Bolsonaro desperta a violência histórica que há no Brasil

 "Se olhar a história do país, a violência está o tempo todo. Com a polarização política, a violência é mais intensa.”

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A professora Angela Alonso, do Departamento de Sociologia da USP e presidente do Cebrap é uma profunda conhecedora da história social do Brasil e das contradições que o país enfrenta. Ela, que é autora de um livro notável sobre a Abolição de 1888 – “Flores, votos e balas – O movimento abolicionista brasileiro – 1868-88”, publicado em 2015 – deu uma entrevista nesta quarta-feira (17) ao jornal “Valor Econômico”  na qual emprega este conhecimento das contrações brasileiras para entender melhor a ameaça fascista que, nesta eleição, paira sobre o Brasil.

Ameaça violenta que, já na campanha eleitoral, contabiliza, diz a agência Pública, 50 agressões de bolsonaristas contra adversários políticos, violência que permite antecipar o verdadeiro horror que poderá assolar o país no caso da eventual vitória do candidato da extrema direita.

O Portal Vermelho transcreve, aqui, alguns trechos significativos da entrevista com Angela Alonso.

“Há duas coisas que ajudam a entender isso [a violência da direita]. Uma é que esta é uma sociedade violenta. A gente gosta muito de se olhar como povo tranquilo, pacífico, cordial, mas o Brasil tem uma longa história de violência política, sistemática. Da proclamação da República até 1964, só de violência política com participação do Estado foram 19 casos de conflitos aterradores. Depois veio a ditadura militar. Se olhar a história do país, a violência está o tempo todo. Com a polarização política, a violência é mais intensa.”

“É mito que o povo é cordial e que elites são conciliadoras. Não parece que haja uma solução de conciliação aparece é algo que já está inscrito na sociedade. E a outra coisa é que a violência e a polarização estão vindo desde 2013.”

“Durante a gestão Dilma era uma mobilização contra o governo e eles foram vitoriosos. Houve uma certa articulação com o sistema político, mas ao contrário do que aconteceu com o impeachment do Collor, não apareceram lideranças que exprimissem os anseios daquela manifestação, que é de corte liberal a reacionário. Criou-se um vácuo e vários grupos tentaram ocupar. A mobilização foi bem sucedida em atacar sobretudo o PT, mas trouxe uma desmoralização da elite política como um todo. Começou a aparecer a defesa de que outras elites sociais deviam ocupar o lugar da elite política.”

“E apareceu também a ideia, desde 2013, de que militares podiam ocupar esse papel. A candidatura Bolsonaro é o resultado disso. Ela cristalizou em torno de si esse sentimento difuso de que era preciso uma elite alternativa, capaz de operar os ânimos, inclusive à força. Bolsonaro é político, fez a carreira inteira na política, colocou os filhos na política, mas apresentou-se como alternativa. Nesse sentido ele é muito parecido com o Collor. Mas ele não é um líder, é mais um símbolo do que um líder.”

“Bolsonaro é um líder que não lidera. Ele libera. Ele não tem conexão orgânica com esses grupos. Não tem um partido estruturado. O apoio é de natureza mais difusa. É isso o que torna esse fenômeno muito mais perigoso do que a ala liberal que o apoia imagina. Mesmo que adote um discurso mais moderado, ele não vai controlar isso. Ele permitiu que viesse para o espaço público uma forma de ação direta, que não é por meio das instituições.”

“Ele funciona como um imã, em que esses grupos vão vindo em torno dele, mas tem razão quando diz que não controla. A candidatura vem crescendo porque tem apoio de grupos diferentes. São três correntes. Tem os liberais que veem o Paulo Guedes como alternativa razoável e próxima do que imaginam. Tem os que acham que o anti-PT é a salvação da lavoura. Só que não basta ser contra o PT senão Alckmin teria ganho. Tem que ser visceralmente antipetista, capturar o ódio, o ressentimento ao PT. E tem o grupo que está votando no líder autoritário intervencionista e se expressa na rua por meio da violência. Esse é o grupo afinado com a candidatura e que vai operar num potencial governo. Se na campanha já tem sangue derramado, imagina se ele assumir. Ele não precisa dizer nada. É uma espécie de senha indireta, de que liberou geral.”

“Mesmo no cenário mais benigno pode ter situação muito crítica de polarização social, porque vai ter a esquerda na rua e é provável que os defensores do Bolsonaro saiam em defesa do governo. As medidas que [Paulo] Guedes trará são impopulares, como a reforma trabalhista, da Previdência. Vai gerar grandes manifestações, pode ter greve do funcionalismo. No fim do regime militar teve mostras disso. Isso pode dar razão para intervenção [militar], mas para intervir precisa de quadros e não é fácil dar golpe de Estado. Precisa de gente para ocupar todas as posições.”

“O cenário mais crítico é o de generalização do que estamos vendo, de grande caça social às bruxas, em que grupos organizados, como milícias, vão operar livremente. Os grupos menos organizados que operam agora, diretamente, vão generalizar contra gays, que já começaram a ser vitimados, contra cotistas, artistas, intelectuais. Essa é a sequência normal dos golpes de Estado, do endurecimento dos regimes. Primeiro os diferentes na paisagem social; depois os críticos. É de se esperar intervenção nas universidades federais. Já vimos essa escalada.”

“É preciso entender melhor o modo pelo qual a sociedade reagiu às políticas redistributivas e à mudança social que aconteceu no governo Lula. A ascensão social não se deveu exclusivamente às políticas petistas. Teve a economia internacional, mudança demográfica. (…) Mas teve mudança. O mais importante é como ela foi percebida. Há indícios de como a classe média, que não foi beneficiada diretamente, se sentiu negligenciada, ameaçada. Tem manifestações de um desconforto com a presença pública de grupos que até então eram subalternos. Esses grupos ficaram ameaçados em sua identidade.”

“Essa dimensão moral vem desde o Fernando Henrique, com a liberalização de costumes, sobretudo no campo dos comportamentos sexuais. Casais homossexuais adotam crianças, se beijam em público. Tivemos manifestações de que isso não é tolerado. Vai criando um clima de tensão, de gente com raiva do que ofende seu status ou crença.”

“O avanço [do bolsonarismo] entra pela chave do moralismo, da família, do cidadão de bem, da religião. E a ideia de que o PT fez sempre o discurso de nós e eles, o que fazemos e o que o adversário não fez. O discurso do Bolsonaro é o da nação, dos patriotas, que vem desde 2013. A ideia do Brasil acima de tudo, que não quer se dividir, uma só raça. E a esquerda demorou muito para disputar os símbolos nacionais. As Diretas Já foram muito eficientes em disputar esses símbolos do governo militar e agora eles retomaram. Agora a campanha do Haddad colocou o verde-amarelo, mas e é um pouco tarde. Desde 2013 a direita retomou os símbolos nacionais.”

“Há dois mitos sobre a sociedade brasileira. Além do mito do povo cordial, há o de que as elites são conciliadoras. As elites políticas disputam o poder com unhas e dentes, tapas e socos. Não me parece que haja uma solução de conciliação. O que pode haver é uma grande coalizão de centro-direita, mas a esquerda vai para oposição.”

À pergunta se uma eventual vitória do PT vai incendiar o cenário, Angela responde: “Toda lenha já está na fogueira. A questão é se vai chegar algum bombeiro, porque qualquer um dos dois que ganhar vai sofrer oposição forte e eventualmente violenta nas ruas, nas instituições, na imprensa. Não vejo futuro próximo pacificado.”

“Pode dar uma acalmada, mas é um conflito que não está resolvido. Somos uma sociedade profundamente desigual e dividida sobre o sentido que devemos ter. Isso não resolve de um dia para o outro, de uma eleição para outra. Vejo com muito pessimismo.”

A crise atual tem “muitas semelhanças com o final do processo de abolição. Teve uma mobilização social de duas décadas e acirramento do conflito mais para o final do processo, a partir de 1884, quando há a possibilidade concreta de abolição. A radicalização acontece no interior das instituições políticas, com dois grupos que não conseguem negociar. Tem uma eleição muito disputada, como tivemos em 2014, entre a oposição e o governo, e no período subsequente ganha um governo muito conservador. Esse governo fez algo que pode acontecer agora: não só reprime a oposição, mas libera grupos sociais que estão operando.”

“Os clubes da lavoura, as milícias escravistas começam a perseguir abolicionistas, escravos que fogem, desobedientes. Em fevereiro de 1888, na véspera da abolição, teve o linchamento de um delegado acusado de acoitar os escravos fugidos. O delegado era muito moderado e quem foi linchá-lo foi a elite social da cidade de Penha do Rio do Peixe, que depois disso mudou de nome para Itabira. A elite, a gente de bem foi com cassetete no meio da noite e não só lincharam como o fizeram na frente da filha pequena, da mulher, que também apanharam. É muito expressivo do que pode acontecer. A gente sempre pensa em quem está praticando violência são os brucutus. Quando esse processo é liberado, não são só os brucutus que operam violência. É a gente de bem que se defende do que acham que é o mal. Isso e a decisão dos abolicionistas de resistir levou a uma decisão política importante para desarmar o conflito. As elites sociais que estavam fora entraram como mediadores.”

“Agora temos uma sociedade polarizada sem mediação. Naquela hora apareceram mediadores. A igreja apareceu, juízes, a coroa começam a aparecer e fazer uma solução negociada. Nenhum lado ganha, nenhum perde completamente mas vamos achar o caminho de pacificação. A questão agora é quem pode operar assim.”