A insustentabilidade do relatório de sustentabilidade da Petrobras

 O documento explicita uma abissal distância entre o discurso floreado e a prática da empresa, baseada na lógica financeira e desnacionalizante.

Por William Nozaki*

petrobras

A Petrobras divulgou no último mês um Relatório Integrado contendo seu relatório financeiro, seu relatório de administração e seu relatório de sustentabilidade.

Por trás das informações e dados apresentados nestes documentos, pode-se observar a construção de uma nova diretriz estratégica: a redução de empresa integrada no segmento energético para companhia enxuta, concentrada estritamente de exploração e produção de petróleo.

É essa mudança que norteia as análises do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (INEEP) organizada na série de artigos “Análise crítica dos resultados da Petrobras em 2017”. O primeiro texto tratou dos resultados financeiros da empresa, este segundo artigo aborda, por seu turno, o último relatório de sustentabilidade da petrolífera brasileira.

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Em relação ao Relatório de Sustentabilidade, a empresa anuncia a transição em direção a uma economia de baixo carbono, o que significaria:

i) a busca de novas tecnologias com investimentos em startups;

ii) a ampliação da presença em energias renováveis por meio de uma carteira de P&D em biocombustíveis, energia solar e eólica;

iii) a ampliação da participação do gás no mix de produção;

iv) a colaboração ao fundo internacional de Iniciativa Climática de Petróleo e Gás (OGCI) com a contribuição de 100 milhões de dólares em dez anos;

v) a redução da taxa de acidentados registráveis (TAR);

vi) além de incentivos a projetos de direitos humanos, combate à discriminação, respeito à biodiversidade, combate à corrupção e de promoção da cultura e do esporte.

Vejamos cada um desses pontos.

Em primeiro lugar, no caso do Brasil, é curioso notar como o debate sobre a transição da matriz energética em direção à energia limpa e renovável sempre ressurge em momentos geopolíticos e geoeconômicos delicados. Foi assim durante as crises do petróleo na década de 1970, durante a quebra do monopólio estatal do petróleo na década de 1990 e se repete na atual conjuntura de desestatização do setor neste momento.

Em todos, os argumentos acerca da finitude do petróleo e da proteção ao meio ambiente são intensamente mobilizados, e ao que tudo indica não se trata de uma preocupação verdadeira e planejada a fim de promover uma transição energética adequada e necessária.

Na verdade, trata-se de mobilizar, indiretamente, argumentos socialmente aceitáveis para esconder e justificar o desmonte da cadeira produtiva de óleo e gás. Há que se desconfiar. Muitas vezes as ideias certas, de sustentabilidade econômica e ambiental, são utilizadas para esconder interesses equivocados, de entrega “preventiva” dos nossos recursos naturais estratégicos.

Desta forma, a busca por uma economia de baixo carbono assentada no investimento em startups, como anuncia o atual relatório de sustentabilidade da Petrobras, embora tenha se caracterizado como uma das opções adotadas pelas grandes corporações de petróleo, como apontam estudos, parece ocorrer de forma ainda bastante tímida no caso da empresa brasileira.

Não se trata de contestar o apoio ao modelo empresarial das startups, mas de notar como essa diretriz caminha na contramão do que a própria Petrobras realiza na atual gestão: em 2014, a empresa investiu 1,2 bilhão de reais em PD&I, em 2017 esse montante foi reduzido para 713 milhões.

Mais ainda: no último biênio foram desarticuladas diversas redes de integração entre empresas, institutos de pesquisa, universidades e o CENPES (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento Petrobras), para não mencionar a desestruturação da política de conteúdo nacional e a flexibilização das regras para a entrada de engenheiros e trabalhadores estrangeiros no País.

A ampliação da presença da empresa nos setores de biocombustíveis e de energia eólica e solar também não encontram correspondência e coerência nas decisões tomadas pela atual gestão. Vale lembrar que um dos primeiros ativos privatizados foi justamente a Petrobras Biocombustíveis.

Algo análogo vale para a suposta ampliação do papel do gás no mix de produção da companhia, pois a mudança na regulação do setor de gás natural, com o Programa Gás para Crescer, vem acompanhada da diretriz de desestatização da Liquigáz, da Transportadora Associada de Gás (TAG), da Nova Transportadora do Sudeste (NTS), da Nova Transportadora do Nordeste (NTN), da Transportadora Brasileira do Gasoduto Brasil-Bolívia (TBG), além da venda dos terminais de regaseificação da Bacia de Guanabara (RJ) e de Pecém (CE).

Ampliar a participação do gás nesse contexto só pode ser uma forma enviesada de anunciar a maior participação do capital estrangeiro no mix de produção de gás no Brasil.

No caso da participação no fundo internacional da OGCI, os valores parecem ser baixos, algo em torno de 800 mil dólares por mês em um intervalo de uma década, montante menor do que aquele aplicado em muitos eventos culturais fomentadas pela Petrobras.

A taxa de acidentes de trabalho registráveis (TAR), por seu turno, alardeada pela empresa como uma de suas métricas principais, apresentou uma ligeira melhora. Resta saber se a redução foi provocada por mais atenção à segurança no trabalho ou se é efeito colateral da própria redução do número de trabalhadores e do número de operações realizadas.

Além disso, como o próprio relatório reconhece, a empresa não foi capaz de evitar seis acidentes e um desaparecimento. O que se nomeia de fatalidade talvez seja negligência com relação às ações de prevenção a esse tipo de problema.

Por fim, no que diz respeito ao apoio às iniciativas da sociedade civil, os projetos sociais e ambientais deixaram de receber recursos desde 2014, a companhia também reduziu os recursos para cultura de 203 milhões de reais, em 2013, para 61 milhões em 2017. E enxugou os aportes em projetos ligados ao esporte de 81 milhões para 21 milhões de reais, também comparando os dados para o período entre 2013 e 2017.

O relatório de sustentabilidade 2017 da Petrobras explicita uma abissal distância entre o discurso floreado com expressões palatáveis e em voga e a prática marcada pela priorização da lógica financeira e desnacionalizante de uma empresa orientada estritamente para seus acionistas e para sua dimensão privada, negligenciando sua função pública para o conjunto da sociedade brasileira.

Quanto confrontado com a realidade, a defesa do relatório de sustentabilidade 2017 da Petrobras mostra-se insustentável.

* Professor de ciência política e economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp) e da Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (Flacso), é diretor técnico do Instituto de Estudos Estratégicos do Setor de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep)