Escritor busca história de Carolina de Jesus além dos estereótipos

Tom Farias colocou o ponto final na biografia de 402 páginas sobre Carolina Maria de Jesus dentro da cela onde ela passou uma semana presa, nos anos 1920. Quarenta e um anos depois da morte da poeta e escritora, o lugar virou Arquivo Público de Sacramento, sua terra natal. Uma cidade mineira de 23 mil habitantes, localizada a 452 km de Belo Horizonte. Tom viajou até lá especialmente para isso.

Por Fernanda Canofre

Carolina Maria de Jesus - Reprodução

A prisão foi o que fez Carolina deixar Sacramento, pela primeira vez. Obcecada por leitura, a ponto de deixar queimar a comida quando se distraía com ela, certo dia, Carolina sentou na frente de casa para folhear um dicionário que tinha sempre à mão. Em pouco tempo, a polícia estava à sua porta pronta para levar ela e a mãe presas. Um vizinho acusou-a de estar com o livro de São Cipriano, conhecido como “livro dos malefícios”, usado para praticar feitiços.

As duas passaram seis dias na cadeia, três deles sem comida. Eram obrigadas a capinar a frente da delegacia todos os dias, passavam por interrogatórios aleatórios e recebiam castigos corporais. Durante um deles, um policial quebrou o braço da mãe de Carolina. Sem dinheiro para pagar a fiança de 20 mil réis, tiveram de permanecer ali até serem soltas. Assim que pisou fora da cadeia, Carolina soube que precisava sair da cidade.

Esse é um dos episódios levantados em Carolina – Uma biografia. O livro é o primeiro trabalho que mergulha nas raízes de uma das escritoras brasileiras mais importantes do século XX, através de pesquisa em arquivo, entrevistas com pesquisadores e com dois filhos dela. Tom conta que tentou humanizar sua biografada, evitando colocá-la num pedestal ou reforçar todos os estereótipos que a acompanharam pela vida.

Conhecida por Quarto de Despejo, Carolina foi muito mais do que “a favelada” do Canindé. Mulher negra, catadora de lixo, ex-empregada doméstica, mãe solteira com três filhos, uma semi-alfabetizada que amava ler e escrever, ela virou sensação nos anos 1950 quando foi descoberta pelo jornalista Audálio Dantas. Foi ele quem teve a ideia de publicar seus diários em uma série de reportagens, que mais tarde deram origem ao seu primeiro e mais famoso livro.

Tom reencontrou sua obra num processo de revisitação da literatura brasileira do século XX. Autor de 12 livros, entre eles uma biografia de João Cândido, o líder da Revolta da Chibata, ele conta que a primeira impressão que teve quando a leu pela primeira vez foi “de maravilha”. Durante sua passagem por Porto Alegre, como convidado da FestiPOA Literária, ele conversou com o Sul21 sobre quem foi Carolina Maria de Jesus e porque sua história importa para o Brasil de hoje:

Sul21: Carolina Maria de Jesus foi uma das maiores escritoras brasileiras no século XX, ainda assim não havia biografias sobre ela. A sua é a primeira, certo?

Tom Farias: Tem muitos trabalhos escritos sobre Carolina, muitos deles são ensaios ou perfis biográficos, que falam um pouco dela na infância. Mas não percebi profundidade nesses trabalhos. Em 2014, quando ela faria 100 anos, eu fui curador de uma festa literária, no Memorial da América Latina [em São Paulo]. Nessa homenagem, reeditei livros dela, fizemos exposição. Das coisas que eu li da Carolina, percebi que tudo estava muito raso, que todo mundo só focava na autora de Quarto de Despejo, como se ela fosse apenas aquela mulher da Favela do Canindé. Havia também uma série de confirmações de estereótipos: favelada, mulher negra, mãe solteira. As coisas ficavam navegando em torno dessa premissa e isso me incomodou muito. Eu já tinha escrito alguns artigos antes sobre Carolina e decidi escrever o livro. Já tem outras biografias escritas, sempre gosto de fazer uma busca aprofundada do autor, pesquisa de árvore genealógica e fiz isso com Carolina. Eu entrei mesmo de sola no projeto em 2017. Escrevi em seis meses.

Sul21: O que te motivou a ir atrás foi preencher esses vazios em torno do nome dela?

Tom Farias: Não só, mas estabelecer quem era aquela mulher. Você tem uma Carolina que foi traduzida em 46 países, 16 idiomas, vendeu mais ou menos 4 ou 5 milhões de livros fora do Brasil e, no Brasil, uns três milhões. Como uma mulher dessas pode ser simplesmente autora de um único livro, um livro de anotações? Parece que querem puxá-la para baixo. Fui descobrir que no Quarto de Despejo ela já tinha 20 anos de vida literária. Quando ela chegou em São Paulo, já tinha vontade de ser poeta e compositora e tinha histórias fantásticas, muita coisa publicada em jornal. Chamavam ela de “poetisa preta”, “poetisa negra”. Ela teve uma série de passagens enriquecedoras demais para chegar onde chegou. Quando o Audálio Dantas a descobriu, em 1958, ele encontrou com ela 38 cadernos cheios de coisas. Essas coisas eram o quê? Romances, contos, poesias. Se ela fosse surgir na literatura, ela queria surgir como romancista. O diário era o elemento menor desses cadernos. Ele viu que, em termos de reportagem, ter uma mulher, moradora de favela, que escrevia com elementos tão dramáticos, de fabulação romanesca, de poesia… Ele conseguiu ver além dos erros de gramática. A Carolina já tinha feito um périplo gigantesco por muitos jornais, jornalistas, editoras e ninguém teve o olho clínico do Audálio Dantas.

Sul21: Quando se fala da vida de alguém, também se está falando do contexto histórico. O que a vida da Carolina conta sobre o Brasil em que ela viveu?

Tom: Eu fui buscar no século XVIII referências sobre o quilombismo no Triângulo Mineiro, fui buscar as origens da mãe da Carolina, em Rio das Velhas, Minas Gerais. A história dessa ocupação mineira pós-Inconfidência, pós-migração da mineração, da exploração de ouro e diamante. Iam secando as fontes [de renda], isso ia mudando. A região onde nasceu Carolina passou muito por isso. Havia ali muitos conflitos entre quilombolas, índios, portugueses e bandeirantes, que eram exploradores. Eram vários quilombos, o mais famoso deles, o Quilombo do Ambrósio, todos arrasados pelos bandeirantes. A família da Carolina eclode dessa população dizimada. Eu fui buscar também compreender a infância dela. Como uma pessoa semianalfabeta, que estuda dois anos em uma escola, pode escrever o que ela escreveu? Tinha que ter uma explicação. Encontrei a História de um Brasil que, no pós-abolição, vinha de um processo de industrialização, [de se reerguer] da queda da Bolsa de Nova York, que causou estrago sobretudo na questão do café, rachando a espinha dorsal do país. Esse êxodo que levou Carolina a São Paulo é reflexo de toda essa mudança. Carolina chega a São Paulo no dia 31 de janeiro de 1937 e é outra cidade. As pessoas foram morar em cortiços, porque é tanta gente que a exploração imobiliária não dá conta. Entre 1940 e 1950 é uma época de muitos despejos, cerca de dois, três mil. Para onde vai toda essa população? É quando se dá o processo da Carolina, que mora numa ocupação, o proprietário pede o prédio, as autoridades entregam e mil pessoas ficam sem lugar para ir. A prefeitura e o governo do Estado dão como alternativa irem para a favela do Canindé, que estava começando.

Sul21: Ou seja, o caminho dela são todas essas transformações.

Tom: Passo a passo. Porque Carolina nasce numa família muito pobre, morando em casas de pau-a-pique, chão de terra batida, com familiares que eram analfabetos, sai dessa região, muitas vezes a pé, para encontrar trabalho em outras regiões. Ela ia e voltava, porque Sacramento era o elo dela. Ela foi para São Paulo porque era seu sonho, ela achava que era um oásis, que todo mundo que ia para lá se dava bem. Fora que teve muitos problemas em Sacramento. Carolina gostava de ler demais, nessa obsessão, um dia, ela estava lendo na porta de casa e acusaram a Carolina de estar lendo o livro de São Cipriano, o “Livro dos Malefícios”, pra fazer magia. Ela e a mãe foram presas, ela acusada de “ser diabólica”. As duas foram muito maltratadas dentro da cadeia. Apanharam tanto que a mãe quebrou o braço. A mãe achava que havia uma espécie de maldição, que ela não poderia ficar na cidade. Essa vontade de sair veio muito dessa humilhação que elas sofriam. A sorte dela é que ela encontrou um casal que ia se mudar para São Paulo e precisavam de uma empregada. Mas, assim que ela chega em São Paulo, teve a decepção logo de cara, porque a cidade não era tudo o que ela imaginava. Depois ela migra pro Rio de Janeiro, passa dois anos lá, por volta de 1940, um dado novo da biografia dela. Não há registro sobre isso, nem diário, nem escrito, a família não sabe, nenhum pesquisador informou sobre isso.

Sul21: E como tu conseguiste descobrir?

Tom: Sei lá (risos). Obra de pesquisador. Eu descobri umas reportagens que me levaram à essa informação. Quando Carolina foi para São Paulo, ela começou a escrever compulsivamente. Um amigo olhou aquilo e achou que ela estava maluca, depois disse que seria legal se ela mostrasse para um jornalista e começa a peregrinação da Carolina nas redações. O primeiro escrito que eu encontrei dela foi de 1940, mas em 1938 ela já publicava. Ela foi ao Rio, porque achava que o Rio poderia dar a ela o que ela queria como artista. Foi outra decepção. Ela batia nos jornais, dizia que era poeta, tinha livro de poemas, dizia que queria ser atriz e nada. Mas, quando o livro dela foi lançado em 19 de agosto de 1960, a Carolina era uma das escritoras mais populares do Brasil. No primeiro dia de lançamento, ela vendeu 700 livros autografados. Em cinco dias, foram 10 mil exemplares. Todos os dias ela estava nos jornais, televisão, nas rádios. Ela passou a conviver com a sociedade, sobretudo a paulistana, que começou a tê-la como um produto. Ela mesma dizia: “as pessoas que ontem me viam como suja, que tinham nojo de mim, hoje querem tirar foto comigo e estar do meu lado”. Já na favela ela começou a ser muito hostilizada e sai de lá xingada e apedrejada.

Sul21: Como foi isso para ela?

Tom: Carolina não se identificava com a favela. Ela morou por 12 anos no Canindé, mas para ela era o lugar dos vícios, da violência. Ela presenciou de tudo na favela e o Quarto de Despejo era uma forma de dialogar, porque ela não falava com ninguém, não tinha grandes amizades na favela. Ela usava esses cadernos, como se estivesse conversando com alguém e colocava tudo ali. Pedofilia, violência doméstica. O Canindé foi o lugar que ela encontrou para morar porque não havia outro. Mas a vida inteira ela queria sair da favela e, na primeira oportunidade que teve, saiu. Eu não gosto dessa coisa que a Carolina era “favelada”. A palavra já carrega um ranço de preconceito com as pessoas que moram lá. Você não tem escritor do sobrado, da mansão, então, essa coisa de favelada carrega todo o preconceito. Além de, no caso da Carolina, o fato de ela ser mulher, negra, semi-alfabetizada. Isso tudo eu fui encontrando e falei: não posso levar para esse lado.

Sul21: Tu sentiu que precisava fazer justiça ao que ela sempre quis na sua biografia?

Tom: Acho que é dar o lugar. As coisas que foram escritas sobre Carolina foram escritas por pessoas brancas, de classe média, acadêmicas. Ninguém vai conseguir sentir o que ela sentia. É muito fácil dizer “a vira-lata”, “a poetisa dos resíduos de lixo”. Agora, isso não era o sentimento da Carolina. Ela sempre tinha um sentimento de grandeza, de querer sair da favela para poder dar melhores condições aos filhos. Ela obrigava os filhos a estudar, porque era o melhor caminho, tudo o que ela não pode fazer. Ela era geniosa e espancava os filhos, caso eles não fossem estudar.

Sul21: Apesar do sucesso que ela teve com Quarto de Despejo, de estar entre autores mais lidos no país, ela não conseguiu ter uma carreira estável depois. A que tu creditas isso?

Tom: Se dá por duas razões. Primeiro, Carolina virou um produto da mídia, do marketing e chega uma hora que cansa. A televisão tinha dez anos no Brasil, era um produto caro, de luxo. Você imaginar uma mulher, todos os dias na televisão, nos jornais, então, a Carolina foi cansando a opinião pública. Ela era a Carolina do Quarto de Despejo, não tinha nada novo.

Sul21: Por que tu achas que não deixaram ela ir além disso?

Tom: Aí são vários fatores, um dos quais era não acreditarem na Carolina romancista, poetisa, compositora, dramaturga, atriz. Ela queria ser tudo isso. Tanto que a peça baseada no Quarto de Despejo não fez tanto sucesso. A sociedade ia à peça, ia ao camarim e depois queria contratar os atores como empregados domésticos. “Você não quer trabalhar lá em casa?”. Quando ela saiu da favela, ela produziu um outro diário, Sala de Visitas, foi conviver com outras mulheres da sociedade e foi outro conflito. Um quilo de papel que a Carolina catava custava um cruzeiro, para comprar um pão ela gastava doze cruzeiros. De repente, ela passou a usar vestidos de 18 mil, 25 mil cruzeiros. A casa dela custou 1,5 milhão de cruzeiros. Ela mudou, ganhou dinheiro. O lenço de chita passou a ser de seda. Ela era fotografada com governadores, com o presidente da República e encontrou uma sociedade hipócrita. Diziam para ela que ela tinha que ser dócil, que já que estava ganhando dinheiro tinha que fazer doações. Ela dizia, “poxa, eu que estou ganhando dinheiro agora tenho que fazer doações? Por que essa outra mulher que é rica nunca fez?”. Ela foi notando essa hipocrisia [e escreveu] Casa de Alvenaria. Para esse livro, a reação foi contrária. Essa sociedade falou “opa, essa mulher está nos vigiando”. Numa solenidade, que estava o João Goulart, começaram a falar sobre política e daqui a pouco ele disse: “gente, tem que ter cuidado que a Carolina está aqui”. Ela foi até apelidada de língua de fogo, porque falava mesmo. Defendia o socialismo, reforma agrária, Fidel Castro, porque a Revolução Cubana era um assombro para o mundo inteiro. Essa confluência vem após o Casa, que vendeu só 10 mil exemplares e junta à mudança política, com a ruptura em 1964. A ruptura causou uma espécie de paranoia, as editoras não apostavam nos autores ditos socialistas. A Carolina era uma socialista ingênua, que dizia que se fosse governadora tiraria todo mundo da favela e daria terras. Acho que isso levou a irem deixando a Carolina no limbo.

Sul21: E a produção dela também?

Tom: Em 1963, Francisco Alves querendo dar uma “ajuda” publica em edição popular o Quarto de Despejo, mas não faz sucesso nenhum. Ela resolve fazer por conta própria, o que é pior. Com o parco dinheiro que ela ganhou, os aproveitadores de plantão apareceram, isso levou a Carolina a alugar a casa de São Paulo e ir para um sítio que ela tinha comprado, que era um sonho dela. Esse afastamento ajuda ainda mais nesse processo de ostracismo, nessa semi-loucura, carência, conflito com os filhos, que estavam acostumados a viver na cidade. Lá eles não tinham mobilidade, não tinham luz. Isso gera uma série de tumultos. Ela chega a escrever para o presidente da República pedindo que ele a ajudasse a morar com os índios, porque ela não aguenta mais os filhos que são mal educados e a maltratam. Paralelo a isso, de 1962 em diante, o livro eclode no mundo e segue num crescendo até os anos 1990. Carolina vira best-seller na Argentina, na Alemanha, nos Estados Unidos, Itália. Ela viaja para o Uruguai, onde ela foi recebida como chefe de Estado, andando em carro aberto com o presidente. Na Argentina, o livro vendeu 10 mil exemplares em três dias. No Chile, ela conviveu com Pablo Neruda, Octavio Paz, com as grandes sumidades da literatura e do pensamento. Neruda ficou apaixonado pela Carolina e chegou a dedicar um poema a ela.

Sul21: Aqui no Brasil, parece que o interesse pela obra dela tem crescido nos últimos anos. Por que os livros ainda são difíceis de encontrar?

Tom: Primeiro que ainda não se aceita a Carolina do jeito que ela é. Enquanto você tem no mundo escritores do porte do Alberto Moravia, um dos maiores contistas italianos, comparando a obra dela com referências a Shakespeare, no Brasil continuam olhando Carolina pelos erros de português. Marcos Magno, um linguista brasileiro, chama isso de preconceito linguístico, como se nós não soubéssemos falar português e quem falasse bem fosse o português de Portugal. É tudo mentira, porque a língua é viva. A prova disso é que Carolina conseguiu se comunicar com o mundo inteiro. Senão não estaria em 46 países, em 16 idiomas. Ela é uma das mulheres negras mais publicadas no mundo.

Sul21: Em coletiva aqui em Porto Alegre, Conceição Evaristo falou sobre temer ser vista como “excepcionalidade”, que ela fazia questão de evitar isso para que outras mulheres como ela fossem vistas também. E com Carolina?

Tom: Carolina foi um acidente de marketing. A Francisco Alves, editora dela, foi criada em 1858, se tornou uma das maiores da América Latina e tinha convênios pelo mundo inteiro. Quando eles publicaram Carolina, talvez não tivessem ideia de onde ela poderia chegar, do fenômeno que consistia. A Carolina não tinha essa compreensão, ela dizia que não dominava a língua, mas que duvidava que existisse alguém com mais inspiração. A Conceição Evaristo, que é nossa escritora mineira, é a Carolina da modernidade. A mãe da Conceição escreveu um diário muito parecido com a Carolina, que ela guarda até hoje. A Conceição nasceu numa favela de Belo Horizonte, chegou a trabalhar como empregada doméstica, todo esse processo caroliniano, ela viveu, mas é vista como escritora. Na época da Carolina, não era assim. Ela era vista como favelada, pobre, tachada.

Sul21: Quando Carolina escrevia ela falava da questão racial, do que era ser mulher negra aos olhos dos outros, num país que é racista, mas que nunca se reconheceu como tal.

Tom: O movimento negro aqui existe desde os anos 1930, com muita força, sobretudo em São Paulo. O Correia Leite, que era uma referência no movimento, escreveu que “Carolina era a mãe negra, ela veio para dar redenção, ser a voz daquela população negra que não tinha voz”. Tinha muitos jornais na época que falavam dessa questão, mas era um movimento da época. Quando a Carolina chegou aos outros países, ela levou também essa carga de ser uma mulher negra. Quem é essa mulher negra e o que ela diz? Pra fora, se conhecia Machado de Assis, mas ele era embranquecido. Quando apareciam as fotos de Carolina no jornal, era com lenço na cabeça, bem preta e ela passa a ser essa referência e essa voz, com todas as suas contradições. Ela também tinha seus momentos de preconceito. Ela dizia que os negros no Brasil era indolentes, tinha muitas críticas, porque via isso, sobretudo na pobreza em que viveu. Na roça, as pessoas ganhavam dinheiro pra tomar cachaça. Na favela, a violência e a falta de trabalho. Essas percepções levaram Carolina a pensar numa indolência do negro, tanto que seus relacionamentos são todos com homens brancos. Os quatro homens que geraram filhos nela, um era um inglês (que gerou uma filha que morreu ainda bebê), um espanhol, português. Essas histórias que eu fui buscar para humanizar a Carolina. Eu quis mostrar quem era essa mulher tão contraditória, que conseguiu nessas contradições criar uma obra fundamental à literatura brasileira e mundial.

Sul21: Como tu a definirias depois dessa pesquisa?

Tom: Primeiro, Carolina é uma escritora. Segundo, é uma grande escritora. É a primeiro coisa que a academia, de modo geral, não aceita. Quando Carolina lançou o Quarto, os grandes escritores a boicotaram, não foram ao lançamento. O lançamento da Carolina teve 1,5 mil pessoas, teve Pelé, Benedito Ruy Barbosa, grandes pessoas, mas ela sentiu a ausência dessa turma que não esteve lá. Ser mulher, negra e escrever “iducação”, “aleitei-me”, as pessoas não aceitam. E Carolina tinha dicionário como a leitura dela normal. Quando ela foi presa em Sacramento, estava lendo um dicionário.

Sul21: Tu falaste sobre ideias de reformas que ela defendia, por que é importante ler e debater Carolina Maria de Jesus no Brasil de 2018?

Tom: Reforma urbana: a força de Carolina foi tão grande nos anos 1960, que ela acabou com a favela do Canindé. O grito da Carolina era para acabar com as favelas. Os universitários da Universidade de São Paulo criaram um movimento (Mubi) para isso. Nos anos 1950, havia mais ou menos de 40 a 50 favelas em São Paulo. A Carolina traz para nossa realidade uma reflexão social profunda de aceitação do povo brasileiro como ele é. Mestiço, descendentes de africanos, de portugueses, esse Brasil que está na obra da Carolina é de uma contradição monstruosa. Os brasileiros não são iguais; a Carolina dizia, “não sou igual, essa é minha opinião”. A opinião dela tem muito a ver com tudo isso que estamos vivendo hoje. O que a Carolina escreveu na boca de um cientista político seria extraordinário, mas na boca dela soa banal, rastaquera, sem valor. A luta hoje é para dizer que o que essa mulher escreveu tem muito valor.