Só a luta popular pode consolidar o Acordo na Colômbia, diz professor

Neste domingo (27) os colombianos vão às urnas eleger o próximo presidente. A expetativa é grande por ser a primeira eleição após a assinatura do Acordo de Paz. Porém o futuro deste passo tão importante é incerto, caso a extrema direita de Álvaro Uribe volte ao governo. O candidato apoiado por ele, Iván Duque, chegou a dizer em campanha que vai “estraçalhar” o acordo, se for eleito. O documento referendado pela ONU e diversos países dá fim à guerra de 50 anos.

Por Mariana Serafini

Manifestação paz na Colômbia - Divulgação

Para o professor da PUC-SP especialista em Colômbia, Pietro Alarcón, a consolidação do Acordo de Paz firmado entre as Farc e o governo colombiano em 2016 depende muito mais da ação popular que do Estado. Principalmente porque este último não vem cumprindo como deveria sua parte do que foi pactuado.

“O movimento popular começa a perceber que a paz precisa ser construída pelo próprio movimento popular: ela precisa ser retirada desse Estado liberal, que com sua tradição, pouco vai fazer. Isso não significa que a gente não exija do Estado, mas significa que devemos trabalhar pela base, mobilizando pessoas. Não vai ser de cima para baixo, é um processo que temos que construir de baixo para cima. Estou positivo que as eleições podem encaminhar para a continuação desse processo”, defende o professor.

Esta não é a primeira vez que a Colômbia propôs o fim da guerra entre a guerrilha e o governo. Mas é sim, a vez que chegou mais longe neste processo. O acordo foi assinado pelas duas partes, a guerrilha se desmobilizou, entregou absolutamente todas as armas à ONU e enviou seus guerrilheiros para as chamadas “Zonas Varedais” de onde eles saem “adaptados” à vida civil novamente. Além disso, as Farc, agora convertidas em partido (com a mesma sigla que significa Força Alternativa Revolucionária do Comum) seguem sua atuação no cenário político do país.


Após a assinatura do acordo, as Farc entregaram todas as armas à ONU


Cabe ao Estado, dentro deste acordo, entre outras dezenas de pontos, gerar garantias de segurança para os guerrilheiros que agora não fazem mais a própria proteção e para as as regiões antes protegidas pela guerrilha, fazer uma reforma agrária que dê condições para os pequenos produtores (grande parte deles deslocados pela violência) voltarem a produzir e combater a violência do paramilitarismo. Porém, está claro que nada disso vem sendo cumprido e com as eleições deste domingo, aumenta a insegurança, uma vez que, se a extrema-direita voltar ao governo, o acordo está ameaçado.

“Esse processo eleitoral tem uma peculiaridade: por um lado pode oferecer garantias para a constituição de um conjunto de elementos colocados no Acordo de Havana, e por outro oferece a possibilidade de que se frustre a esperança de que esses acordos se implementem, uma vez que eles permitiriam uma democracia muito mais avançada e muito mais consolidada no país, aliada a ideia de justiça social e reconhecimento dos direitos”, explica Alarcón.

Segundo ele, o Acordo de Paz propõe uma sociedade muito mais avançada do que é a Colômbia atual. Uma sociedade capaz de respeitar direitos humanos, contemplar as pautas identitárias, reduzir a desigualdade social e produzir um Estado de bem-estar social para todos os cidadãos colombianos. Porém, este modelo de Estado já não interessa ao sistema capitalista. “Os pontos do acordo refletem um conjunto de direitos e de condições em beneficio daquilo que poderíamos chamar de uma democracia avançada com tolerância, solidariedade, reforma agrária integral, respeito aos direitos dos camponeses… Esses pontos, dentro do contexto do funcionamento do capitalismo internacional, já divergem do processo que vem sendo implementado pelas potencias; ou seja, os pontos propostos vão na contramão do que o capitalismo exige: que a Colômbia continue um país produtor de bens que permitam a acumulação do capital, favorecendo as potencias”.

Neste aspecto, o professor alerta para a mudança de cenário de quando o acordo começou a ser discutido em Cuba, há anos atrás e como o mundo e o continente estão hoje. A América Latina passava pelo auge de seu “ciclo progressista” com diversos países trabalhando para avançar nas pautas sociais, por outro lado, começava na Europa a crise de 2008 que só se aprofundou desde então. Isso tudo vai impactar na forma como a Colômbia vai lidar com um novo modelo social que está em debate após assinatura do acordo.

“A Colômbia não se encontra isolada. Quando o processo de paz começou, ele tinha um panorama geoestratégico e uma condição que hoje não nos acompanha mais. A crise econômica do ano de 2008 nos advertiu sobre a possibilidade de uma crise de longa duração, ou seja, estrutural. Isso se reflete na maneira como o capitalismo funciona hoje, particularmente apoiado sobre uma base composta pela queda da taxa de lucro, com um altíssimo desemprego, com a queda do PIB, além do fato de que os setores estratégicos da economia apresentam o maior grau de concentração em poucas mãos”.


O Acordo de Paz foi assinado entre as Farc e o governo em 2016 
 

Com este cenário de pouca perspectiva econômica, é mais interessante às potências que os países em desenvolvimento continuem a ser apenas exportadores de matéria-prima, sem avanço econômico e social. O processo eleitoral ressalta exatamente esta encruzilhada na Colômbia: de um lado está Iván Duque, que defende um modelo neoliberal e extrativista; do outro, Gustavo
Petro, propondo reindustrialização, inclusão social e respeito aos povos originários.

Então as eleições deste domingo representam muito mais que uma troca de comando na presidência da República e sim um caminho que pode mudar totalmente os rumos políticos do país e ainda impactar na retomada do ciclo progressista na América Latina, ou não. Se Gustavo Petro for tão bem como mostram as pesquisas, será a primeira vez em mais de 5 décadas que a esquerda chega ao segundo turno. E agora, com a oportunidade de avançar num debate de cunho social.

Marcada por 50 anos de guerra, a Colômbia é um país extremamente abalado pela violência. O acordo de paz proporcionou à sociedade colombiana a oportunidade de começar a mudar este cenário. Mas as marcas, segundo o professor, são profundas e por isso não será tarefa simples. “O Estado colombiano não tem vocação para poder abandonar uma estratégia contra insurgente que não se dirige a nenhuma guerrilha, e sim ao movimento social organizado; o Estado vê os movimentos como insurgentes, como pessoas que trabalham para destruir todo um conjunto de privilégios, e essa luta historicamente tem sedimentado a oligarquia colombiana. Portanto, isso pede por uma resposta, que na Colômbia tem sido extremamente violenta”.

Desde que o acordo foi implementado, os movimentos sociais têm se sentido mais confiantes para avançar nas lutas populares, estudantes têm se organizado, a sociedade civil tem se mobilizado, as greves, manifestações e passeatas começaram a tomar conta das ruas das principais cidades, como se o país tivesse acordado de um sono de 50 anos embalado pela violência sistêmica. Tudo isso está em jogo nas urnas. A direita pegou pesado na campanha com discursos mentirosos e distorcidos, além disso, o processo eleitoral é marcado por fraudes, manipulações e censura. Mas, o especialista acredita que há esperança, e só a luta popular pode fazer avançar uma Colômbia mais justa e soberana.