O documentário A Guerra do Vietnã merece um prêmio Emmy?

A organização Norte-Americana Veterans For Peace anunciou recentemente que ia colocar um anúncio de página inteira na revista Variety pedindo que um Emmy não fosse atribuído ao documentário de Ken Burns/Lynn Novick intitulado "A Guerra do Vietnã". A publicação Hollywood Reporter recusou-se a publicar o mesmo anúncio. Nesse artigo, o veterano do Vietnã, Doug Rawlings, articula os motivos pelo quais os cineastas não deveriam receber o prêmio de "Melhor Documentário".

Por Doug Rawlings*

doc sobre guerra no vietnã

No quarto episódio desse documentário de dez episódios, concluí que este filme não deveria ser vencedor de um prêmio Emmy. Episódio IV: “Resolver”, é a história de 1966, um ano designado pelos produtores do filme como a época em que a dúvida começou a se expandir entre as tropas americanas. Essa dúvida, semeada em terreno fértil, é o que hoje chamamos de “dano moral” da guerra.

Os soldados americanos no Vietnã começaram a perceber que suas ordens de matar, ou de apoiar aqueles que estão fazendo a matança, na verdade, não eram dadas por ordem divina. Eles não estavam numa guerra justa. Eles estavam sendo usados de fato, por outros com motivos bem menos nobres – promoção pessoal, orgulho, acumulação de favores políticos, e venda de armas.

Isso aconteceu três anos antes de eu chegar ao país, em uma guerra muito diferente do que ela era no início de 1966. Em 1969, entramos naquela lama como cínicos relutantes. Nós estávamos decididos a sobreviver, não a alcançar alguma vitória gloriosa e fantástica sobre os comunistas demoníacos. Mas esse sentimento não era o mesmo para os paraquedistas da divisão aérea Airborne 173 que operou no Planalto Central em meados de 1966.

Então, vamos supor que Burns e Novick et al sejam de certa forma precisos ao estabelecerem 1966 como o “ponto de virada” em nosso lento despertar para a verdade. E daí?

Primeiramente, este teria sido um bom ponto para os autores trabalharem o conceito de dano moral mencionado anteriormente.

Mas à medida que esse termo começa a ser usado na cultura popular e perde possivelmente qualquer significado real, é importante notar que ele pretendia significar um processo lento de arrependimento e do reconhecimento da cumplicidade de muitos no que a maioria das religiões chama de “mal”, além de um sentimento de traição que abala a alma.

Você percebe que não há desculpa para sua falta de vontade ou incapacidade de impedir a degradação humana à medida que ela se desdobra diante de você, à medida que seus códigos morais profundos se desvanecem. E agora você deve aceitar as consequências desse mal-estar debilitante que entrou na sua cabeça.

Alguns de nós responderam a essa responsabilidade atacando os comandantes, oficiais e políticos que nos mandaram seguir suas ordens. Mas essa desculpa se esgota com o tempo. Mesmo que os cineastas tenham trabalhado por uma década nesse documentário, as consequências e as dúvidas sobre a Guerra fazem parte da cultura americana. Os cineastas não reconhecem abertamente este conceito, mas essa presença começa a lançar sombras sobre a sua narrativa.

Quanto observei no rosto dos soldados, capturados pela câmera, o momento ou momentos que mudariam suas vidas para sempre, aqueles reflexos rápidos de sobrevivência ou para vingar a morte de amigos, eu me encolhi na cadeira. Doug Peacock, um médico do grupo de elite Boinas Verdes, que participou em duas campanhas, captura em suas memórias Walking It Off, “o horror, o horror” de tudo isso, quando escreve sobre a surpreendente conclusão de que “tudo é permitido”. Você tem dezenove anos e você pode matar, tornar a vida de outros insuportável, e você pode fazê-lo com impunidade total. Uma pessoa não volta desse mundo ilesa.

Na altura do quarto episódio dessa saga de dez episódios, ficou evidente para mim que não estamos assistindo a um documentário isento. A meu ver, a documentação deveria estar enraizada em fatos e, se possível, em verdades imutáveis. A função do documentarista é desenterrar verdades históricas, descobrir a causa e o efeito, e nos fornecer um andaime confiável para reconstruir nossas memórias da forma mais sólida possível. Não, em vez disso, estamos assistindo, a uma série de anedotas, cada uma imbuída da seriedade da testemunha. Quem se atreve a questionar uma mãe de luto, uma irmã desiludida, ou um soldado cumprindo seu dever? Não estamos sendo convidados para uma discussão lógica dos fatos aqui – estamos sendo solicitados a ouvir testemunhos.

Como um veterano dessa guerra que tentou trazer à luz a sua depravação total, assim como professor, eu me recuso a deixar essa extravagância visual permanecer como um registro histórico definitivo da guerra ao qual os estudantes irão recorrer em suas pesquisas.

Esse documentário é uma cornucópia de anedotas que nos dá um vislumbre daquela guerra e, com certeza, o Pentágono e os irmãos Koch, que financiaram o documentário, o aprovariam, mas suas prioridades são equivocadas. A guerra nunca foi “iniciada de boa fé”, nunca foi apenas um “erro”, foi, desde o início e em toda parte, uma tarefa moralmente depravada.

Três milhões de soldados deste país enviados para o Vietnã não “serviram” – nós fomos usados. Nós fomos sacrificados com sangue no altar da ganância e do poder, juntamente com milhões de mortos vietnamitas. E para quê?

John Pilger, o jornalista australiano e documentarista premiado, escreveu: “A invasão do Vietnã foi deliberada e calculada – assim como políticas e estratégias que beiram o genocídio e foram projetadas para forçar milhões de pessoas a abandonarem suas casas. Armas experimentais foram usadas contra civis”.

Burns e Novick evitam essas conclusões, embora milhares de veteranos do Vietnã tenham percebido a verdade devastadora da alma, ou durante a guerra ou logo depois. Um filme que incluísse suas palavras na narrativa seria um grande avanço. Mas esse documentário está longe disso.

Esta não é a história que estamos assistindo. Nós estamos assistindo a um teatro. E nós que vivemos essa guerra, seja “no campo” ou não, devemos nos ver como atores em um palco. Esse exercício não é sem o seu mérito, mas não vamos confundi-lo com um relato histórico com a capacidade de nos redimir, ou um documentário digno de um prêmio do Emmy.

Nota: A organização Norte-Americana Veterans For Peace anunciou recentemente que ia colocar um anúncio de página inteira na revista Variety pedindo que um Emmy não fosse atribuído ao documentário de Ken Burns/Lynn Novick intitulado "A Guerra do Vietnã". A publicação Hollywood Reporter recusou-se a publicar o mesmo anúncio. Nesse artigo, o veterano do Vietnã, Doug Rawlings, articula os motivos pelo quais os cineastas não deveriam receber o prêmio de "Melhor Documentário".