Publicado 04/03/2019 01:11
Lançada pelo ativista argentino Adolfo Pérez Esquivel, vencedor do Nobel da Paz em 1980, a candidatura do ex-presidente Lula ao prêmio amealhou mais de 600 mil assinaturas de apoio em pouco mais de um mês. Diante do possível boicote do governo Bolsonaro e do estrondoso silêncio da mídia nativa sobre a campanha, parece improvável que a iniciativa logre êxito, não importa a quantidade de signatários em seu favor – a menos, é claro, que o comitê norueguês responsável pela honraria busque reafirmar a sua independência.
O histórico da premiação sugere, porém, uma postura bem menos altiva. Indicado ao Nobel da Paz por quatro anos consecutivos a partir de 1970, dom Hélder Câmara foi preterido todas as vezes. Opositor da ditadura e incansável defensor dos direitos humanos, o corajoso arcebispo de Olinda e Recife, falecido em 1999, foi vítima de uma sórdida campanha difamatória teleguiada de Brasília e executada pelo então embaixador brasileiro em Oslo, Jayme de Souza Gomes, como comprovam documentos diplomáticos do período. Com o atual chanceler Ernesto Araújo, ora engajado em sua delirante luta para libertar o Itamaraty do “marxismo cultural”, não há razões para acreditar em um desfecho diferente no caso de Lula.
Entre os apoiadores da candidatura do ex-presidente figuram a escritora Angela Davis, o filósofo e linguista Noam Chomsky e o ator Danny Glover, além de uma extensa relação de juristas e intelectuais de todo o mundo. Referência da esquerda francesa, o jornal L’Humanité chegou a dedicar uma capa em prol de Lula, apresentado como “preso político”. Como mostrou a reportagem, o Fome Zero e outros programas criados pelo ex-presidente tiraram 40 milhões da pobreza extrema. Pela primeira vez, o Brasil saiu do mapa da fome da ONU. “Se um governo nacional se torna um exemplo mundial de luta contra a pobreza e as desigualdades, contra a violência estrutural que nos aflige como humanidade, deve ser reconhecido por sua contribuição para a paz”, escreveu Esquivel.
Somente almas ingênuas acreditam que o Nobel da Paz é um prêmio isento de pressões ou intenções políticas. Em entrevista publicada por CartaCapital em 2017, o dominicano francês Régis Morelon citou uma resposta que dera a um jornalista francês sobre a invasão do Iraque em 2003: “Saddam Hussein é um crápula, mas tem mais sangue nas mãos o Henry Kissinger, que tem um Prêmio Nobel da Paz”. Na ocasião, Morelon relembrou que o ex-secretário de Estado dos EUA foi um dos principais responsáveis pelos golpes de Estado no Chile, pela Operação Condor das ditaduras sul-americanas, pela invasão da Indonésia no Timor-Leste, entre outras intervenções em nome dos interesses americanos.
De passagem por Paris, Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores do governo Lula, minimiza o poder de influência do governo Bolsonaro. “No caso de Dom Hélder, eram outros tempos. O governo atual não goza de grande prestígio internacional”, diz. “O mais provável é que os opositores tentem inventar outro candidato brasileiro ou latino-americano, que não ganhará, mas poderá enfraquecer a candidatura de Lula. Parece que já sugeriram os bombeiros que trabalharam em Brumadinho…”
De fato, o atual governo não goza de prestígio internacional. É o mínimo que se pode dizer para a total degradação da imagem do Brasil um mês e meio após a posse de Jair Bolsonaro. Mas a ditadura tampouco gozava de muita estima. Se, no Brasil, muitos veículos de comunicação apoiavam a ditadura e apenas a revista Veja e os alternativos, chamados de nanicos, eram ferozmente censurados, os jornais europeus publicavam com frequência denúncias de torturas, desaparecimentos e execuções sumárias.
Em suas viagens para a Europa, onde era ouvido e respeitado, Dom Hélder não se cansou de denunciar os crimes da ditadura. Em 1970, para citar um exemplo, discursou para 14 mil estudantes, professores e intelectuais no Ginásio de Esportes, em Paris. Neste mesmo ano, foi sordidamente atacado por dossiês montados pela ditadura para denegrir sua imagem junto ao Comitê Nobel.
A Comissão da Memória e Verdade Dom Hélder Câmara, de Pernambuco, levantou toda a história dos bastidores do boicote e da agitação diplomática para impedir que o Nobel da Paz fosse atribuído a Dom Hélder. No documento de 229 páginas produzido pela comissão, há depoimentos de diplomatas, ofícios e telegramas que provam a ação do governo durante a ditadura para impedir que o arcebispo recebesse o Nobel da Paz nos anos 1970.
Os diplomatas trabalharam para convencer os integrantes da Fundação Nobel e a opinião pública europeia de que o prêmio traria “um desconforto ao governo brasileiro”, à época sob o comando do ditador Emílio Garrastazu Médici. Em um dos ofícios, o embaixador Jayme de Souza Gomes fala abertamente sobre um “programa de ação contra a candidatura do arcebispo de Olinda e Recife”. Os generais chegaram a ameaçar empresários de companhias nórdicas.
Em sua biografia, o ex-embaixador Vasco Mariz, então chefe do Departamento Cultural do Itamaraty, reconhece que convocou os embaixadores dos países escandinavos para comunicar o “desconforto” do governo brasileiro. Ao receber a resposta de que não poderiam interferir em temas ligados ao Nobel, a ditadura resolveu aumentar as pressões. Segundo Mariz, presidentes e diretores de empresas escandinavas no Brasil, como Volvo, Scania, Ericsson e Nokia, chegaram a ser convocados para uma reunião sobre o assunto. Ao ouvir que seus interlocutores não podiam fazer nada, um general teria esmurrado a mesa e anunciado: “Se Dom Hélder receber o Prêmio Nobel da Paz, suas empresas no Brasil não poderão remeter um centavo de lucros para suas matrizes”.
De acordo com Mariz, esse encontro lhe foi relatado por Alarico Silveira, então chefe do Serviço de Informações do Itamaraty. Até um padre belga foi mobilizado para analisar cada texto escrito pelo arcebispo e apontar o perigoso comunista que se escondia sob a batina.
Atualmente domiciliado em Paris, o jornalista e escritor José de Broucker, biógrafo de Dom Hélder, continua na luta pela preservação da memória do brasileiro. Recentemente, ele escreveu o prefácio de um livro que reúne cartas escritas pelo arcebispo durante o Concílio Vaticano II. “As circunstâncias deram-lhe estatura e audiência internacional, por sua coragem na defesa dos direitos humanos. E ele pagou um preço alto.”
Em 1970, Dom Hélder foi preterido para o Nobel da Paz por um desconhecido biólogo americano, Norman Borlaug, pesquisador de cereais para a Fundação Rockefeller. Em 1971, o chanceler alemão Willy Brandt foi o escolhido. Em 1972, o Nobel da Paz não foi atribuído e, em 1973, Henry Kissinger dividiu o prêmio com o norte-vietnamita Le Duc Tho, pelas negociações de paz para o Vietnã. Este último recusou o prêmio, ao observar que a paz ainda não tinha sido restabelecida na região.