Juliana Diniz – Negociar para decidir: o fim do auxílio-moradia

"O caso é paradigmático e evidencia a necessidade de respeito aos limites. Nas democracias constitucionais, o poder de julgar é exercido conforme razões, e razões só podem ser superadas quando se apresentam outros – e melhores – argumentos”.

Por Juliana Diniz*

Justiça?

Perdemos alguns anos em discussões sobre o auxílio-moradia concedido a juízes e membros do Ministério Público. Um debate acirrado para averiguar a constitucionalidade do benefício, se é moralmente justificável, os delineamentos de sua natureza jurídica e os principais impactos sobre o orçamento público. Com uma canetada, o ministro Luiz Fux acabou com todas as dúvidas que porventura ainda rendessem debate. Desconsiderou a argumentação técnica que utilizou em 2014, quando deferiu liminar determinando a aplicação do benefício a todos os membros da magistratura estadual e federal.

Naquela ocasião, Fux apontou a natureza indenizatória do benefício. Segundo os seus argumentos, supostamente técnicos, os auxílios teriam previsão na Lei Orgânica da Magistratura e seriam devidos a juízes que residissem em localidades onde não houvesse residência oficial disponível. Uma forma de compensá-los pela leniência do estado em assegurar uma garantia institucional. Quatro anos depois, Fux decidiu revogar a medida liminar, suspendendo o pagamento do benefício depois que Michel Temer sancionou as leis garantidoras de aumento de 16,38% nos subsídios dos ministros do STF e do Procurador-Geral da República. Na prática, os aumentos repercutem sobre os subsídios dos membros da magistratura e do Ministério Público, um efeito cascata que importará em impacto bilionário nas contas da União.

Os descaminhos argumentativos de Fux na liminar que proferiu esta semana evidenciam a insustentabilidade jurídica do auxílio-moradia. O caso parece mais uma manifestação judicial do “jeitinho”: depois de anos sem a concessão de aumento pelas vias legais, a magistratura se autoconcedeu uma recomposição salarial via liminar, sob o pretexto de assegurar uma verba indenizatória. Juristas apontaram desde o princípio que o auxílio não tinha propósito indenizatório e que consistia verdadeiro subterfúgio para concessão de aumento sem previsão legal. Esse argumento consistente foi sistematicamente rebatido por juízes e membros do Ministério Público, que insistiam na legalidade da verba – sobre as quais não incidiam a alíquota de imposto de renda.

Com o fim negociado do impasse, Fux acabou por confirmar a tese de que o auxílio-moradia, afinal, é inconstitucional – e o foi desde 2014. Na decisão que proferiu para determinar a suspensão do pagamento do benefício, o ministro invocou um suposto princípio da economicidade. Entendeu que concessão do aumento tornou inviável a cumulação do subsídio com o auxílio, devendo o Poder Judiciário entender a gravidade da situação fiscal do país. Em outras palavras, como o aumento foi concedido, é possível abrir mão de um benefício até então considerado legal e devido. Como cereja no bolo, deixou o recado: a suspensão do pagamento do auxílio-moradia só deve ocorrer quando implementado o aumento de 16,38%. Por via das dúvidas, é melhor garantir que a solidariedade fiscal esteja condicionada ao compromisso do governo em implementar a recomposição remuneratória.

Em estados de direito, juízes detêm uma dimensão importante de poder. O exercício de sua autoridade se orienta por uma racionalidade própria, segundo procedimentos de justificação diferentes daqueles que se observam nos poderes legislativo e executivo. Uma decisão judicial deve seguir balizas, permissões ou vedações pré-estabelecidos em leis aprovadas por parlamentos, que garantem certa previsibilidade de resultado e que constituem limitações importantes ao exercício do poder de decidir. O dever de fundamentação não é apenas uma norma que condiciona os limites da função de decidir, mas uma garantia daqueles que sofrerão os impactos do que for decidido. Um juiz, por mais bem-intencionado e ético que seja, não tem autorização constitucional para escolher entre cumprir ou não o que está previsto em leis válidas, aprovadas segundo critérios majoritários.

É importante, por um dever de controle social, que se reconheça a inconsistência dos argumentos que, desde 2014, impuseram um grave impacto orçamentário suportado por todos os contribuintes. O caso é paradigmático e evidencia a necessidade de respeito aos limites. Nas democracias constitucionais, o poder de julgar é exercido conforme razões, e razões só podem ser superadas quando se apresentam outros – e melhores – argumentos.


*Juliana Diniz é Doutora em Direito e professora da UFC.

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