A “filhocracia” em xeque: militares e grande mídia cobram Bolsonaro 

O aguardado anúncio da reforma da Previdência da gestão Bolsonaro virou tema secundário na base governista e na pauta do noticiário. Tudo por causa de uma nova ingerência dos filhos do presidente nos rumos e nas decisões do governo. Setores pró-Bolsonaro ou favoráveis às reformas liberais – como os militares e a grande mídia – deram uma espécie de ultimato ao presidente e cobraram, publicamente, o fim da “filhocracia”.

Por André Cintra

Bolsonaro e filhos (Foto: Reprodução)

O Estado de S.Paulo, jornalão mais afeito ao ultraliberalismo e à pauta de costumes do bolsonarismo, deu o tom do alerta. “O presidente da República é formalmente Jair Bolsonaro, mas parece que não é ele quem exerce o poder de fato, e sim seus filhos”, alfinetou o Estadão, nesta sexta-feira (15), em editorial com o sugestivo título de “Filhocracia”. Como o presidente, de modo “constrangedor”, endossou os tuítes do filho, a manutenção de Bebianno no ministério ficou “insustentável”. Não se trata, porém, do único problema.

“Governar não é tuitar – e o Twitter não é o Diário Oficial, onde se publicam as decisões administrativas do governo. Mas o presidente, estimulado pelos filhos, parece totalmente entregue à balbúrdia irracional das redes sociais, inclinando-se a tomar decisões de supetão, ao sabor de cliques e ‘likes’”, protestou o Estadão. De olho nos respingos da crise, o jornal vai além: “Essa bagunça é um preocupante indicativo da desarticulação do governo às vésperas de apresentar ao Congresso sua proposta de reforma da Previdência (…). Um governo que tem pouco mais de 40 dias parece precocemente envelhecido, consumido por lutas internas”.

A parte final do editorial já nasce antológica: “Jair não é bom pai. Não soube ensinar a seus filhos os limites de comportamento que devem respeitar. E os meninos não são bons filhos. Não percebem que, agindo trefegamente, podem comprometer a Presidência do pai. Se a família tivesse lido Kant, saberia que o homem não é nada além daquilo que a educação faz dele”.

Público x Privado

O Globo não ficou atrás e também dedicou um editorial à intromissão da família Bolsonaro no governo. Conforme o diário da família Marinho, “não há registro de grandes casos de sucesso quando laços de sangue pesam mais que currículos como passaporte de entrada em palácios”. Expressando-se tal qual um porta-voz das Forças Armadas, O Globo afirma que “a reação extemporânea do vereador Carlos Bolsonaro, o 02 no jargão de caserna da família (…), aumentou as preocupações dos militares que se encontram no primeiro escalão do governo com a confirmação da imprevisibilidade deste núcleo familiar do presidente”.

De resto, “o potencial de confusão é enorme, e põe em risco questões de Estado”, emenda o jornal. “Não bastassem todas as dificuldades com que governo se depara – reformas, crise de segurança pública etc. – ainda é crucial que se construa um arranjo com o presidente e família, para que ele e o governo não sejam vítimas de fogo amigo pesado”.

Merval Pereira, colunista do O Globo e também da Globo News, avança no pito. A seu ver, a confusão provocada por Carlos Bolsonaro “tem um aspecto que a torna ainda mais perigosa em termos institucionais. Trata-se do uso indiscriminado das redes sociais para comunicação do seu pai, o presidente Jair Bolsonaro, sem distinção do público e do privado”.

O jornalista faz, ainda, uma acusação: “o que circula em Brasília é que o retuíte da conta pessoal de Jair Bolsonaro (@jairbolsonaro), como que avalizando a acusação de seu filho Carlos a Bebianno, foi postado pelo próprio, em nome do pai”. Para Merval, “é gravíssimo, se confirmado, que um dos filhos dele tenha acesso à senha do twitter e fique postando em nome do pai. O Estado não pode ficar em mãos indiretas, seja de quem for”.

“Poder moderador”

A reação dos militares à crise é abordada em reportagem do Valor Econômico. Embora não saia em defesa direta e aberta de Bebianno, o núcleo do governo ligado às Forças Armadas sustenta que a demissão do ministro, ante o fogo cruzado, pioraria ainda mais a situação. Nas palavras do Valor, “a cúpula militar interveio na crise (…) como um ‘poder moderador’, a fim de alertar para os riscos de que um governo que pretende promover reformas estruturantes, como a previdenciária, seja reduzido a uma ‘filhocracia’, com o chefe do Executivo sujeito à instabilidade familiar”.

O jornal noticia que, em resposta à assunção dos filhos sobre Bolsonaro, “um grupo de generais atua para arrefecer os ânimos e tutelar as ações do presidente”. De acordo com “um militar de alta patente que despacha no Palácio do Planalto”, chegou a hora de “dar limites aos filhos do presidente”, sobretudo nas redes sociais. O militar, em um tom acima, adverte que “Bolsonaro precisa respeitar a liturgia do cargo, enquanto Carlos deveria ter ‘a boca costurada’ e ‘os dedos amarrados’ para evitar novos episódios como o que culminou na crise em torno da possível demissão de Bebianno”.

Não bastasse a gravidade das denúncias contra o ministro, a presepada de Carlos fez com que o retorno de Bolsonaro a Brasília “fosse marcado pela turbulência política”. Para a cúpula militar, “expor Bebianno à fritura pública foi um erro (…). Agora, demiti-lo e abandoná-lo à própria sorte pode trazer consequências piores. Um oficial que já conviveu com Bolsonaro e tem experiência parlamentar pondera que seja ‘quase certo’ que as contas do partido tenham erros e eventualmente ilícitos. ‘Bebianno é um homem que sabe demais’”.

Para todos os efeitos, uma nota na Coluna do Estadão lembra que, em comum, os núcleo familiar e militar do governo Bolsonaro viam Bebianno como “corpo estranho” no Planalto. “Ainda que militares tenham entrado em cena para defender o ministro, eles nunca se sentiram completamente à vontade com a presença dele no Palácio. Foi apenas um gesto estratégico. Se ele ficar, cobram a fatura por terem debelado a crise. Se ele cair, querem indicar o substituto ou extinguir o cargo. A desconfiança em relação a Bebianno foi reforçada pelo bom trânsito dele com veículos de comunicação”.

Colunistas

Também no Estado de S. Paulo, a colunista Eliane Cantanhêde faz uma ressalva. “Atenção: está-se falando especificamente do Exército, não genericamente dos militares ou das Forças Armadas”, opina. “O Exército está em alta. Ocupa quase todos os postos do Planalto e, além de não criar problemas, tem de resolver problemas criados pelos outros. Inclusive, ou principalmente, pelo próprio presidente e seus três filhos, o 01, o 02 e o 03. Numa fase da ditadura, quando cutucavam o presidente Figueiredo, ele ameaçava acionar o ministro do Exército, linha dura: ‘Chama o Pires!’. Agora, quando é preciso segurar os filhos do presidente, os generais gritam por um moderado: ‘Chama o Heleno!’.”

Outra colunista, Mônica Bergamo, registra na Folha de S.Paulo que Bebianno costurou apoio “entre congressistas graduados, ministros de tribunais superiores e até de militares”. Em público, “foi defendido pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e pelo vice-presidente, Hamilton Mourão”. Já no meio militar, “a reação à crise é de perplexidade com o endosso de Bolsonaro aos ataques públicos de Carlos a Bebianno. Um general diz que o filho do presidente vai acabar colocando o governo no corner logo nos primeiros rounds”.

E Cristian Klein, no Valor Econômico, revela que nem tampouco entre os irmãos Bolsonaro há convergência. O presidente “balança a favor” de Carlos, jogando “água no moinho no projeto acalentado pelo irmão mais novo, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o 03, de assumir a frente da linha sucessória do clã, depois do escândalo que faz sangrar o primogênito e senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ)”. O texto indica que Flávio e Carlos “estão sem se falar há dois anos” e “mal se cumprimentam”.

Durante a campanha eleitoral de 2019, “Carlos e Eduardo – ao lado de Bebianno – tiraram o protagonismo de Flávio”, que saiu derrotado na “queda de braço” e foi “enquadrado”, deixando Bebianno com “uma avenida para se impôr como o braço-direito de Bolsonaro”. Agora, a tendência é o “fortalecimento de Eduardo, cuja influência no governo do pai é menos barulhenta – e mais calculada e presente – do que a virulência de Carlos em postagens pelo Twitter. Há quem já fale de um ‘eduardismo’”.

Em suma, pode-se mudar o protagonismo ou o peso da “filhocracia”, mas, pressões à parte, Bolsonaro não deve abrir mão do modelo. Segundo Cristian Klein, talvez surja até “um novo partido, com o esvaziamento do PSL” – o que serviria “de receptáculo ‘para Eduardo representar um bolsonarismo puro’, apartado da gestão federal”.

Laranjal

O estopim da crise foi a ofensiva de Carlos Bolsonaro, vereador no Rio de Janeiro, contra Gustavo Bebianno, que está no centro do “escândalo do laranjal”. O ministro – que era presidente do PSL durante a campanha eleitoral de 2018 – é acusado de usar candidatas de fachada (as tais “candidaturas laranjas”) para desviar recursos do Fundo Partidário. À imprensa, o ministro rebateu que, num único dia, chegou a falar três vezes com o próprio Bolsonaro, numa suposta evidência de que o presidente o avalizava.

Diante novas denúncias, a demissão de Bebianno parecia inevitável. Até que Carlos Bolsonaro escancarou o “fogo amigo” ao chamar Bebianno de “mentiroso” no Twitter e negar que seu pai e o ministro tenham conversado. Ato contínuo, o próprio presidente endossou o filho, ao retuitar a mensagem contra Bebianno.

O “escândalo do laranjal” e a cogitada demissão do ministro cruzaram o céu bolsonarista na iminência da apresentação da proposta de reforma da Previdência do governo. “Na área econômica também havia inquietação, ontem pela manhã, com os possíveis efeitos desse episódio no ambiente político do Congresso, que, no dia 20, receberá a proposta da reforma da Previdência. A base de apoio do governo não está tão sólida que não possa, de repente, ruir”, escreve Claudia Safatle (Valor).

Vera Magalhães, no Estadão, agrega: “A relação [entre Bebianno e a família Bolsonaro] seguirá eivada de desconfiança de lado a lado e Carluxo, descontente de não conseguir defenestrar o desafeto, o estará esperando na próxima curva do Twitter. E a ameaça do ‘homem que sabe demais’ ficará pairando sobre o governo, ainda que se arrume uma saída mais honrosa para Bebianno mais à frente”.