Não será chanceler do Brasil, mas do bolsonarismo

Pouco mais de 48 horas após o anúncio da indicação do Embaixador Ernesto Araújo, para assumir a condução das relações exteriores no Brasil, já são incontáveis os artigos e textos opinativos em geral sobre o perfil do diplomata. Na grande maioria dos comentários registrados denota-se a perplexidade e a incredulidade diante da escolha.

Por Ana Maria Prestes*

Ernesto Araujo Bolsonaro - Foto: Valter Campanato/Ag. Brasil

Por que será que seguimos nos espantando, dia após dia, com o “até onde chegarão?” das barbaridades que já se tornaram cotidianas no processo de gestação do novo governo? O exercício de futurologia é doloroso, indesejável, mas inescapável. Somos treinados a vislumbrar a linha do horizonte, as imagens se impõem por mais que tentemos espantá-las.

A palavra chanceler, que na América Latina designa quem assume o cargo de ministro das relações exteriores, diferente de outras partes do mundo, vem do latim cancellariu que significa o “guarda do imperador” e também do francês chancelier, usado para a identificação dos “guardas do palácio”. Historicamente a palavra também foi usada para nomear os encarregados da guarda do selo real, o “guarda-selos”, responsável pela chancela dos documentos. No Brasil republicano, no entanto, o responsável pelas relações exteriores historicamente tem guardado mais o Estado, do que seu comandante propriamente dito. Nossos chanceleres em geral são mais “guardas do Estado” do que “guardas do Rei” e há um risco real de inflexão dessa tradição com o novo chanceler. Antes de guardar o Brasil, guardará o chefe do clã governante (filhos incluídos).

Se o Brasil é hoje esse gigante territorial com amplo reconhecimento internacional por sua política externa equilibrada, tolerante e de boa vizinhança, deve-se principalmente a uma tradição iniciada ainda em meados do século XIX. Ancorada especialmente na diplomacia do conhecimento e do preparo, como demonstra o Embaixador Rubens Ricupero em seu último livro A diplomacia na Construção do Brasil (1750 – 2016). O grande patrono desse estilo diplomático, baseado no acúmulo do conhecimento como estratégia de ação diplomática inteligente e sedutora, foi o barão do Rio Branco, o “institution-builder” do Itamaraty, segundo Ricupero. A casa de Rio Branco vai ser conduzida por alguém que tem sérios comprometimentos cognitivos, ao relacionar nazismo com socialismo, globalização com ameaça marxista, mudança climática com perversão da esquerda e por aí vai.

O indicado para ser o novo chanceler brasileiro e seu entorno não parecem ser adeptos da busca da verdade pelo acúmulo do conhecimento investigativo e da persuasão baseada na articulação inteligente da análise dos fatos com argumentos. Antes, estão ancorados em uma prática que cai melhor na categoria da construção das pós-verdades, a la Trump ou da doutrinação via desqualificação superficial do oponente, a la Olavo de Carvalho. Nessa “tradição” os fatos objetivos pouco valem e falam alto os apelos emocionais a crenças individuais, especialmente as religiosas e morais. É como se o Barão do Rio Branco optasse por tentar vencer os impasses fronteiriços brasileiros do início do século XX com base em crenças e predestinações fundamentalistas e não via o escrutínio exaustivo dos mapas e domínio da geopolítica como o fez.

Como bem disse o ex-chanceler Celso Amorim, é como se estivéssemos retornando à Idade Média, com uma forte negação da globalização, do multilateralismo e das mudanças ambientais e climáticas que regem boa parte das atuais políticas de relações internacionais. O chanceler do clã não tem como principal missão a defesa dos interesses do Estado brasileiro, propriamente dita, mas antes sua missão é o extermínio dos “vestígios petistas” em nossa política externa, como determinou seu chefe. Se o novo “guarda do Rei” for realmente se embandeirar das causas bolsonaristas e cair de peito aberto para defendê-las em um mundo cada vez mais multipolar e complexo, será no mínimo um espetáculo quixotesco. Pra moinho de vento nenhum botar defeito.