Bolsonaro empacota medidas antipovo em um invólucro moral

"A essência do fenômeno Bolsonaro está em embalar medidas antipovo em um invólucro moralista, anestesiando a reação da população ao fazer com que a perda de um direito pareça um ganho moral".

Por Juliana Cunha*

fascismo Bolsonaro - Ilustração: Tainan Rocha/Quanta Academia de Artes

Na última pesquisa de intenção de votos para o segundo turno, o deputado Jair Bolsonaro surge com perigosos 59% dos votos válidos, contra 41% da chapa Haddad e Manuela. Teria o Brasil 59% de fascistas? Ou 46%, que foi o percentual atingido pelo ex-capitão do Exército no primeiro turno? Seria metade da população brasileira composta por pessoas favoráveis à tortura, ao estupro, contra as mulheres, os negros, os homossexuais, pelo armamento em massa e pela substituição das escolas públicas por ensino a distância até na alfabetização?

Para mim, está claro que não, mas, mesmo que a resposta seja positiva, é preciso ganhar essas pessoas de volta. No âmbito pessoal, entendo perfeitamente querer distância de um parente ou conhecido que vota em um projeto que trará consequências diretas e nefastas às vidas de muitos de nós. Mas, coletivamente, desistir dessas pessoas não é opção política viável. Precisamos ganhar esse pessoal de volta para o campo democrático, entender por que pessoas que não são fascistas estão fazendo essa opção, precisamos criar saídas para que elas sintam que suas demandas podem ser atendidas dentro da democracia, quem sabe até dentro do campo da esquerda.

Segurança pública, valorização da família, nacionalismo, combate à corrupção e à criminalidade. Essas são algumas das pautas colocadas por cidadãos que acabaram achando que um projeto tão precário e violento seria a resposta. A forma e os termos em que essas pautas estão sendo colocadas pela campanha de Bolsonaro são inconciliáveis com qualquer projeto democrático, mas é urgente que a esquerda e que o campo democrático de forma mais ampla ofereça respostas mais contundentes a essas demandas, incorporando questões que se mostraram centrais para uma parcela significativa da população. Sem abrir mão da defesa das minorias e da autonomia dos indivíduos sobre seus corpos e vidas, é preciso mostrar que há espaço para ser conservador nos costumes dentro da democracia. Há espaço para ser anti-aborto sem ser anti-legalização do aborto, assim como dá pra ser anti-divórcio sem proibir juridicamente que as pessoas se divorciem, por exemplo.

A essência do fenômeno Bolsonaro está em embalar medidas antipovo em um invólucro moralista, anestesiando a reação da população ao fazer com que a perda de um direito pareça um ganho moral. Exemplo cabal dessa estratégia é a proposta de substituição da escola pública por uma política de ensino a distância orquestrada por empresários do setor. Embora não conste em seu programa, o assunto já foi levantado em algumas entrevistas e em diversos materiais do candidato e consiste em oferecer educação a distância (EAD) para todas as idades, promovendo uma substituição total da escola física em áreas rurais (justamente onde o acesso à internet é mais precário) e parcial na área urbana, visando a população com mais dificuldade de mobilidade urbana (ou seja, os pobres) e pais que consideram que a escola esteja “doutrinando” seus filhos.

A escola em tempo integral é uma pauta dos pais com filhos na escola pública há vários anos. De forma até um pouco simplista, visto que um aumento da carga horária não necessariamente implica em aumento da qualidade, a percepção era a de que os jovens deveriam ficar o máximo de tempo possível na escola. Os motivos eram muitos: mantê-los longe da criminalidade, permitir que mães e pais pudessem trabalhar, garantir uma alimentação adequada, melhorar os índices de aprendizagem. Do nada, o candidato faz parecer que há uma profusão de pais com condição e disposição de ensinarem seus filhos em casa em nome de uma vaga proteção de ordem moral e ideológica.

Na prática, a questão é mais simples: os ricos colocam seus filhos em escolas de tempo integral, pagam cursos livres e aulas particulares, mas querem que os pobres não tenham escola alguma. Quantos pais e mães têm quatro horas diárias livres para educarem seus filhos todos os dias? Quantos se sentem capazes de ensinar a ler, escrever, calcular? De ensinar biologia, física, química? De dar conta de todas as matérias sozinhos?

A educação a distância não é um problema em si, trata-se de um método conveniente para a formação continuada e que abre uma série de possibilidades para quem já tem uma autonomia cognitiva, mas,, para crianças e adolescentes essa é uma medida irresponsável, que busca fazer economia com o futuro alheio e que sobrecarrega os pais. Ao impor EAD às crianças, estabelecemos que elas nunca poderão ultrapassar o grau de instrução de seus pais. Que pai ou mãe não quer que seu filho seja mais bem educado do que ele ou ela própria foram?

De modo geral, os pais não têm tempo, não têm recursos pedagógicos, não têm um espaço adequado para ensinarem seus filhos de forma exclusiva. Eles precisam da ajuda da escola e podem complementar em casa o que a educação formal não ensinou, mas que eles valorizam. Se porventura a escola ensinar algo que o pai não concorde, sempre pode explicar o motivo ao filho, mostrando a ele uma outra visão de mundo. Se o professor eventualmente ensinar algo de errado ou de antiético, pode recorrer à diretoria da escola, à Secretaria de Educação.

A quem interessa colocar pais e professores em lados contrários e vender uma proposta de eliminação física das escolas? Como fazer com que uma parcela dos pais não só acate como defenda uma proposta como essa? Fazendo com que ela pareça um direito a mais, e não um direito fundamental a menos. Armamento em massa, fechamento de escolas, redução da maioridade penal. São muitos os direitos a menos que a varinha de condão de um líder autoritário tenta fazer parecerem direitos a mais. Denunciar a hipocrisia e os objetivos mesquinhos por trás dessas propostas e, ao menos tempo, incorporar democraticamente demandas colocadas por esses eleitores será uma tarefa central dos próximos anos. É preciso compreender os motivos que fizeram com que uma parcela tão expressiva de brasileiros achasse que a solução estava fora da democracia e ganhá-los de volta. Na vida real, essa questão não será resolvida com meia dúzia de bloqueios em redes sociais.