Do Saara à Venezuela: A rapina colonial da União Europeia

Da pesca subtraída aos saarauís ao petróleo e ao ouro expropriados aos venezuelanos, passando pela fruta colhida em terras palestinas roubadas por Israel, se nutre a economia europeia chancelada por Trump.

Por José Goulão*

União Europeia

O Parlamento Europeu não vê qualquer inconveniente em que a União Europeia tenha um acordo comercial com Marrocos que inclua os direitos de pesca nas costas do Saara Ocidental, território violentamente ocupado e aguardando que as Nações Unidas procedam a um processo de descolonização.

Quer isto dizer que a maioria dos membros do único órgão da União Europeia eleito diretamente pelos cidadãos não se limita apenas a aceitar como parceiro preferencial de negócios um Estado que viola grosseiramente o direito internacional; ainda admite que se tire proveito da situação, roubando riquezas alheias sem que os legítimos proprietários possam defender-se – porque lhes foram retirados os mais elementares direitos humanos e nacionais.

Esta história tem ainda elementos de um cinismo cruel, envolvendo outros órgãos da União Europeia. O Tribunal Europeu de Justiça recomendou, por exemplo, que o acordo seja aplicado com o “consentimento da população” do Saara Ocidental; e o Conselho Europeu, a estrutura onde estão representados os governos dos Estados membros, determina que a delapidação da riqueza pesqueira do território seja feita em benefício da população saarauí.

Ora como obter o “consentimento” de uma população a quem tem sido vedado, em mais de 30 anos, pronunciar-se, ao menos em referendo, sobre se quer ser independente ou continuar sob a violenta arbitrariedade marroquina? Como irá a União Europeia assegurar o “consentimento” dos saarauís, um dos povos mais desprotegidos e esquecidos do planeta?

E que garantias tem o Conselho Europeu de que a população usufrua de benefícios da pesca feita por embarcações estrangeiras, sendo certo que, se por absurdo, estes fossem disponibilizados, teriam de passar pelos filtros dos ocupantes marroquinos?

Longa cumplicidade colonial

O episódio registado agora no Parlamento Europeu é apenas mais um na longa saga de cumplicidade colonial das instituições europeias com a ocupação marroquina.

Marrocos e a União Europeia têm relações econômicas preferenciais e o acordo comercial é de longa data, como velho é o assalto europeu às riquezas pesqueiras do povo saarauí, obviamente sem o consentimento deste e também sem que lhe seja permitido usufruir de qualquer benefício.

Acontece que, na própria linguagem dos parlamentares responsáveis por estas medidas, o acordo comercial com Marrocos, já existente, foi agora “liberalizado” e formalmente estendido às águas territoriais do Saara Ocidental. Isto é, o que já acontecia na realidade foi agora explicitado, com o aval do Tribunal Europeu de Justiça e do Conselho dos governos, sempre muito escrupulosos, ainda que só por palavras, com o respeito pelos direitos dos povos e dos seres humanos.

Parceria com ocupantes

Aliás a União Europeia é, nesta matéria, como um livro aberto onde se lê uma tendência muito especial para incluir Estados ocupantes entre os parceiros preferenciais de negócios.

Israel tem acordos comerciais e econômicos preferenciais com a União Europeia; em muitos casos é como mais um membro da irmandade, não constituindo problema de relevo o fato de, tal como Marrocos, bloquear os direitos elementares de um povo, o palestino.

A União Europeia convive muito bem com a importação de produtos israelitas fabricados em territórios usurpados a palestinos há muito tempo ou mesmo mais recentemente, pois conhece-se a existência de laços econômicos comprometedores – porque estão teoricamente vedados – com colonatos sionistas na Cisjordânia, estruturas que violam o direito internacional.

Também em relação a Israel haverá quem diga oficialmente, na União Europeia, que está acautelada a vontade dos palestinos, tirando até benefícios da situação. De fato, as “ajudas” europeias ou quaisquer “compensações” com negócios processam-se sob o controle de Israel – que tem sempre a última palavra sobre o seu destino final. Quando não é jogado nas manobras chantagistas que são o dia-a-dia da ocupação sionista, mesmo quando mitigada sob o rótulo de autonomia.

Quanto à questão essencial – o reconhecimento dos direitos nacionais e humanos dos palestinos – a União Europeia continua a garantir que está permanentemente no seu horizonte de preocupações, como se verifica pelos conteúdos do discurso oficial, aquele que o mainstream difunde até à exaustão, para logro dos crédulos e, sobretudo, das principais vítimas, os palestinos.

Negócios e direitos humanos têm tempos paralelos

Mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa; e se Bruxelas continua a batalhar, através de palavras desgastadas, pelos direitos fundamentais dos ocupados, que isso não obste à fluidez dos negócios com os ocupantes. Negócio é negócio e tem os seus timings próprios e de oportunidade, que não devem ser prejudicados pelos timings políticos e diplomáticos, por norma muito mais longos, quiçá até infinitos. E a economia não pode esperar, tem de crescer, sobretudo nos tempos anêmicos em que se arrasta.

A pesca sonegada ao povo saarauí – e quem diz pesca pode acrescentar urânio e fosfatos – alimenta os cidadãos europeus e a economia europeia, do mesmo modo que a fruta, os produtos tecnológicos, produtos de beleza e o próprio festival da Eurovisão israelitas.

Pois que aprendamos com a maioria do Parlamento Europeia e a autocracia da Comissão e do Conselho, garantidas sempre pela produtiva aliança entre as direitas e a socialdemocracia, para que os negócios não sejam prejudicados pelos direitos dos povos e dos seres humanos, que correm na sua faixa própria e diferenciada, num tempo paralelo.

Os princípios democráticos e humanistas estão lá, nunca são nem foram esquecidos; mas que não entorpeçam os negócios, porque senão nem direitos, nem lucros. Se a democracia, entretanto, for enviesada, distorcida ou até mesmo posta entre parêntesis, paciência, será um dano colateral desde que o discurso oficial e as eleições, como um calendário religioso, continuem a cumprir-se para que tudo continue na mesma e se respeitem os rituais neoliberais.

A lição da Venezuela

Por isso mesmo é que a União Europeia não poderia permitir a continuação na Venezuela da situação política e econômica sufragada eleitoralmente muitas vezes nas duas últimas décadas.

A União Europeia não pode tolerar, por exemplo, que os negócios prometidos pela existência das maiores reservas mundiais de petróleo – e são 300 mil milhões de barris – não tenham de submeter-se ao “mercado livre e soberano” e sejam mantidos ao serviço prioritário dos venezuelanos.

Torna-se obrigatória, por consequência, a realização de eleições que garantam os resultados que sirvam o “mercado” e não os que aconteceram há oito meses, que mais uma vez afirmaram a soberania da Venezuela.

E enquanto se aguarda que as eleições produzam o que devem produzir, devem os venezuelanos ser educados pela fome até aprenderem a comportar-se, nem que seja tendo como mestres os psicopatas Bolton e Abrams, os fascistas Leopoldo López e Juan Guaidó. Tempos houve, por exemplo durante os governos do “socialdemocrata” Carlos Andrés Perez, em que os opositores eram lançados de aviões para as águas do oceano. Reinava então a “democracia” que ora se pretende restabelecer, enviando Maduro para o campo de concentração norte-americano de Guantánamo.

Para que isso volte a ser possível, as receitas da exportação do petróleo venezuelano foram agora entregues aos meios financeiros dos Estados Unidos, que sabem por natureza o que corresponde verdadeiramente aos interesses do “mercado livre”.

E “expropria-se internacionalmente” o ouro venezuelano entregue por Caracas ao Banco de Inglaterra e que servia ao governo da Venezuela para comprar medicamentos, alimentos e outros produtos de primeira necessidade, de modo a ultrapassar as consequências das sanções assassinas decretadas em Washington, seja por democratas, seja por republicanos.

Roubar o ouro até nem foi difícil. O secretário norte-americano do Tesouro, Steven Mnuchin de seu nome – que antes foi figura de topo do Goldman Sachs, o “banco que governa o mundo” – inteirou-se do ouro venezuelano depositado no Bando de Inglaterra: 31 toneladas, no valor aproximado de 900 milhões de euros. Desse total, 14 toneladas estavam cativas há cerca de quatro meses, quando o Reino Unido se recusou a devolvê-las a Caracas, alegando “problemas logísticos”; e 17 toneladas transitaram recentemente do Deutsche Bank, onde serviram de garantia a uma dívida do Estado venezuelano já totalmente resgatada.

Revela o próprio Mnuchin que entrou em contato com os governos e os bancos centrais dos países da União Europeia, com os quais acordou retirar ao governo venezuelano qualquer legitimidade sobre essa fortuna em lingotes.

E assim aconteceu. Fácil, simples, rápido, expedito. Presume-se, pois, fazendo fé na revelação do senhor Mnuchin, que o governo de Portugal e o Banco de Portugal são também responsáveis por este assalto aos bens do povo venezuelano. O que é próprio de uma verdadeira democracia que pretende “restabelecer a democracia” em terra alheia.

Da pesca subtraída aos saarauís, ao petróleo e ao ouro expropriados aos venezuelanos, passando pela fruta colhida em terras palestinas roubadas por Israel se nutre, pois, a economia europeia, politicamente gerida pela sociedade neoliberal socialistas & direitas, limitada. Sempre com o aval democrático e agora, pelo sim pelo não, sob a chancela de Donald Trump.

Um aval democrático obtido em eleições que garantam os resultados certos e adequados para que prolifere o “mercado livre”. As únicas eleições que valem.