Afinal, o que move a esquerda?

 "Ninguém escolhe ser pobre. Todo pobre é, de fato, um empobrecido. Fruto da loteria biológica, porque nenhum de nós escolheu a família e a classe social nas quais nasceu (…) É preciso acabar de vez com a loteria biológica" Frei Betto.

Por Rita Coitinho*

Pobreza periferia - Foto: Cáritas

Tenho lido por aí que não há mais esquerda ou direita. Dizem alguns “analistas” – muito bem adaptados ao sistema, por sinal – que tudo se resume a uma disputa por “poder”. Dizem isso e não explicam muito bem o que é o poder, mas desconfio que a falta de clareza serve aos seus argumentos. Afinal, se “poder” é algo meio confuso, sendo talvez apenas a possibilidade de indicar amigos a cargos de governo, o conceito perde a centralidade e os partidos podem ser reduzidos a grupos de interesse. De outro lado, leio com surpresa gente “de esquerda”, ou mesmo “socialista”, a lançar mão de teses caras ao velho liberalismo, como a demonstrar que a esquerda não é inimiga do desenvolvimento capitalista e, portanto, não deve ser temida. Leio colegas da academia a reivindicar para a esquerda a condução do processo de desenvolvimento do capitalismo nacional, como fazia o velho partidão nos anos 1950, interpretação há muito tempo superada.

Esses teóricos “de esquerda” baseiam seus argumentos na necessidade de desenvolvimento que estaria pautada, primeiramente, no fortalecimento dos monopólios nacionais privados. No pacote, admitem a defesa de uma cota de sacrifício – por parte dos trabalhadores, suponho, pois as elites nunca precisaram fazer sacrifícios – em torno da busca desse desenvolvimento. Mais surpreendente ainda é o argumento de que a desigualdade não é o principal problema do país. De fato, a desigualdade não é o problema, ela é a consequência do problema, que é a brutal concentração de renda. Porém as teses que relativizam a desigualdade estão aliadas à relativização da questão da concentração da riqueza.

A teoria liberal justifica a desigualdade social. Tanto os pensadores “clássicos” quanto os contemporâneos “neoliberais” entendem a desigualdade como motor do progresso, na medida em que as possibilidades de acumulação impulsionam desenvolvimento industrial e tecnológico. De outro lado, as modernas teorias socialistas denunciam a desigualdade social como resultado de um processo de apropriação do resultado do trabalho alheio. Parte-se da análise do funcionamento do capitalismo para concluir que “se a classe operária tudo produz, a ela tudo pertence”. Este pensamento radical, ao contrário do que dizem os detratores das teorias socialistas, não se opõe ao desenvolvimento econômico, mas questiona a apropriação da riqueza por aqueles que não a produzem.

Karl Marx, cujo nascimento completa 200 anos neste ano de 2018, ficara intrigado a respeito de um problema novo que ocupava as forças de repressão alemãs na primeira metade do século XIX: a imensa quantidade de pobres presos por “roubar lenha”. A lenha sempre fora de uso comum das populações nas épocas frias, para garantir o aquecimento das residências. Na medida em que as terras foram sendo apropriadas, a lenha passou a ser propriedade de poucos, em detrimento de muitos. Marx inquietou-se com essa “naturalização” da propriedade e mostrou, em sua obra, que apropriação da terra, do produto do trabalho etc. são históricos, e não naturais. Da mesma maneira, a partir de seus estudos, demonstrou que acumulação da riqueza, no capitalismo, está ligada à apropriação do produto do trabalho assalariado. Não é “natural”, portanto, a concentração da riqueza, mas produto histórico-social de uma determinada maneira de organização da sociedade.

Nos anos do “milagre brasileiro”, período em que amplos investimentos do Estado impulsionaram o desenvolvimento industrial do país, uma máxima justificava a crescente concentração de renda: “é preciso fazer crescer o bolo, para depois dividi-lo”. O bolo cresceu, de fato, às custas do arrocho salarial, à revelia da reforma agrária, trazendo ao Brasil, de um lado, um pujante parque industrial e, de outro, uma urbanização desordenada, caótica, onde multidões de miseráveis empilharam-se nas periferias dos grandes centros. Nas duas últimas décadas, políticas de distribuição de renda foram implementadas pelos governos do Partido dos Trabalhadores, tornando menos dura a vida de milhares de famílias, porém o Brasil segue à frente nos rankings mundiais de desigualdade social. O aprofundamento da crise econômica e o caráter concentrador do governo neoliberal, que se impôs por um golpe de Estado em 2016, interrompeu as políticas sociais e encaminha o país para um novo processo de aprofundamento da desigualdade.

Nos tempos atuais, assistimos a uma ofensiva da propaganda ideológica neoliberal. Procura-se convencer as pessoas de que a desigualdade é um dado da natureza. “Sempre existiu”, “é necessária”. Difunde-se a ideia de que sem desigualdade não há competição e, sem competição, não há inovação e, portanto, não há progresso tecnológico. Na mesma linha argumenta-se que sem a possibilidade de acumulação não há investimento, o que inviabiliza o crescimento industrial. Com isso busca-se atacar até mesmo políticas sociais realizadas nos marcos do sistema capitalista, como os programas de distribuição de renda, garantia de serviços públicos de saúde e educação, energia e habitação. Diz-se que as políticas sociais são inimigas do progresso, pois tornam as populações “acomodadas”. No mesmo pacote, justifica-se a crise econômica pelos “gastos” sociais, induzindo-se os governos a restringir o financiamento de programas sociais, cortar direitos trabalhistas e apoiar o arrocho salarial. Enquanto isso, as grandes corporações e instituições financeiras podem ampliar seus lucros, concentrando mais e mais riqueza, sem revertê-las em investimentos industriais como, em tese, “deveria” acontecer. Vende-se às massas empobrecidas o discurso do “sacrifício”, quando em toda a história do capitalismo sabe-se que os sacrifícios sempre estiveram na conta das massas trabalhadoras. A realidade é que o capitalismo não é um sistema racional: os capitalistas competem por lucro – e nesse sentido acabam impulsionando as inovações –, não estão interessados na garantia de condições de vida para os trabalhadores. Desta forma, progresso tecnológico não é irradiado na mesma medida em que é alcançado. Os direitos sociais resultam de embates entre as massas assalariadas e os detentores do poder. Na medida em que a crise do sistema se aprofunda, assistimos à formação de um grande contingente de “descartáveis”, cuja situação de penúria social é justificada pelo discurso da meritocracia. Para sair da miséria, segundo esse discurso, basta o “esforço”. A aposta no “cada um por si” do capitalismo, ao contrário, submete as gerações à “loteria biológica”, de que nos falou Frei Betto. A realidade é que o sistema caminha para a concentração cada vez maior da riqueza, combinada à formação de um imenso contingente de seres humanos descartáveis, onde não há espaço para a ascensão social por meio do esforço individual. O destino das massas empobrecidas é a marginalização social, o amontoamento nas periferias, que daqui para frente serão, cada vez mais, empurradas para o extermínio. A “guerra às drogas”, como política generalizada de militarização das sociedades, responde diretamente à necessidade de contenção das massas miseráveis em processo de ampliação.

A desigualdade não é natural, e tampouco é necessária. É possível, com o nível tecnológico de que a humanidade dispõe, garantir emprego, renda e alimento para todos, desde que em níveis sustentáveis. Não é possível garantir o nível de consumo da classe média estadunidense, ou mesmo brasileira, para todos. Mas é viável uma vida digna para todos em bases mais modestas. Os seres humanos não são “naturalmente” isso ou aquilo, somos resultado da socialização e somos capazes de racionalizar a maneira como vivemos. Se formos capazes de organizar nossas sociedades em bases solidárias, será possível educar crianças e jovens dispostos a atuar na ciência, nas artes e na cultura, de modo a aperfeiçoar nosso modo de existência. É essa compreensão, que refuta a desigualdade e aposta no planejamento racional e na superação das injustiças que diferencia a “esquerda” da “direita”. É com base num programa de erradicação da miséria e das desigualdades que pode a esquerda disputar os rumos e a hegemonia de um processo de desenvolvimento do Brasil, um desenvolvimento soberano, sob controle social e voltado à satisfação das necessidades do povo. A renúncia à revolta contra a desigualdade social faria da esquerda um mero grupo de interesses, em disputa pela gestão do sistema, dando, enfim, razão àqueles que decretaram o fim de todas as ideologias.