Quando o capitalismo responderá por seus crimes?

As pessoas não estão se voltando para o socialismo porque são ingênuas. Eles estão se voltando para o socialismo porque sabem que não têm que viver na miséria.

Por Paul Heideman*

Morador de rua Estados Unidos - Foto: Jacobin

O capitalismo é um sistema social formidável. Apesar dos melhores esforços de centenas de milhões de socialistas no último século e meio, continua sendo o sistema hegemônico que dirige a produção e a política no mundo. Esse domínio, pelo menos em parte, explica a sensação de choque causada pelos escritos de figuras da mídia que lentamente despertam para o crescente reavivamento socialista nos Estados Unidos. Há um sentido muito real na leitura dessas peças cujos autores simplesmente não acreditam que alguém ainda esteja questionando o capitalismo.

O recente artigo de Connor Friedersdorf no Atlantic é emblemática nesse sentido. Nele, o autor tenta atribuir o maior número de corpos ao socialismo através de um tour familiar pelo número de mortes atribuídas a regimes em países como URSS, China e Camboja.

Essas mortes, argumenta, são ignoradas pelos defensores contemporâneos do socialismo, como Mathieu Desan e Mike McCarthy, autores do artigo em Jacobin que ele critica. De fato, o atual ressurgimento do socialismo nos EUA está, ele diz, “baseado principalmente na (…) ignorância da história do século XX, tão míope quanto os negadores do Holocausto de extrema direita”.

No entanto, para quem busca um conhecimento histórico mais profundo e efetivo da experiência dos regimes comunistas do século XX, o artigo de Friedersdorf certamente será uma decepção. De fato, é um pouco irônico que ele tente pintar os socialistas como historicamente ignorantes, quando sua própria escrita revela uma quase total falta de compreensão de qualquer coisa sobre essas sociedades. Como os fomentadores de guerra americanos que Friedersdorf tanto critica, ele está realmente interessado apenas na contagem de corpos.

Por exemplo, Friedersdorf lembra o regime do Khmer Vermelho, que governou o Camboja de 1975 a 1979 com violência genocida contra a população. Para Friedersdorf, o Camboja era governado pelo "mesmo sistema econômico" que a Rússia ou a China.

Essa afirmação trai uma ignorância quase total da história real do Khmer Vermelho, cuja conexão com o socialismo era mais ou menos análoga à de Donald Trump com o cristianismo.

Desde muito antes de tomar o poder em 1975, o Khmer Vermelho era um movimento etno-supremacista que se dedicava a restaurar a glória da nação cambojana, e o bode expiatório eram vietnamitas e chineses. A fraseologia socialista serviu como mera fachada.

Ao tomar o poder, o regime esvaziou as cidades para impulsionar a agricultura, aboliu o dinheiro e, grandiosamente, explodiu o banco central do país. Previsivelmente, a economia entrou em colapso e o regime teve vida curta.

Este fato por si só deveria servir como um indício de que era um tipo de sociedade bem diferente do que havia na China ou na Rússia depois de suas revoluções. Afinal de contas, quaisquer que fossem os muitos atentados aos direitos humanos desses regimes e quaisquer que fossem seus consideráveis problemas econômicos, ambos os países alcançaram níveis relativamente altos de crescimento econômico e elevaram consideravelmente o padrão de vida de suas populações ao longo de décadas.

Acima de tudo, o Khmer Vermelho nunca teria chegado ao poder sem a intervenção americana selvagem no Camboja, no contexto da Guerra do Vietnã, que foi uma campanha de bombardeios aéreos que devastou o campo. Somente a brutalidade do principal poder capitalista do mundo (os EUA), agindo em nome do combate ao comunismo, poderia criar as condições nas quais um regime como o Khmer Vermelho poderia alcançar o poder do Estado.

Para Friedersdorf, no entanto, evitar a miopia histórica aparentemente significa ignorar esse tipo de contexto histórico, desde que permita acumular mais cadáveres aos pés do socialismo.

Mas e a China? Aqui, Friedersdorf chega mais perto de seu objetivo. A fome chinesa de 1958-61 foi uma das piores catástrofes em tempo de paz no século XX, e não há dúvida de que as formas particulares de planejamento estatal adotadas pelo Estado chinês contribuíram para que ocorresse.

Mas, mais uma vez, com um pouco mais de contexto histórico, as coisas começam a parecer bem diferentes. A China experimentou três anos de catástrofe histórica mundial em meados do século XX – em todo o mundo, os países que não tinham os sistemas de segurança alimentar, que a China construiu, experimentaram décadas de fome em câmera lenta. Em todo o mundo, o poder dos proprietários para expulsar as populações rurais de sua propriedade privada, deixou os pobres rurais em total privação.

Em seu livro Hunger and Public Action(Fome e Ação Pública) os economistas Jean Dreze e Amartya Sen examinam essa questão de maneira particularmente vigorosa em uma comparação com a Índia, onde, apesar de todo o socialismo, os latifundiários ainda dominavam, e a China, onde não:

“É importante notar que, apesar do tamanho gigantesco do excesso de mortalidade ocorrido na fome chinesa, a mortalidade era maior na Índia, pela privação regular que, em tempos normais, ultrapassa extensamente a primeira. Comparando a taxa de mortalidade na Índia de 12 por mil. com a da China de 7 por mil, e aplicando esta taxa à população indiana de 781 milhões em 1986, chega-se a uma estimativa do excesso de mortalidade normal na Índia de 3,9 milhões por ano. Isto significa que a cada oito anos mais pessoas morrem na Índia do que morreram na China durante a fome gigantesca de 1958 – 61. A Índia parece conseguir encher seu armário com mais esqueletos cada oito anos do que a China em seus anos de vergonha”.

Em outras palavras, embora a Índia não tenha experimentado nenhum período concentrado de fome que possa ser facilmente identificada e pendurada no pescoço de uma ideologia particular, suas condições ordinárias na segunda metade do século XX, e sua distribuição extraordinariamente desigual de terras, criou um excesso de mortalidade que, a longo prazo, foi maior que a pior fome do século.

Isso chega ao cerne do motivo pelo qual o artigo de Friedersdorf é tão insatisfatório. A maior parte das mortes e sofrimento resultantes do capitalismo permanece teimosamente oculta.

Quando as pessoas com diabetes racionam sua insulina por causa do aumento dos preços, e algumas morrem, isso é uma consequência da distribuição dos direitos de propriedade que existe em nossa sociedade. Quando os pobres e os não brancos sofrem o aumento da mortalidade por poluição do ar, isso também é uma consequência do nosso atual sistema econômico.

Este exercício pode ser prolongado indefinidamente. As pessoas cujas vidas são devastadas porque a nossa sociedade prioriza o direito de propriedade dos ricos sobre as necessidades dos pobres, são vítimas de uma injustiça tanto quanto aqueles que morreram em catástrofes ocorridas sob os Estados que se chamam socialistas.

Naturalmente, essa lógica poderia ser invertida, apontando para o potencial humano perdido nas ineficiências cotidianas dos regimes socialistas, e a dignidade humana assaltada pela corrupção política. Mas qual seria o ponto?

Poucos hoje diriam honestamente que, se pudessem escolher entre a vida em uma democracia capitalista avançada como os EUA e um estado desenvolvimentista autoritário como a China ou a URSS, escolheriam os últimos. Mas esta não é a escolha oferecida hoje nos EUA. Não é a visão do socialismo que McCarthy e Desan adiantam em seu artigo original, que se baseia na centralidade da democracia para a libertação humana.

De fato, a tradição socialista está repleta de vozes que criticaram estritamente esses regimes precisamente por estas razões. Friedersdorf pode afirmar que é onde os socialistas acabam, mesmo quando querem ir para outro lugar, mas é pouco crível para defender que uma tentativa de construir o socialismo na economia mais avançada na história irá necessariamente acabar no mesmo lugar que as revoluções nos países em desenvolvimento contra as elites agrícolas cambaleantes.

O que os socialistas contemporâneos, cujo número cresce a uma taxa incrível, argumentam é que a vida de dezenas de milhões de americanos pode ser decisivamente melhorada por uma série de medidas que restringiriam o poder do capital. Elas vão do Medicare for All à regulação do capital. da indústria da saúde à necessidade humana de um renovado movimento sindical que refreie o poder despótico que os empregadores exercem sobre seus trabalhadores. Alguns socialistas, incluindo McCarthy, Desan e eu, vão mais longe e argumentam que só teremos uma sociedade humana quando uma pequena parcela da humanidade não exercer mais o controle exclusivo sobre nossos recursos produtivos.

Esses argumentos ganham força hoje, não porque os americanos não estejam familiarizados com o legado do socialismo de Estado, mas porque estão muito familiarizados com o estado da sociedade americana atual. Os socialistas de hoje tiveram sucesso onde Friedersdorf fracassou: eles ligaram as tragédias cotidianas que vêem ao seu redor a um sistema econômico que entrega recompensas cada vez maiores aos ricos, enquanto a maioria mal pode viver. Entenderam que, embora os americanos não estejam morrendo em massa em uma fome, estão sofrendo desnecessariamente de inúmeras maneiras por causa da forma como nossa sociedade distribui a propriedade.

A tarefa que os socialistas de hoje têm à frente deles é assustadora. A resiliência do capitalismo não deve ser subestimada. Mas o artigo de Friedersdorf é um lembrete oportuno de que quaisquer que sejam as fontes dessa resiliência, a qualidade dos apologistas do sistema certamente não está entre elas.