"Não poder falar de golpe mostra que vivemos um estado de exceção"

Carlos Zacarias, da UFBA, que criou uma disciplina sobre o golpe, fala sobre "a onda de arbítrio que se instalou sobre a universidade". O professor foi intimado a depor na última sexta-feira (09).

Carlos Zacarias - .

Na última sexta-feira (9), o professor Carlos Zacarias de Sena Júnior, professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), foi surpreendido ao receber a visita de uma oficial de Justiça. Zacarias criou a disciplina “Tópicos Especiais em História: o golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil” e foi alvo de uma ação popular por iniciativa do vereador, Alexandre Aleluia (DEM), da Câmara Municipal de Salvador. “Quando a universidade fica ameaçada, quando os intelectuais, sua inteligência, seus pesquisadores, estão sob suspeição, sob o olhar vigilante, não só dos poderes constituídos, mas de grupos parafascistas, a gente está sob ameaça”, ressalta. Zacarias, que é coordenador do Grupo de Pesquisa História dos Partidos e Movimentos de Esquerda e pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades (CRH) da FFCH-UFBA, fala à Fórum a respeito da iniciativa de criar a disciplina do golpe de 2016, em solidariedade ao professor Luis Felipe Miguel, da UnB.

Fórum
– Que razões o levaram a criar a disciplina “Tópicos Especiais em História: o golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, na UFBA?

Carlos Zacarias – São as mesmas razões que levaram mais de três dezenas de universidades a criarem cursos, na forma de disciplina ou cursos livres como extensão. Em primeiro lugar, um ato de solidariedade ao professor Luis Felipe Miguel, que quando criou a disciplina na UnB foi surpreendido por palavras do ministro da Educação, o senhor Mendonça Filho, que em uma rede social, disse que iria acionar os órgãos controladores e fiscalizadores, TCU, AGU, Ministério Público e outras entidades. É surpreendente, é absurdo, porque isso não é comum na universidade, não acontece isso com frequência, aliás eu não tenho lembrança, não tenho registro que isso tenha acontecido em tempos recentes. Só na ditadura. Então, é surpreendente que o ministro tenha dado essas declarações. E em função dessa tentativa de intervir na universidade, que atingiu o professor Luis Felipe Miguel, que atingiu a nós todos, eu, como tinha um tópico especial em História para oferecer, entre as minhas disciplinas, ia oferecer uma disciplina sobre o golpe de 64 e a ditadura no Brasil até 85, mas optei por criar uma disciplina semelhante à do professor Luis Felipe Miguel. Logo, 22 outros professores se associaram à minha proposta, se juntaram a mim e vão ser corresponsáveis, junto comigo, dessa disciplina. Então, ela foi criada, está registrada. Foi uma atitude de solidariedade, atitude de resistência, uma atitude que demonstra que a universidade necessita de autonomia, porque do contrário nós não estamos vivendo em uma democracia.

Fórum
– Como ficou sabendo que tinha sido convocado a prestar esclarecimentos na Justiça?

Carlos Zacarias – Sobre a questão do depoimento, eu apenas fui intimado. É uma intimação que me chegou às mãos. Nós estamos de férias na UFBA e eu estava fazendo exames em uma clínica de Salvador, quando recebi a ligação do secretário da pós-graduação. Ele me ligou dizendo que uma oficial de Justiça estava lá com uma intimação para mim e eu precisava assinar. Então, eu disse onde estava, ela foi ao meu encontro e me deu essa intimação, que dizia que eu tinha dez dias para me manifestar. O juiz não indeferiu, como incialmente foi veiculado. Não indeferiu o pedido do vereador do DEM, Alexandre Aleluia. É aquele que na Câmara de Vereadores de Salvador apresentou um projeto inspirado no movimento Escola sem Partido, no qual os órgãos de Justiça já consideram inconstitucional. Esse vereador tem liderado uma cruzada contra a educação, contra os professores e agora contra a universidade. Então, ele entrou com uma ação popular e o juiz disse que precisava ouvir, já que as aulas só começam em abril. O juiz não deu liminar, resolveu ouvir as partes e deu dez dias para que eu e o reitor João Carlos Salles, da minha universidade, nos manifestássemos. Portanto, não teve depoimento ainda, nós não nos manifestamos, estamos agora procurando os meios de preparar o argumento quanto à nossa posição, que é em defesa da democracia, do artigo 207 da Constituição brasileira, que assegura às universidades autonomia científica, didática e pedagógica. Sem essa autonomia, a universidade não pode funcionar.

Fórum
– Quais os seus próximos passos?

Carlos Zacarias
– Vou me reunir com advogados. A procuradoria da UFBA, que é acionada em última instância, porque seus agentes, eu e o reitor, fomos citados, também deve se manifestar e vamos preparar essa resposta à posição do senhor Alexandre Aleluia e, através da Justiça, vamos responder. O sindicato nacional já colocou sua assessoria jurídica à minha disposição. Meu sindicato dos professores também se colocou à disposição. A universidade se manifestou na sexta-feira, repudiando a atitude do vereador e reafirmando a autonomia da universidade, a liberdade que nós devemos ter para seguir ensinando. Então, esses são os passos que vamos tomar, até que os dez dias se encerrem e a gente apresente nossa argumentação.

Fórum – O senhor teme algum tipo de represália por ter criado essa disciplina?

Carlos Zacarias – Eu já fui perguntado se temia alguma represália e disse que não posso temer. Eu não tenho o direito de ter medo, porque nós não vivemos em uma ditadura. É justamente para evitar que a gente caminhe para um estado de exceção que disciplinas como essas são fundamentais. Eu tenho família, tenho filhos pequenos e não exporia minha família a uma represália nesse nível de exposição a que fui submetido. Eu, obviamente, tenho a disposição de seguir em frente, de defender com unhas e dentes a oferta dessa disciplina e de defender com unhas e dentes a ideia que gira em torno dessa disciplina, de que houve um golpe em 2016 e que a democracia corre risco. Ao lado da discussão da democracia, ela precisa ser defendida. Eu temo, porque a onda de ódio que foi despejada na minha página na rede social foi impressionante. Hoje, há grupos de extrema direita que veiculam minha fotografia e eu tenho de andar com mais atenção. Isso não vai me fazer dar nenhum passo atrás na medida em que eu tomei, no processo que eu vivi. É parte da minha obrigação como intelectual, como professor, como alguém que tem uma coluna quinzenal no jornal A Tarde, como alguém que intervém politicamente, alguém que já dirigiu o sindicato dos professores em duas circunstâncias. Então, não tenho o direito de temer, de dar nenhum passo atrás. Mas claro, estou atento, pois os grupos de ódio são muitos, há muito ódio circulando, há grupos de extrema direita, grupos parafascistas, protofascistas, que estão se organizando, e nessa altura eu posso ser reconhecido pelas fotos que foram veiculadas e que transformaram meu nome e a minha figura em alguém que pode ser alvejado por essas pessoas com ódio. Mas, como eu disse, não ando só, tenho muito apoio, muita solidariedade. Foi impressionante a onda de apoio e solidariedade que eu ganhei, não só nacionalmente, como internacionalmente também. É impressionante que nessa altura a atitude do ministro, que foi logo respondida pela nossa disposição em oferecer a disciplina, acendeu um rastilho de pólvora. A universidade, hoje, é um foco de resistência contra o Estado de exceção que começa a se configurar no Brasil. A gente espera que esse governo saia o quanto antes, porque não foi eleito, porque não tem legitimidade para dirigir o país. A gente espera que haja eleição normalmente em outubro e um novo governo com legitimidade possa assumir o país. Penso que se não há o direito de a gente ensinar sobre o golpe agora, se houver só depois, é porque a gente vive em um Estado de exceção, pois se confirma o que a gente vem dizendo, vem refletindo. Precisamos discutir o futuro da democracia. Porque se a gente só puder falar que houve um golpe depois que esse governo passar é porque esse governo é efetivamente autoritário. Vai ser uma confirmação do que nós estamos dizendo.

Fórum
– Como analisa os frequentes arbítrios que estão ocorrendo nas universidades públicas do Brasil?

Carlos Zacarias – A onda de arbítrio que se instalou e se abateu sobre a universidade brasileira só pode preocupar a todos nós que somos democratas, todos nós que defendemos o livre debate de opiniões e de ideias. Como eu disse, não é comum que isso ocorra, que um ministro intervenha, que um ministro faça ameaças. Não é comum que professores sejam chamados a prestar declarações na Justiça ou na polícia. Há duas semanas, o professor Elisaldo Carlini, da UFSCar, foi chamado a prestar depoimento na Polícia Federal por suporta apologia ao crime, o que é um absurdo completo. Ele é um professor aposentado, com 88 anos de idade, com 50 anos de estudos sobre os efeitos da cannabis no organismo. É um completo absurdo isso que está acontecendo. Acho que o mundo tem de estar de olhos voltados para o Brasil, pois estamos passando por um momento muito arriscado. Até dois anos atrás, antes do impeachment ter se configurado, eu não achava que estávamos vivendo um estado de exceção. Mas hoje estamos caminhando a passos largos para esse momento. Há um estado da federação, um dos mais importantes do país, que está sob intervenção federal, com os militares nas ruas. Há uma profunda espetacularização da violência. Nesse sentido, a democracia vive ameaçada permanentemente. A existência da universidade é a existência do direito da crítica, da imprensa, obviamente, com liberdade e a existência do direito de fazer a crítica. Quando a universidade fica ameaçada, quando os intelectuais, sua inteligência, seus pesquisadores, estão sob suspeição, sob o olhar vigilante, não só dos poderes constituídos, mas de grupos parafascistas, a gente está sob ameaça. Então, a gente tem que se defender, porque do contrário vamos ver a democracia escorrer pelo ralo muito rapidamente.

Fórum – O senhor disse em uma entrevista que “o reitor João Carlos Salles também foi citado. Ou seja, a UFBA foi atingida, está sendo agredida, posta à prova”. De onde surgem essas agressões?

Carlos Zacarias – O reitor da nossa universidade, o professor João Carlos Salles, é uma figura de enormes serviços prestados à causa da democracia. Quando veio o golpe, a UFBA organizou um debate sobre a crise e a democracia e ele foi ameaçado. O professor João Carlos tem sido um defensor do direito dos docentes da UFBA se expressarem, da forma como deve ser. E ele também está se preparando para se defender. Essa preparação para a sua defesa é a preparação da defesa da democracia. Essa semana que começa nós teremos o Fórum Social Mundial e vamos em todos os espaços que pudermos intervir para denunciar esse tipo de atitude que foi tomada pelo vereador do DEM de Salvador, que redundou na intimação, que passa a ser, de alguma maneira, um processo de intimidação. Nós vamos denunciar essa atitude e vamos buscar solidariedade. O reitor, que é um dos anfitriões do Fórum Social Mundial, também está se movimentando, como democrata que é, uma figura que exerce profunda liderança na universidade, para poder, pelos meios institucionais, responder da maneira que deve a esse ataque que a universidade sofreu.