Como os governos Obama e Trump tramaram o golpe contra Maduro

O diário espanhol El País traz hoje (3) longa reportagem sobre a trama dos Estados Unidos, iniciada ainda na era Barack Obama (2009-2017), para derrubar o presidente venezuelano, Nicolás Maduro. Segundo o jornal, o apoio do presidente americano, Donald Trump, ao preposto Juan Guaidó, opositor de Maduro e presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, é parte de um plano que envolve os novos ‘falcões’ de Washington, os legisladores anticastristas e a mobilização dos exilados.

O golpista Juan Gauidó

O relato do jornal se inicia em 21 de janeiro, Na noite daquela data, o congressista Mario Díaz-Balart e o senador Marco Rubio recebem um telefonema da Casa Branca. O presidente quer vê-los no dia seguinte junto ao vice, Mike Pence, e a equipe de segurança para falar sobre a Venezuela.

Díaz-Balart e Rubio, dois republicanos do núcleo duro do anticastrismo, ganharam influência na era de Donald Trump e, ao lado de outros legisladores, pressionam o mandatário para que aumente a pressão contra o regime de Maduro. Querem que Trump o inclua na absurda lista dos financiadores do terrorismo, na qual figuram hoje Irã, Coreia do Norte, Sudão e Síria.

Ao sair do encontro, na terça-feira 22, os jornalistas perguntam sobre o assunto. Rubio evita falar do tema, mas parece exultante. De noite, escreverá em sua conta do Twiter: “Amanhã será um dia muito bom (e importante) para a democracia e a ordem constitucional na Venezuela.”

Na quarta-feira 23, Juan Guaidó prestará juramento como suposto presidente interino invocando o artigo 233 da Constituição. Os Estados Unidos o reconhecerão ipso facto, seguidos pelo Canadá e as demais potências do continente americano, salvo o México e o Uruguai. Querem que Maduro deixe o cargo e que o Governo interino convoque eleições. A Casa Branca adverte que, em caso contrário, todas as opções, incluindo a intervenção militar, estão à mesa.

Para entender como um presidente conhecido pela tendência isolacionista de sua política exterior mergulhou na crise venezuelana – decidindo retiradas militares contra o conselho do próprio Pentágono, como ocorreu na Síria –, é necessário rastrear o que ocorreu entre Caracas e Washington nos últimos dois meses. E também nos últimos dois anos.

A Casa Branca dá uma guinada em relação ao regime chavista com a chegada do republicano ao poder – e intensifica essa postura com a remodelação de seu Governo, quando deixa de lado os moderados e reserva mais poder aos falcões. A mudança coincide com a eleição de governos conservadores na Colômbia e no Brasil. Tudo isso, somado à crise econômica cada vez maior da Venezuela, produz algo parecido com uma tempestade perfeita.

Sob a influência de Mike Pence, esse assunto entra muito cedo na agenda de temas internacionais que mais interessam à Casa Branca. “Na primeira semana seguinte à posse [20 de janeiro de 2017], Trump pede um briefing sobre a Venezuela e muitas coisas mudam”, explica Fernando Cutz, assessor sênior do general H. R. McMaster, o primeiro conselheiro de Segurança Nacional do presidente, que também havia trabalhado na Administração anterior.

O percurso e o leque de sanções foram elaborados há muito tempo, desde a etapa de Barack Obama, diz Cutz, embora não tenham sido aplicados. Com a piora da situação na Venezuela e a chegada de Trump ao poder, começa a pressão contra o líder chavista. Na primavera boreal daquele ano, com a remodelação do Governo em Washington, o plano entra numa nova etapa.

McMaster é revelado por John Bolton, um falcão da era Bush filho, com um relevante papel na invasão do Iraque de 2003. Já o moderado Rex Tillerson é demitido e substituído por Mike Pompeo. “Essa mudança é muito importante nessa história”, afirma Cutz.

Vence a linha dura

O congressista Díaz-Balart concorda. “Muitas coisas que a Administração tentava conseguir estavam sendo impedidas pela burocracia do Departamento de Estado. A chegada de Pompeo, um grande conhecedor do Hemisfério Sul por seu papel como diretor da CIA, foi uma mudança fundamental”, diz. “Com sua visão, por sua vez, o embaixador Bolton trouxe Mauricio Claver-Carone”, completa Díaz-Balart, membro de uma importante família de exilados cubanos e sobrinho da primeira esposa de Fidel Castro.

Claver-Carone, um anticastrista radical, é considerado pela maior parte das fontes como um dos grandes promotores da doutrina de linha dura contra Maduro nos últimos tempos. Trump se cerca de uma equipe especialmente disposta a se envolver em Caracas, que se conecta muito bem com uma oposição venezuelana que começou a se unir e vislumbra uma via constitucional para expulsar Maduro. “É um alinhamento de astros, e a Casa Branca acredita que dificilmente haverá outra oportunidade assim”, diz uma fonte conhecedora das conversas.

Em 10 de janeiro, começa o mandato presidencial na Venezuela. O líder chavista tem de prestar juramento perante a Assembleia Nacional, de maioria opositora. Maduro não o faz, considerando-a em desacato – e a Assembleia, de qualquer maneira, não o reconhece. A oposição, mesmo sem provas, alardeia que as eleições de maio de 2018 foram fraudulentas e carecem do reconhecimento de grande parte da comunidade internacional.

Esse é o discurso que levará a oposição a justificar o golpe, sob o argumento de que o cargo de presidente do país está vago a partir desse dia e que, em virtude do artigo 233 da Constituição, Juan Guaidó é automaticamente o presidente interino.

Em dezembro, Guaidó viaja de forma discreta a Washington para se reunir com diversas personalidades. No dia 14, mais especificamente, ele mantém um encontro com Luis Almagro, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), para abordar toda a situação, incluindo a via constitucional, segundo confirmam fontes do organismo. Pouco depois, Guaidó segue para Bogotá e participa da reunião do Grupo de Lima, formado em 2017 por 14 países americanos para abordar a crise venezuelana.

Essa reunião, a de 4 de janeiro, é fundamental para os Estados Unidos. No total, 13 países rejeitam em um documento o governo Maduro, mostrando que o bloco se submeteu à Casa Branca e está disposto a dar um passo à frente por Guaidó, apesar da sentida ausência do México.

Aval canadense

A entrada em cena, a seguir, da chanceler Chrystia Freeland – ou seja, do Canadá do jovem e progressista Justin Trudeau – acaba produzindo o que os Estados Unidos costumam chamar de momentum, um momento de impulso. O definitivo, segundo diversas fontes. “O Canadá é um país que assimilou o princípio de ingerência humanitária e tem uma história consagrada de defesa dos direitos humanos”, afirma Antonio Ledezma, ex-prefeito de Caracas exilado na Espanha. Ottawa é considerada uma espécie de aval moral na ofensiva contra Maduro.

As conversas se intensificam a partir de então, com um papel importante de Carlos Vecchio, opositor venezuelano exilado nos EUA, e de Julio Borges, ex-presidente da Assembleia Nacional refugiado na Colômbia. No dia 21, Gustavo Tarre recebe em sua casa de Washington o telefonema de Guaidó, que lhe propõe ser o novo representante especial na OEA.

“Eu sabia que isso era sério. Sou professor de Direito Constitucional, e quem me ligava era o presidente da República. Eu disse que obviamente estava às ordens”, explica Tarre. Na época, admite, “era muito fácil supor” que países importantes como os EUA reconheceriam Guaidó, “e parte do nosso trabalho era ajudar a fazer isso acontecer”. É finalmente no dia 22 que a Assembleia vota em Tarre e a Casa Branca toma a decisão.

Paralelamente ao encontro de Díaz-Balart e Rubio, o The Wall Street Journal e o The Washington Post citam também uma última discussão fundamental do Conselho de Segurança Nacional (com Pompeo) e do secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, entre outros, além de um telefonema de última hora do vice-presidente Pence a Guaidó para comunicar o apoio norte-americano. “Tudo isso não ocorreu de repente”, afirma o congressista Díaz-Balart. “Esta Administração está disposta a pressionar desde as primeiras semanas e nos abre as portas do mais alto escalão para mim e o senador Rubio. Fizemos muitas reuniões durante dois anos.”

Do “eixo do mal” à “troika da tirania”

Em 1 de fevereiro de 2017, antes de completar um mês na Casa Branca, Trump recebeu Lilian Tintori, mulher do golpista venezuelano Leopoldo López, sob prisão domiciliar e do mesmo partido de Guaidó (Vontade Popular), juntamente com Pence e Rubio. Em seguida, o mandatário pediu num tuíte a liberdade para López e começou a marcar os rumos.

Em agosto, de seu campo de golfe de Bedminster, Trump fez a primeira ameaça armada: “Não descartarei a opção militar, é nosso vizinho e temos tropas pelo mundo inteiro. A Venezuela não está muito longe, e as pessoas ali estão sofrendo e morrendo.” A chantagem “todas as opções estão sobre a mesa” se transformou num mantra que agora, com o auge da crise, se repete sem cessar.

A investida contra Maduro traz consigo uma carga muito mais profunda do que parece à primeira vista. Utilizando uma expressão que faz lembrar o “Eixo do Mal” da gestão George W. Bush (formado na época por Iraque, Irã e Coreia do Norte), o conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, falou em novembro passado de uma “troika da tirania” na América Latina.

“Essa troika da tirania, esse triângulo de terror que vai de Havana a Caracas e Manágua, é a causa de um sofrimento humano imenso, o motivo de grande instabilidade regional e a gênese de um berço terrível de comunismo”, disse. Os Estados Unidos, prosseguiu Bolton, desejam ver “cair cada ponta desse triângulo. A troika vai desmoronar.”

Julio Borges, ex-presidente da Assembleia Nacional, também acredita que a escalada golpista contra Maduro vai além da Venezuela. De fato, ele acrescenta a Bolívia. “É um efeito dominó”, afirma. Segundo Borges, a Venezuela foi “o fator que alimentava três economias totalmente quebradas e era o respirador artificial de Cuba e da Nicarágua”. Mas, diante da crise venezuelana, “a única coisa que lhes resta são esses enclaves: Cuba, Nicarágua e, colateralmente, Bolívia”.

Com informações do El País