Paraguai: luta pelo impeachment do presidente continua

Mário Abdo mentiu quando disse ter sido mal informado a respeito da negociação com o Brasil. E a crise, que parecia atenuada, voltou com força e pode levar a novo pedido de impeachment.

Por José Carlos Ruy

Paraguai

A crise política persiste e se aprofunda no Paraguai, provocada pela postura entreguista do governo de Mário Abdo Benitez e das autoridades que negociaram, com o Brasil, uma renovação do tratado que envolve a usina de Itaipu.

Nesta quinta-feira (8), o Senado paraguaio amanheceu forrado de cartazes, nas bancadas da oposição, insistindo que Itaipú é uma “causa nacional” e "não à impunidade". A cena repetiu a
mesma situação do dia anterior, na Câmara dos Deputados, onde as bancadas da oposição (que tem 38 deputados num total de 80) foram cobertas com cartazes exigindo o início do processo de impeachment contra o presidente da República Mario Abdo Benítez, o vice Hugo Velázquez e o ministro da Fazenda Benigno López.

A luta pelo afastamento de Abdo e das autoridades acusadas pela oposição de "traição à pátria" logo ultrapassou a esfera institucional e ganhou as ruas da capital Assunção, Ciudad de Este (próxima à usina de Itaipu e a segunda maior do país) e outros locais. Em Assunção, nesta quarta-feira (7) milhares de pessoas voltaram às ruas clamando “Itaipu não se vende, se defende”. O mesmo ocorreu em Ciudad del Este, onde o povo e estudantes ocuparam as ruas exigindo a instalação do processo de impeachment daquelas autoridades; ocuparam a rodovia qque liga os dois países, passando pela Ponte da Amizade, que a liga com a cidade brasileira de Foz do Iguaçu. Exigiam "uma resposta ante a entrega da soberania energética ao Brasil”.

Mário Abdo. presidente do Paraguai desde agosto de 2018, faz parte do setor mais conservador da oligarquia paraguaia, e tem ligações familiares com a ditadura de Alfredo Stroessner (1954- 1989), do qual o pai do presidente foi assessor.

A crise paraguaia cresceu após a divulgação, no final de julho, do conteúdo da negociação com o Brasil. Em 24 de maio os negociadores dos dois países assinaram uma contestada ata, lesiva aos interesses paraguaios – que ficou literalmente clandestina; seu conteúdo não foi divulgado na ocasião, e só se tornou de conhecimento público dois meses depois, em 24 de julho, após a renúncia de Pedro Ferreira, presidente da paraguaia

Administração Nacional de Eletricidade (Ande), parceira da Eletrobrás no comando de Itaipu. Ferreira se recusou a assinar o acordo por considerá-lo lesivo aos interesses de seu país.
A indignação paraguaia foi geral. Aquela contestada ata envolve, em certa altura, a comercialização, entre os dois países, da energia gerada por Itaipu, que os técnicos dividem em duas categorias: energia garantida (mais cara) e energia adicional, ou excedente (mais barata).

Pelo acordo assinado secretamente em 24 de maio de 2019, os representantes paraguaios renunciavam ao direito, reconhecido pelo acordo com o Brasil em 2007, do uso de energia excedente (mais barata), gerando um gasto adicional, para o país, de 200 milhões de dólares (segundo alguns cálculos; outros falam em muito mais – 350 ou 400 milhões de dólares) até 2022. Em 2023,quando o Tratado de Itaipu completa 50 anos, ele deverá ser renovado. E quem pagaria o acréscimo que consta na ata de 24 de maio seriam aqueles sobre quem sempre é jogado o custo destas decisões tomadas por governos neoliberais e conservadores, como o de Mário Abdo: os consumidores.

Além de afrontar os interesses paraguaios – acusa a imprensa de Assunção – o contestado acordo favorece de maneira irregular uma empresa ligada à família Bolsonaro, a Léros Comercializadora de Energia. O lobista e suplente de senador Alexandre Giordano (PSL-SP), acusa o diário ABC Color, de Assunção, participou diretamente da negociação. Ele atuou para que a empresa ligada à família Bolsonaro fosse a revendedora exclusiva da energia excedente do Paraguai no Brasil. Segundo a imprensa paraguaia, o lobby bolsonarista inclui também o advogado José Rodríguez González, assessor do vice-presidente Hugo Velázquez.

A evolução do escândalo, no lado paraguaio, foi rápida – no dia 24 de julho soube-se do atentado à soberania energética do país, e às contas nacionais. Já no dia 31 os partidos de oposição anunciaram a intenção de iniciar um processo de impeachment (julgamento político, na retórica usada por eles) contra o presidente, o vice e o ministro da Fazenda. E conseguiram para isso o apoio da Honor Colorado (Honra Colorada, movimento dissidente do partido de governo liderado pelo ex-presidente Horacio Cartes, que governou entre 2013 e 2018).

A oposição, que tem 38 votos entre os deputados, conseguiu com essa adesão os 53 votos necessários para aprovar na Câmara dos Deputados o pedido de processo político do presidente. Imediatamente entrou em ação a turma do deixa-disso, que incluiu partidários do governo e seus parceiros no Itamaraty e no governo brasileiro – inclusive o presidente Jair Bolsonaro que é, juntamente com o estadunidense Donald Trump, um dos principais aliados de Mario Abdo.

A ata assinada em 24 de maio foi jogada fora, declarada sem efeito nas duas margens do rio Paraná. Jair Bolsonaro teve forte atuação e logo declarou a intensão de cancelar aquela ata – que foi tornada sem efeito na sexta-feira (dia 1º). Os ânimos pareciam serenados, a crise contornada e a negociação sobre Itaipu foi declarada reaberta pelos dois governos.

Alegando que a anulação da contestada ata eliminou o problema, o Honor Colorado recuou e deixou de apoiar o pedido de impeachement que havia apiado menos de 24 horas antes. A crise parecia esvaziada na Câmara dos Deputados depois que essa manobra eliminou a vantagem numérica que a oposição teria na votação.

Màrio Abdo, por sua vez, deu declarações contraditórias. Inicialmente elogiou o acordo, chegando a dizer que o Paraguai devia "se portar como um país sério". Em seguida, mudou de opinião e pediu desculpas públicas por aquelas negociações, dando a entender que fora mal informado. E anunciou que os negociadores seriam demitidos, por má fé, negligência ou erros cometidos. Deu a entender não ter sido corretamente informado sobre a negociação.

Abdo, apoiado por Bolsonaro e pelo embaixador dos EUA, Lee McClenny, parecia ter vencido a crise.

Mas, na segunda-feira (5) a imprensa paraguaia publicou o conteúdo de mensagens de whatsapp trocadas entre o presidente Mário Abdo,os negociadores paraguaios e Pedro Ferreira, o ex-presidente da ANDE, e a crise voltou com força redobrada. Essa divulgação deixou claro que Abdo faltou com a verdade pois de fato acompanhou passo a passo as negociações, orientou-as e defendeu a não divulgação de seu conteúdo.

A crise voltou com força total. Na terça-feira (6). 30 deputados da oposição oficializaram o pedido de julgamento político do presidente e demais acusados.

As mensagens divulgadas mostraram que Abdo fora pressionado pelo governo brasileiro a aceitar a mudança registrada na ata que gerou a crise. E que reagiu pressionando, por sua vez, os negociadores paraguaios a aceitar a pretensão do governo brasileiro – cujo objetivo era, claramente, anular uma decisão tomada, anos antes (em 2007) pela diplomacia dirigida pelo governo Lula.

A divulgação daquelas mensagens revelou que Abdo pediu que o conteúdo da ata fosse mantido em sigilo e não revelado publicamente, e insistiu para que Pedro Ferreira, presidente ada ANDE, assinasse o acordo. Chegou a dizer que "não se pode ganhar tudo em uma negociação". À resposta de Pedro Ferreira, de que o atendimento da exigência do governo brasileiro levaria no aumento no preço da energia elétrica no Paraguai, com impacto de até 400 milhões de dólares, Abdo respondeu: "Temos que negociar. E ao negociar se sacrificam posições e até algumas vezes princípios" Disse também ser preciso "manter o silêncio e não polemizar”. E insistiu neste ponto em nova mensagem, em 11 de junho: "há que manter em silêncio e não polemizar”.

Em 23 de junho, na véspera de completar um mês desde a assinatura da ata, outra mensagem de Mário Abdo revela que sabia da negociação com a Léros, "a empresa brasileira que que está no olho do furacão por haver sido, apadrinhada pelo vice presidente Hugo Velázquez."
Nas mensagens reveladas há uma, de Pedo Ferreira a Mário Abdo, que desmente suas alegações, de que estaria mal informado. Ferreira diz: “A prova de que o acordo é claramente é que querem mantê-lo em segredo".

A crise no Paraguai não está encerrada, e a próxima semana promete desdobramentos mais intensos. Nas ruas, em manifestações populares pelo impeachment de Abdo, e na Câmara dos Deputados, onde a exigência de julgamento político pode crescer.