Eleições na Itália: crise econômica, fascismo e a completa incerteza 

As eleições italianas acontecerão nesse domingo, dia 4, após terem sido adiadas devido a ingovernabilidade e sinais de desgaste do governo. Mas o buraco é mais embaixo: uma Itália com jovens desiludidos devido ao desemprego deve, ainda, lutar para conter o avanço da extrema-direita, enquanto lida com o populismo e uma social-democracia abatida

Por Alessandra Monterastelli *

eleições na Itália

O cenário continua nebuloso: a social-democracia está completamente desgastada após o governo de Renzi, os populistas Movimento 5 Estrelas chamam mais eleitores jovens e desempregados e o conservador Berlusconi, unido à extrema-direita que invade novamente a Europa, lidera as sondagens; apesar de tudo isso, a probabilidade de nenhuma coligação ou partido atingir a maioria necessária para governar é altíssima, conforme reportam os veículos italianos e europeus.

Como explica o especialista em história do comunismo francês e italiano David Border em artigo sobre as eleições, o cenário político italiano é que, desde a queda de Berlusconi em 2011, todos os governos italianos foram formados por tecnocratas não eleitos, ou coalizões híbridas unindo forças de centro-esquerda e centro-direita. A crise econômica intensificou a fragmentação a longo prazo do sistema partidário italiano e, agora, o centro neoliberal não produz estabilidade nem estagnação, mas desespero social.

Esse cenário tem seus destaques. O Movimento 5 Estrelas (M5E), fruto da crise e agremiação populista, levanta a bandeira do anti-partidarismo e tenta chamar os insatisfeitos a juntarem-se a eles, usando-se do discurso “antissistema”. O partido de direita e conservador Força Itália (FI), de Berlusconi, que fez aliança com a Liga (antigo Lega Nort), partido de extrema-direita, xenófobo e separatista; o Partido Democrata (PD), de Matteo Renzi, que nos últimos anos entregou as pautas de esquerda e manteve uma agenda predominantemente neoliberal, que tem o apoio do Europa+, partido pró união europeia de Emma Bonino. Tem ainda a coligação Liberi e Uguali, fruto da junção de diversos partidos de esquerda dissidentes do PD; e, por fim, a recém-lançada lista Poder Para o Povo, composta pelo Partido da Refundação Comunista e que que pretende se consolidar como um “sujeito unitário da esquerda anti-neoliberal”, tendo sido chamada de "a única novidade real na cena eleitoral italiana”.

O Partido Democrata, sob a liderança de Matteo Renzi, passou de um partido de centro-esquerda para ser explicitamente baseado no liberalismo corporativo. Ao longo da última legislatura, impôs uma "Lei do Emprego" flexível, reformas e medidas de educação neoliberal que obrigam os italianos em idade escolar a trabalhar em estágios não remunerados. Desde a sua tentativa fracassada de reescrever a constituição italiana (um assunto sensível, diga-se de passagem, já que possui vínculos simbólicos com a derrubada do fascismo, sendo assim importante para a identidade republicana do país), Renzi enfrenta, além do Força Itália, seu inimigo histórico, uma oposição mais forte por parte da esquerda. Como citou Broder, “a derrota e a renúncia de Renzi [após perder o referendo] não só enfraqueceram suas próprias pretensões de popularidade, mas também lançaram novas dúvidas sobre o caminho da esquerda italiana para a vitória por meio da manutenção do centro político”. Broder relembra que o PD enfrenta os desafios de todos os partidos social-democratas na Europa: manter o apoio de sua base histórica, os trabalhadores, tarefa difícil em tempos de austeridade.


Berlusconi, Renzi e Di Maio / Fonte: Financial Times 

Em entrevista recente dada à apresentadora Barbara D’Urso em rede aberta, Renzi defendeu a ideia fortemente neoliberal do papel primordial das empresas na educação dos jovens que, no cenário econômico colocado pelo seu governo, representam boa parte da população desempregada e desiludida com a política. Em pesquisa feita pelo New York Times e divulgada pelo Estado de São Paulo, mais de 32% dos italianos com menos de 25 anos continuam desempregados. Esses mesmos jovens, conta a reportagem, se deparam com elites que mantêm casas de praia e artigos de luxo, enquanto eles estão estagnados. Renzi provoca a desilusão e revolta nos italianos quando, no contexto de sua fala, jovens estão desempregados enquanto grandes empresas italianas investem cada vez mais em tecnologia para poupar mão de obra e prevenir “gastos” com trabalhadores. As mesmas que ele diz serem imprescindíveis para a educação tecnológica e a inserção de jovens no mercado de trabalho.

No mais, o líder do PD aparenta querer passar uma imagem de defensor das causas sociais e dos cidadãos comuns, sendo entendedor do sofrimento diário daqueles que pouco tem; contudo, sua análise é rasa. Sua colocação ideológica, como líder de um partido que supostamente deveria estar mais à esquerda, é pouco vívida. Quando questionado sobre crescimento do partido populista Movimento 5 Estrelas, ele respondeu, sem grandes posicionamentos: “tem gente boa e ruim”.

Como conta Broder, o M5E se beneficiou do colapso da esquerda e da crise econômica para se estabelecer como “voz dos excluídos”, em rebelião contra a “casta” representada pela corrente principal e pela centro-direita. Tanto que o sucesso do “movimento” se deve pouco às propostas de políticas específicas, mas mais à promessa de revisão política e de uma suposta “novidade”. Tenta captar e expressar, por fim, o descontentamento de uma Itália abatida pelo desemprego. Seus deputados costumam se abster diante de questões polêmicas da política social, como a união civil homoafetiva ou a situação dos refugiados, para assim, como conclui Broder, continuar defendendo “todas as coisas para todas as pessoas”.

Não é à toa que Berlusconi lidera as sondagens- ainda que, o mais provável que aconteça, é que nenhum partido ou coligação consiga maioria para governar. Sob a imagem de “cavalheiro”, Berlusconi se lança a candidatura novamente, depois de algumas denúncias por evasão fiscal. Tocando nos pequenos problemas rotineiros que incomodam os italianos e que provariam, de forma supérflua, uma má gestão (como ruas esburacadas, por exemplo), Berlusconi comparou no programa de Barbara D’Urso sua volta à quando voltou para a política após o escândalo Mani Pulite (“Mãos limpas”), o maior esquema de corrupção política investigado na Itália. “Após o Mani Pulite, se não fosse por mim, os comunistas teriam tomado o poder” declarou, com orgulho, intitulando-se o herói anticomunista que salvou a Itália de um “grande perigo”. Sua retórica, claro, é fortemente conservadora; a crítica que fez aos candidatos do M5E baseia-se na meritocracia, e ele os acusa de “nunca terem trabalhado em sua vida”, enquanto se gaba de ser “um trabalhador antes de político”.

O grande empresário falou ainda sobre a necessidade de uma “revolução fiscal”, demonizando o sistema de impostos do país, tentando falar pelos pequenos empresários e comerciantes, quando na realidade representa a elite; segundo ele, o país deveria aderir a “flat tax”, onde todo mundo, desde grandes empresas até famílias, pagam os mesmos valores de impostos. “Pago 73% das minhas empresas em impostos, isso acaba com todos os empreendedores”, disse, enquanto mostrava o código dos impostos, denunciando sua suposta complexidade inútil, quando poderia ser “muito mais simples”.

Berlusconi não disfarçou, durante a entrevista, sua aversão pela imigração na Itália, porto de desembarque de grande parte dos refugiados. “A culpa é da esquerda que com Renzi assinou o Acordo de Dublin”, disse, concluindo: “vamos manda-los de volta para casa”.

O discurso xenófobo é o novo foco dos conservadores e da extrema-direita europeia, que avança diante da nova crise mundial do capitalismo. Frases agressivas contra os refugiados vindos de países africanos e árabes são repetidas quase como mantras, instigando o trabalhador europeu a querer “manda-los de volta para casa” e não a reformar o sistema de acolhimento, algo necessário. A volta da extrema-direita na Europa ameaça o Estado de Direito no continente depois de quase 80 anos; seu fantasma voltou a assombrar a França, com o partido de Le Pen e a islamofobia, a Alemanha, onde voltou ao parlamento com 12% dos votos pela primeira vez após a queda do nazismo; e agora assombra também a Itália, berço do nefasto pensamento fascista. Semana passada o país viu diversos confrontos entre grupos anti-fascistas que reagiram (ainda bem) à onda de violência por parte de fascistas. Um ex-militante da extrema-direita atirou contra seis imigrantes africanos e em Perugia, um voluntário do movimento comunista Poder Para o Povo foi ferido com quatro facadas nas costas. Seguiram-se diversas manifestações contra o racismo e a xenofobia. Berlusconi e Salvini (líder da Liga) condenaram os tiros, mas responsabilizaram os imigrantes. A bota tem motivos de sobra para se preocupar.

“A rejeição dos novos italianos se deve à hostilidade com os imigrantes e ao medo do multiculturalismo”, explica Border, referindo-se a discussão que permeou o governo sobre o direito de cidadania italiana aos filhos de imigrantes nascidos na Itália, mas conclui: “é uma escolha natural para uma sociedade que oferece tão pouco até aos jovens que nascem de pais italianos”. Segundo ele, a postura da campanha eleitoral é superficial, onde questões significativas como a reforma da União Europeia, a moeda única e a crise bancária parecem menos importantes do que um choque de personalidades e uma acalorada retórica (recheada de preconceitos) sobre a imigração.

Apesar da xenofobia ter tomado o centro do debate eleitoral, o Manifesto, jornal comunista italiano, aponta outra grande promessa vendida pela direita: a estabilidade. “A poucos passos da chegada, com o pânico da instabilidade e da impossibilidade de governar que se aproxima cada dia mais, a única e verdadeira arma secreta da direita é essa: ‘ou nós, ou o caos’”, narra o jornal em artigo publicado nessa sexta-feira (2).


Infográfico do jornal PÚBLICO

Apesar da vantagem de Berlusconi e sua coligação, o cenário ainda é bastante nebuloso até para as sondagens. Daniele Albertazzi, especialista em Política Europeia com especialização na Itália, disse em entrevista ao jornal português Público que “provavelmente teremos um governo liderado pela direita, mas também podemos permanecer com o atual governo de centro-esquerda mais dois ou três anos”. David Broder concluiu, sobre o evento de domingo (4), de que o necessário seria “abrir canais que possam novamente oferecer avanços materiais e um espírito de esperança para os esquecidos e explorados”; mas, conforme o cenário da véspera, projetar essa solução para a realidade a curto prazo parece difícil, pelo menos agora.