Sem base de dados, Brasil reage mal aos casos de abuso sexual infantil

O teto para os gastos públicos imposto para os próximos 20 anos, uma das medidas aprovadas pelo governo Temer, deve prejudicar ainda mais as políticas de proteção integral das crianças e adolescentes. A análise é do sociólogo e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Herbert Rodrigues, autor do livro "A pedofilia e suas narrativas".

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“O congelamento das despesas públicas e os cortes nos investimentos nas áreas sociais por 20 anos deve provocar um retrocesso nos avanços conquistados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pelas convenções internacionais das quais o Brasil é signatário”, comenta o pesquisador que mostra preocupação, sobretudo, com o enfrentamento aos casos de abuso sexual infantil. "Com os cortes nos investimentos nas áreas sociais por 20 anos as principais vítimas serão as crianças", afirma.

O contexto, já fragilizado, preocupa o especialista em pontos específicos, como a subnotificação dos casos. “Além de o Brasil ter uma alta incidência de casos – por ano, há uma média de 50 mil casos de estupros e 70% das vítimas são crianças e adolescentes -, o País sofre com a não notificação ou subnotificação dos casos”, explica.

A situação ocorre pela falta de uma base unificada de dados, o que inviabiliza um diagnóstico preciso da situação atual das crianças e adolescentes e ações efetivas de prevenção aos casos de abuso sexual. Em entrevista a CartaCapital, o pesquisador fala sobre a falta de investimentos na área, os entraves para a criação de políticas protetivas específicas e a necessidade de priorizar o tema na agenda pública.

Carta Capital: Qual a situação do Brasil diante dos casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes?

Herbert Rodrigues: A cada ano, um número inestimado de crianças e adolescentes são abusados no Brasil. No entanto, ninguém é capaz de dizer, com precisão, quantos eles são.

A situação do Brasil é bastante crítica por dois motivos: em primeiro lugar, o número de casos é muito alto. Há, em média, 50 mil estupros registrados por ano. Um levantamento do Ipea, feito com dados do Sinan, aponta que cerca de 70% das vítimas são crianças e adolescentes.

Em segundo, muitos casos não são notificados, ou são subnotificados. Quando envolve crianças, a subnotificação é ainda maior. Normalmente, os dados sobre a vitimização não-fatal de crianças e jovens são inexistentes.

Como no Brasil não há uma base unificada de dados, é praticamente impossível ter uma noção abrangente dos casos de abuso sexual que possibilite um diagnóstico preciso da situação atual das crianças e adolescentes. Acredito que uma boa base de dados estatísticos poderia auxiliar o Estado e a sociedade na elaboração de políticas públicas voltadas ao abuso sexual infantil, sobretudo de prevenção.

CC: Por que o País não consegue unificar seus dados de casos de abuso sexual?

HR: Porque as estatísticas são feitas com base em dados coletados a partir do registro dos boletins de ocorrência policial, no Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan), nos fornecidos pela Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência da República, via Disque 100; nos casos registrados pela justiça a partir dos julgamentos, nos divulgados pela mídia e, mais recentemente, no banco de dados criado pela 4ª Delegacia de Repressão à Pedofilia de São Paulo.

Isso ocorre pela ausência de coordenação e de articulação entre os setores do poder público e as entidades da sociedade civil preocupadas com essa questão. Não há investimento em tecnologia para consolidar a base de dados sobre os casos de abuso sexual infantil, gerando um verdadeiro caos no controle das denúncias.

CC: Quais são os impactos decorrentes disso?

HR: Não é possível, por exemplo, afirmar se os casos de pedofilia cresceram ou diminuíram nos últimos anos no Brasil.

Infelizmente, parte considerável da sociedade brasileira parece acolher certas respostas dadas pelo Estado do ponto de vista penal, mas é preciso olhar para a totalidade das ações de outra maneira e buscar formas de proteger as crianças antes que as agressões ocorram. Sem informações precisas e um fluxo racional e consolidado de dados, torna-se impossível elaborar políticas de prevenção, de atendimento e de combate aos abusos sexuais infantis.

CC: Como devem ser elaboradas as políticas de prevenção?

HR: Não é possível pensar em políticas generalistas, como saúde, educação e segurança, que são essenciais, para lidar com crianças e adolescentes. É preciso, sobretudo, criar políticas específicas voltadas aos problemas enfrentados pelas crianças para garantir a segurança social e econômica das próximas gerações.

O enfrentamento aos casos de abuso sexual deveria ser tratado como uma dessas políticas específicas. E isso, infelizmente, não vai ocorrer nos próximos anos. Com o congelamento (contingenciamento) das despesas públicas e os cortes nos investimentos nas áreas sociais por 20 anos, as principais vítimas serão as crianças.

Esse tipo de decisão política deve provocar um retrocesso nos avanços conquistados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pelas convenções internacionais das quais o Brasil é signatário.

CC: Qual a situação do Brasil se comparada a outros países?

HR: Segundo levantamentos realizados por organizações internacionais, como Save the Children e Nações Unidas, o Brasil ocupa uma posição intermediária em termos de violência sexual contra crianças. No entanto, os dados não são animadores.

Estar mais bem posicionado em relação aos países africanos e alguns países asiáticos e latino-americanos pobres não significa que as crianças brasileiras estejam protegidas de abuso sexual. Por causa do tamanho e da riqueza do país, é intolerável que o Brasil tenha o nível de violência sexual infantil que atualmente apresenta.

CC:
Como você avalia a atuação das redes de proteção das crianças e adolescentes e da Justiça brasileira no acompanhamento dos casos?

HR: No livro A Pedofilia e suas narrativas, fruto da minha tese de doutorado em sociologia pela USP, afirmo que as políticas de proteção às crianças e aos adolescentes têm raízes históricas no Brasil.

A assistência à infância está ligada ao processo de institucionalização das crianças por parte do Estado brasileiro, cuja preocupação, desde o século XIX, girou em torno de crianças de famílias pobres. Durante décadas, as práticas de atendimento à infância foram relativamente as mesmas: encaminhar crianças abandonadas e delinquentes às instituições fechadas de internação.

Com o ECA, em 1990, o Estado reconhece, por meio de lei, seu papel na proteção integral à infância e a criança como sujeito de direitos. O estatuto instituiu uma série de dispositivos, visando protege-la integralmente. Entre eles, destaca-se o Conselho Tutelar como órgão executor de funções públicas responsáveis por zelar pelos direitos da criança e do adolescente em cada município, composto por pessoas representativas da sociedade civil da própria região.

A justiça brasileira (incluindo o Ministério Público) deveria ocupar um papel de protagonismo, aplicando leis e promovendo a fiscalização do funcionamento efetivo das políticas públicas descritas no ECA.

No entanto, seu foco ainda é criminal, quando deveria haver um investimento no sistema de proteção social (em diversas áreas, como saúde, educação e Justiça) em desenvolver métodos de investigação para identificar e diagnosticar o problema, além de sugerir tratamentos às vítimas e também aos pedófilos antes que os abusos ocorram.

Portanto, cabe ao sistema de justiça, incluindo a polícia, investigar os casos, julgar e punir os agressores de acordo com a lei. Cabe ao sistema de saúde, principalmente aos médicos psiquiatras, realizar o diagnóstico correto dos casos e encaminhar o tratamento adequado para cada caso.

E aos dois sistemas em conjunto monitorar as ações dos indivíduos que apresentam esse tipo de transtorno, que tenha ou não cometido algum crime, para proteger as crianças de possíveis abusos.

CC: Como você avalia as políticas públicas brasileiras voltadas ao tema? São eficientes?

HR: Não há efetivamente políticas públicas específicas voltadas ao enfrentamento dos casos de violência sexual infantil no Brasil. Há casos isolados, frutos de políticas de governos nos três níveis de poder, municipal, estadual e federal. Mas não há um plano estratégico de longo prazo coordenado pelo Estado com envolvimento da sociedade social.

Por exemplo, se observarmos as ações da Polícia Federal e da 4ª Delegacia de Repressão à Pedofilia de São Paulo, o foco está na apreensão de material de pornografia infantil. Encontramos no Brasil ações policiais e legislativas de caráter paliativo que buscam combater o abuso sexual infantil por meio de apreensão de computadores de usuários de pornografia infantil. Isso é importante porque o material pornográfico é fruto de abuso sexual, mas não é o suficiente.

Não há políticas públicas estratégicas voltadas à prevenção e ao atendimento das crianças vítimas de abuso. Há muita ênfase no adulto abusador e pouco investimento nas crianças vítimas de abuso, que são as mais prejudicadas. É interessante observar que o abuso sexual infantil representa um tipo de crime que a sociedade brasileira abomina em abstrato, mas o tolera na realidade.

Aparentemente, tolera-se o abuso sexual infantil porque a falta de denúncia e o silêncio são as práticas mais adotadas. E, apesar de a sociedade condenar teoricamente o abuso sexual infantil, a resposta a cada caso depende muito de quem está sendo acusado e de quem foi abusado. Em muitas circunstâncias, é mais fácil negar o que aconteceu e culpar a própria vítima pelo abuso.

CC: Quais desafios precisam ser superados?

HR:
Na legislação brasileira não existe, nominalmente, o crime de pedofilia, mas há um esforço por parte de alguns políticos e operadores do direito em qualificar a materialidade do ato, uma vez que fantasia não é crime. No livro A Pedofilia e suas narrativas, afirmo que o processo de criminalização da pedofilia no Brasil é um fenômeno recente, ainda em curso, que ocorreu no país na virada do século XX para o século XXI.

A instalação da CPI da Pedofilia no Senado em 2008 – e seus resultados – pode ser considerada a ocasião, digamos, de calcificação da categoria pedofilia e, consequentemente, do sujeito pedófilo como criminoso, ou pelo menos a tentativa de fazê-lo. A pedofilia, até então entendida como categoria médico-psiquiátrica, ou um tipo de conduta sexual desviante e moralmente reprovável, passa a ter tratamento jurídico-criminal amparado por arsenal de leis. É a partir desse momento crucial que o Estado se empenha em monopolizar a categoria pedofilia.

Podemos dizer que legislação, leis e aparatos legais não são problema no Brasil, que parece estar bem amparado juridicamente. Por esse motivo, acreditamos que o processo recente de criminalização da pedofilia tem outra natureza.

O Estado brasileiro claramente optou por privilegiar uma política de “caça aos pedófilos”, insistindo na prática de endurecimento das leis e no aumento das penas, em vez de garantir políticas públicas e ações integradas que visassem atender às vítimas de agressão sexual, melhorar as condições de vida das crianças e inibir a ação de possíveis agressores. Os maiores desafios estão em defender as crianças de qualquer forma de abuso. Mas isso não parece ser uma preocupação no país atualmente.