Apoio à prisão antecipada em pesquisa não sobrepõe à Constituição

A Folha de S.Paulo publicou nesta terça-feira (17) pesquisa em que faz um jogo de manipulação para tentar homologar a decisão apertada do Supremo Tribunal Federal (STF), por 6 a 5, sobre a prisão em segunda instância.

Por Dayane Santos

Pedro Serrano - Felipe Bianchi/Barão de Itararé

A pesquisa aponta que 57% dos entrevistados apoiam a prisão antes do trânsito em julgado da sentença. Outros 36% defendem prisão após esgotados todos os recursos possíveis e 6% não souberam responder. "Maioria apoia prisão de condenados em segunda instância, diz Datafolha", foi a manchete da matéria de capa do jornal, que subliminarmente leva o leitor a acreditar que a decisão da corte foi acertada e, portanto, na lógica da Folha a prisão de Lula foi justa. 

Soma-se a esse tipo de publicação a enxurrada de teses que insuflam o crescente punitivismo penal da grande mídia com publicações como a matéria do Estado de Minas que dizia "Fim da prisão após segunda instância pode tirar 22 mil da cadeia", ou a do site Notícias Brasil que disse: "Para salvar Lula da prisão, STF vai ter que libertar estupradores, pedófilos, assassinos e narcotraficantes".

A construção dessa tese é feita sem que a grande mídia tenha disponibilizado as informações que a população precisa para analisar a questão e busca legitimar uma violação aos dispositivos constitucionais com base apenas e exclusivamente na opinião publicada, ignorando os princípios constitucionais.

O discurso adotados pela maior parte dos meios de comunicação para solucionar a questão da criminalidade é o que defende a repressão, a aplicação de leis penais e sentenças mais duras que ignorem os direitos e garantias individuais e a execução penal sem benefícios. De acordo com esse discurso, quem defende um caminho diferente dessa tese está agindo em apoio aos transgressor, em favor do crime.

Os direitos são contramajoritários

Em entrevista ao Portal Vermelho, o professor de Direito Constitucional da PUC Pedro Serrano afirma que o fato da decisão do Supremo sobre a prisão em segunda instância ter um suposto apoio social não pode ser interpretado como um fator que pudesse ter peso na decisão de nenhum juiz ou ministro.

“Os direitos são sempre contramajoritários. Eles foram criados na Constituição para isso, em especial os que se refere à liberdade. Mesmo que uma maioria quisesse condenar alguém sem direito a defesa, não pode. A presunção da inocência é um elemento essencial de um processo”, enfatizou o jurista, enfatizando que a discussão sobre o que as pessoas pensam “não deveria ter tanto valor”.

Para o professor, se os tribunais sustentarem suas decisões na busca de satisfazer um suposto anseio das ruas, estaremos anulando os direitos e garantias individuais, que é a barreira limitadora que protege os cidadãos da ação arbitrária do estado.

“Não se pode votar contra os direitos fundamentais ou contra a democracia, pois esses direitos são inerentes à democracia”, reforça. “O Judiciário aplica a lei. Ele não cria a lei ou direitos. Então, como juiz de aplicação, ele não instaura o novo, portanto, a opinião pública tem pouco relevo… Se o objetivo é ganhar agilidade, a mudança deve ser via parlamentar. Mudar esse dispositivo constitucional não dá [via judiciário], pois é cláusula pétrea”, explica o professor se referindo ao princípio da presunção da inocência estabelecido pelo trânsito em julgado, dispositivo constitucional que não pode ser alterado nem mesmo por Proposta de Emenda à Constituição (PEC), por ser considerado direito e garantia individual que não retrocede. Para mudar é preciso uma nova Constituinte.

Serrano destaca que é possível pensar em medidas alternativas para impedir que processos resultem em impunidade como a redução do número de recursos permitidos pela legislação no processo ou criar mecanismos em que o trânsito em julgado ocorra de forma mais célere. “Mas isso é um debate para se levar no parlamento. No judiciário, em geral, a função é aplicar a lei. E não criar legislação ou leis novas”, disse.

Direito achado na rua

A advogada Conceição Aparecida Giori, em entrevista ao Conjur, disse que o caminho do direito “achado na rua” é perigoso e pode levar a “assistirmos em pouco tempo a validação da pena de morte, a despeito da Constituição assim o proibir, como proíbe a execução antecipada da pena a presumidamente inocente".

O jurista Lenio Streck lembrou que os dados da pesquisa da Folha sobre segunda instância são equivalentes aos apresentados sobre a pena de morte recentemente. "Os percentuais são praticamente iguais. Daí se tira o seguinte lema: primeiro antecipemos a execução da pena, e depois executamos o condenado. Missão cumprida. E o recurso da execução da pena de morte será como a tortura no medievo: não tem efeito suspensivo! Ah: e a pauta para o recurso — que não adiantará para nada — é poder discricionário do presidente do tribunal. Bingo. O Brasil vai bem!", ironizou Lenio.

Para Serrano, a imprensa trata a segunda instância como a principal causa de impunidade, o que é um erro. “A imprensa também não compreende que o problema não é a segunda instância. Me perguntaram: é possível ter um sistema de garantia de presunção da inocência que haja execução em segunda instância? É possível se houver mecanismos de garantias de presunção da inocência como há em outros países”, disse.

Segunda instância em outros países

Entre os que defendem a prisão antecipada há aqueles que argumentam que a maioria dos países permite a prisão após decisão em segunda instância, citando a legislação de nações como Estados Unidos, França, Alemanha e Portugal. Serrano rebate esse argumento afirmando que a comparação é inadequado por não levam em consideração o sistema jurídico brasileiro e a forma que as denúncias são aceitas pelos tribunais.

“Uma boa parte dos estados americanos, por exemplo, para acusar alguém tem que passar pela revisão de um grande júri, de 21 pessoas normalmente, e se este júri autorizar o promotor a processar o juiz ainda pode negar. Ou seja, passa por duas decisões. Portanto, é natural ter em segundo grau a execução da pena”, aponta o professor. Vale destacar que nos EUA todos os julgamentos são feitos com júri popular, enquanto no Brasil apenas os casos de crimes contra a vida são julgados nesse modelo.

Esse modelo tão aclamado por setores conservadores é falho. O juiz federal e professor da Universidade de Columbia Jed Rakoff diz em artigo que o sistema americano tem penas altas e dá poder desproporcional à acusação em relação aos defensores, o que leva a pessoas inocentes a se declararem culpadas por temer julgamentos longos que podem acabar em graves condenações, já que alguns estados americanos a pena de morte é prevista.

Serrano afirma ainda que há países que a decisão sobre a condenação não é proferida pelo juiz que fez a chamada instrução processual, ou seja, o juiz que colhe as provas e o depoimento.

“Na maioria dos países democráticos um juiz conduz a investigação, que é o que dá as liminares, cautelares, etc., e como esse juiz acaba se contaminando pela lógica acusatória, não é ele quem conduz o processo. E em muitos países quem decide é outro, ou seja, passa pela mão de três juízes”, apontou ele, destacando que a questão da presunção da inocência "é muito mais uma questão do sistema do que uma regra de execução”.

“É importante dizer que no Brasil temos um código de processo penal ultrapassado, arcaico. A principal regra de presunção de inocência é o trânsito em julgado, então abrir mão dela é abrir mão do valor da presunção da inocência. No plano político, considero um imenso equívoco que se tenha feito isso”, completou.

Para Serrano, do ponto de vista jurídico, houve um desvio de função do debate promovido pelo Supremo. “No plano jurídico, esse tipo de argumento que usei até agora não é o debate adequado. O debate feito pelo próprio Supremo também não foi adequando. Esse não é o papel do Supremo, pois seu papel é dizer como a Constituição determina, como o Código de Processo Penal brasileiro determina e ambos estabelecem o trânsito em julgado”, declarou o jurista.

Para ele, há um populismo penal punitivo que é parte de um movimento mundial crescente. “É na política que isso ocorre e tem tomado conta do mundo, não é apenas no Brasil apesar de ser muito intenso no país. No âmbito do direito [esse movimento] se manifesta por esse populismo penal punitivo que tem gerado distorções hermenêuticas. A interpretação da ordem jurídica é feita segundo quem quer ou deseja e não segundo o que própria ordem jurídica deseja. Isso tem gerado caos institucional de toda ordem”, apontou.

De acordo com o professor, essa nova ordem jurídica cria um paradigma mais autoritário em que o judiciário passa a produzir medidas de exceção, sendo que deveria ser fonte de direitos. “É óbvio que não são todas as decisões, nem em todos os tribunais nem todos os juízes. Mas tem ocorrido. E isso afeta todos os ambientes da vida, não somente o direito penal, pois acaba repercutindo no modo de interpretar que passa a ser segundo o que quer e não o que a lei determina. Vai afetando outras áreas do direito e esse modelo mais autoritário de convivência social vai contaminando todos os ambientes existentes. É uma nova forma de populismo fascista. Reformada e mais difícil de ser combatida, pois não se enxerga o autor. É um sistema que produz”, conclui.