempos em tempos, o grau de confiança dos cidadãos estadunidenses em instituições e lideranças. O estudo de 2012 demonstra um grau de confiabilidade nas instituições nove pontos abaixo da média. No primeiro estudo realizado em 2005, a marca era um ponto e meio acima da média.

Entre as várias instituições pesquisadas – militares, médicos, organizações não governamentais, governos locais, religiosos, Suprema Corte, negócios privados, governos estaduais, educação, poder executivo, jornalismo, Wall Street e Congresso Nacional – o jornalismo aparece como o antepenúltimo colocado com grau de confiança de 77,5 e em queda desde 2005.

O relatório destaca esta situação: “A confiança nos meios de comunicação caiu precipitadamente – uma tendência preocupante, uma vez que a mídia é a janela através da qual os americanos percebem o desempenho de seus líderes em todos os setores. Se os americanos não têm confiança em seus meios de comunicação, como podem confiar que estão recebendo a informação que precisam entender e influenciar o desempenho dos líderes do país?”

Dois momentos importantes nos últimos 50 anos são simbólicos da ascensão e queda da credibilidade do jornalismo. O primeiro foi em junho de 1972, quando o Washington Post dá início a série de coberturas do escândalo que ficou conhecido como “Watergate” – a colocação de escutas na sede do Partido Democrata por agentes do serviço secreto dos EUA usados em prol da campanha dos republicanos. A série de reportagens assinada pelos jornalistas Carl Bernstein e Bob Woodward demonstrou a utilização de estruturas de segurança pública para benefícios partidários, no caso, a reeleição do presidente republicano Richard Nixon.

As reportagens dos dois jornalistas demonstraram que o próprio presidente reeleito tinha conhecimento das operações ilegais e, mais que isto, tentou apagar as provas que mostravam o seu envolvimento. Graças a esta denúncia, Nixon chegou a ir para julgamento de impeachment por parte da Suprema Corte, mas renunciou antes, em 9 de agosto de 1972.

O caso foi tema de vários filmes, sempre centrando o papel que o jornalismo investigativo teve na elucidação do escândalo e o grau de liberdade de imprensa existente na nação estadunidense que permite que até um presidente da República seja investigado e obrigado a renunciar. É o ápice do princípio do quarto poder, do cão de guarda, cânones do papel da imprensa no ordenamento liberal-democrático.

Do ponto de vista simbólico, este episódio é um marco na credibilidade do jornalismo. Interessante notar que nos filmes em que este caso é retratado, a postura messiânica dos repórteres em busca da “verdade”; em especial no longa Todos os homens do presidente, de Alan Pakula. Algumas características são interessantes neste episódio: primeiro, o papel da fonte em off – o Garganta Profunda – que aparece como um orientador da investigação jornalística e não como o denunciante, ou aquele cujas declarações serviram como base para a produção das reportagens; segundo, a preocupação com a checagem das informações obtidas por meio da busca de declarações de outras fontes antes de decidir qualquer publicação. O rigor metodológico na apuração jornalística é um elemento destacado na retratação deste episódio no filme citado. Assim, mais que o poder da imprensa em derrubar um presidente, a mensagem que se passou foi o rigor na apuração das informações que reforça a credibilidade. Não se trata apenas de um quarto poder, mas um poder crível.

Por isto, consideramos este episódio um marco na cristalização do jornalismo como contrapoder, como a instituição “fiscalizadora” dos poderes constituídos. Destacamos ainda que este episódio ocorreu em um momento que no Brasil vivia-se sob o período mais obscuro da ditadura militar, com a vigência do AI-5, da Lei de Imprensa, da Lei de Segurança Nacional e outros entulhos autoritários que iam na contramão deste ordenamento liberal. A sedução que este episódio gerou em países nos quais a imprensa estava totalmente sob controle por conta de leis repressivas foi enorme.

Passaram-se quase 41 anos até que em 2003 vem o caso Jayson Blair, repórter do New York Times, laureado com vários prêmios. Em 11 de maio daquele ano, o diário nova-iorquino publicou: “O repórter, Jayson Blair, 27, enganou leitores e colegas do Times com despachos que ele fingia ser de Maryland, Texas e de outros estados, quando geralmente estava distante dali, em Nova York. Ele inventou comentários. Ele forjou situações. Ele usou material de outros jornais e serviços de notícias. Ele manipulou detalhes de fotografias para criar a impressão de que havia estado em certo lugar ou visto certa pessoa, quando na verdade não tinha”.

O episódio gerou um grande escândalo nos meios jornalísticos nacionais e internacionais, principalmente por ter acontecido em um veículo de prestígio mundial como o New York Times. Robert Leger, presidente da Society of Professional Journalists dos EUA afirmou que “se isto pode acontecer no NYT, então deve acontecer em todo o lado”. Mais que um episódio pontual de erro da imprensa, o caso abalou profundamente a credibilidade do jornalismo incensado pelo Watergate.

O ocorrido foi produto de uma série de procedimentos internos do veículo que facilitaram o acontecimento. O pesquisador Joaquim Fidalgo, da Universidade do Minho (Portugal) aponta que, num primeiro momento, tentou-se responsabilizar o temperamento e a personalidade de Jayson Blair pelo acontecimento, aproveitando inclusive o fato do repórter ser negro. Em alguns momentos foi destacado um pretenso comportamento emocional instável do repórter, taxado inclusive de depressivo. Porém, a análise mais detalhada do ocorrido – motivada, principalmente, pelo temor de que outros casos como aquele acontecessem – apontaram processos que vão além do repórter em questão:

1) Desatenções inexplicáveis: Blair realizou diversas matérias em várias cidades e estados distintos dos EUA, porém nunca apresentou nenhuma conta de viagem ou hospedagem para ressarcimento;

2) Falhas sistemáticas na comunicação interna: o repórter foi transferido de editoria diversas vezes por problemas causados em cada uma delas, mas as novas editorias desconheciam estes problemas;

3) Suspeitas de favoritismos pessoais, motivadas pela postura hipercompetitiva do repórter, um padrão nas políticas de pessoal das empresas de comunicação;

4) Gestão demasiadamente centralizada e verticalizada da direção editorial do jornal;

5) Recurso excessivo e não questionado pela direção editorial do uso de fontes não identificadas

6) Ausência de instrumentos facilitadores da comunicação dos leitores com o jornal.

Note-se que a auto-referência excessiva do veículo – uma manifestação de uma autossuficiência institucional – é o que sintetiza estes procedimentos que levaram a este episódio.

Entre o céu do caso Watergate e o inferno do episódio Jayson Blair, o jornalismo se depara com uma crescente crise de credibilidade demonstrada por vários indicadores. E isto tem sido enfrentado de diversas formas pelo mundo jornalístico.

Primeiro, atribuindo o problema da credibilidade do jornalismo a um problema de qualidade do produto, no sentido dos procedimentos produtivos. Daí o surgimento de um verdadeiro fetiche pela “checagem” e “verificação” dos dados, numa perspectiva de se pensar a informação como algo exato. Phillip Meyer, quando ressuscita o “jornalismo de precisão” dos anos 1960 com a obra The new precision journalism propõe que o jornalista seja um gerente de dados e que se comporte como um “cientista que busca a exatidão dos dados disponíveis”. Iniciativas como a da Knight Foundation e da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) também vão neste sentido, associando “jornalismo investigativo” a “checagem de dados e informações”.

A segunda forma de enfrentamento está na criação de mecanismos de interação com leitores e telespectadores por meio das tecnologias da informação e comunicação, como abertura para postagem de vídeos e sugestões de pauta.

Com todo o respeito pelas iniciativas, é preciso ir além destas visões. Se levarmos em conta que o jornalismo é produto da sociedade liberal-burguesa, do modelo democrático-liberal e temos que os paradigmas societários do capitalismo contemporâneo pressionam para uma relativização e até esvaziamento deste ordenamento democrático, será que a queda na credibilidade do jornalismo não está diretamente associada a uma queda na confiança nas instituições ditas democráticas? Será que de fato ainda tem-se a perspectiva do sujeito-cidadão presente ou de um consumidor autarquizado que necessita meramente de um produto (informação) que atenda aos seus desejos (confirmar o que ele já pensa ou sente)?