Nágyla Drumond: vida longa ao Centro Socorro Abreu

 

Nágyla Drumond: vida longa ao Centro Socorro Abreu

Não pude participar, neste sábado (30), da reunião que marca a reorganização do Centro Socorro Abreu de Desenvolvimento Popular e Apoio à Mulher (CSA),  " a Socorro Abreu" , como ficou conhecido pelas milhares de mulheres que foram atendidas pelos serviços jurídico e psicológico que a entidade oferecia, a partir de um programa de enfrentamento à violência doméstica, em parceria com ONG alemã Misereor. 

O Socorro Abreu não nasceu como ONG. Primeiro , em 1999, se estruturou como projeto no interior da Federação de Entidades de Bairros e Favelas de Fortaleza (FBFF). Ao final de 2002, em reuniões com uma série de associações comunitárias , em especial, da chamada região oeste da cidade, tivemos a ideia de propor que o que era um projeto pudesse se transformar numa entidade , numa organização não-governamental que fosse além da prestação de serviços às mulheres em situação de violência. 
 
Foi quando na plenária final do Congresso da FBFF, realizado em março de 2003, no SESI da Barra do Ceará/Fortaleza, aprovamos, com ampla maioria, a criação do CSA. Realizamos  nossa assembleia de fundação no dia 06 de junho de 2003, num bonito fim de tarde, na sede do Conselho Regional de Serviço Social, na Praça da Gentilandia/Benfica. 
 
Ali começava um novo capítulo de uma história inscrita a muitas mãos , sob os cuidados de muitas mulheres e homens que acreditavam e acreditam ser necessário ,cada vez mais, entidades incorporarem o feminismo em seu repertório politico. E que possam dialogar, cada vez mais, sobre feminismo com as mulheres trabalhadoras, chefes de família, de baixa renda, moradoras das grandes capitais brasileiras, no exercício de suas múltiplas áreas de atuação. O feminismo como posicionamento político que se articule às lutas gerais do povo e que mais do que empoderar mulheres individualmente possa contribuir na emancipação de milhares de mulheres e homens de forma coletiva. Quanto mais democrática, soberana e prenhe de direitos individuais e coletivos uma sociedade for; melhor será a vida das mulheres, as primeiras vítimas das crises e barbáries civilizacionais que já vivenciamos ao longo da história da humanidade. 
 
Já naquele tempo, víamos ser necessário articular às grandes questões nacionais com o debate mais imediato e palpável da vida das mulheres nas cidades. Era preciso falar de violência doméstica, antes de existir a Lei Maria da Penha, a Secretaria Nacional de Promoção de Políticas Públicas para as Mulheres, as Conferências Nacionais da Mulher,  a Casa da Mulher Brasileira. Era preciso fazer com que o feminismo saísse das rodas acadêmicas e pudesse se capilarizar no meio do povo. Era preciso que mais mulheres, em especial, mulheres trabalhadoras pudessem debater sobre a vida no espaço urbano; na relação entre mulher e trabalho, na relação com o corpo, os direitos sexuais, os direitos reprodutivos; o enfrentamento à violência. Era preciso, por exemplo, debater porque a redução da jornada de trabalho e políticas de pleno emprego afetam positivamente a vida das mulheres, de legiões de mulheres que absorvem quase que totalmente as tarefas da reprodução social, quando essas precisam ser  compartilhadas com homens e, principalmente, com o Estado. É preciso olhar cada vez mais para a tão famosa divisão social e sexual do trabalho que se aprofunda ainda mais num "mundo do trabalho" reconfigurado pelas revoluções digitais. 
As mulheres do povo, muitas vezes, mesmo sem se identificar como feministas nos davam e nos dão grandes lições de o que querem as mulheres, o que precisam as mulheres, o que podem as mulheres. Os feminismos em sua mais diversas abordagens insiste em tutelar as mulheres, quase que de forma colonial. Me perdoem, essa postura é conservadora demais, cafona demais, chata demais. Vejamos o quanto o discurso empreendedor e  "coachiano" de inspiração na Teoria da Prosperidade alavanca multidões. Eles chamam os trabalhadores de colaboradores e líderes e nós os chamamos, apenas, de explorados. Apenas. E não conseguimos sequer criar um contraponto que enfrente esse tsunami de auto-ajuda, faça por você, seja um vencedor….. 
 
Mas, voltando aqui…. Adianto que as trabalhadoras, em esmagadora maioria, detestam o lugar eterno de vítima. Metade da força de trabalho de um país continental como o Brasil não pode se encarar e nem ser encaradas como pobrezinhas, incapacitadas. De forma alguma. Elas dão nó em pingo d'água, resistem, lutam, trabalham demais, se divertem demais, criam um mundo de gente , ao mesmo tempo em que são oprimidas por um sociedade que naturaliza/ banaliza as mais diversas formas de violência e exploração. As mulheres do povo são, antes de mais nada, sobreviventes. E têm uma imensa capacidade criativa e de produção intelectual, política e cultural. 
 
De olho nesse grandioso desafio, uma das primeiras ações do Centro Socorro Abreu, ainda em meados de 2003, foi articular a Rede Comunitária de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher que reunião dezenas de associações comunitárias , em sua maioria, filiadas à FBFF e atuantes na região oeste da cidade. O feminismo precisava ser articulado com as lutas locais, comunitárias, urbanas. Precisava ser desencastelado e trasnversalizado ao conjunto das lutas do povo. Não é em si uma luta específica; mas, um posicionamento politico-histórico-ideológico que precisa ser incorporado ao cotidiano das diversas práticas políticas, em especial, comunitárias e sindicais, num tempo em que cada um e cada uma é uma instituição numa mídia social e se apregoa a morte dos movimentos populares e sindicais. Importante peleja essa nossa. 
 
Digo isso, sem pudor algum. E sem medo de ser tachada de "dinossáurica". É preciso emancipar mulheres e homens. Empoderá-los/as é importante e justo ; mas, limitante à sociedade que sonhamos construir, que parte da esquerda brasileira sonha em construir.  Não se trata de um ou uma pessoa, apenas; queremos que os avanços civilizacionais atinjam milhares, milhões e para isso , não se pode, simplesmente achar que é preciso mais sororidade, como se esse sentimento fosse sinônimo imediato de prática feminista. Não estamos numa ciranda.  Se assim o fosse, tenhamos certeza de que mais fácil seria a travessia. Também não se resume a um debate sobre representatividade ou "alguns tipos de representatividade". Todas as vezes que falo nesse assunto, fico me perguntando onde foi, exatamente, que nos perdemos para que  trabalhadoras não representem mais trabalhadoras. Saber até a gente sabe , o duro é engolir, sistematicamente, que entidades e instituições as mais diversas, de espectro político mais avançado tenham se limitado a fazer esse único e exclusivo debate, abandonando um mundo de perspectivas que podem e devem aglutinar muito mais gente e transformar o feminismo em discurso e prática de milhões pessoas. Popularizar o feminismo está longe de "vulgarizá-lo" como clichês de "esquerdas e  direitas" múltiplos. Esse é um debate urgente ao feminismo do século XXI. É preciso falar mais sobre classe, raça, gênero e feminismos de forma, verdadeiramente, articulada. É preciso saber o que significa femininos liberais e feminismos emancipatórios. Separar o joio do trigo e mobilizar os mais amplos segmentos. O feminismo precisa deixar a solitária. 
 
Parte desse debate , inclusive, é resultado da divulgação em massa do feminismo que, contraditoriamente, pouco ajuda em fazer com que o feminismo saia de sua clausura política.  Quanto mais se fala sobre o assunto, mais se apresentam as mais diversas correntes de pensamento. Das mais avançadas às mais retrógradas e cabe a nós não nos acomodar às frases fáceis e muitas vezes patrocinados pelo mercado que há muito já nos descobriu como poderoso nicho. 
 
O Brasil do século XXI, sob a barbárie institucional validada no último pleito eleitoral pelas massas trabalhadoras, não pode prescindir desse debate. Tudo o que faz a civilização brasileira avançar está sendo barrado ou destruído pelo atual governo. Tudo. Absolutamente, tudo. É um assalto à inteligência nacional, à ciência, à cultura, às artes, às instituições democráticas, à soberania. 
 
O que as feministas, dos mais diferentes matizes,  têm a dizer ao povo trabalhador? Têm a dizer às mulheres trabalhadoras? A nossa agenda e a nossa abordagem metodológica estão conseguindo dar conta do debate atual em que a população clama por emprego e segurança? Será que a maior e mais presente identidade que precisamos vestir agora não será a de defensoras da democracia, soberania e da civilização brasileira? A nossa agenda não comporta essa pauta? Penso eu, que talvez, essa seja, também, a principal missão do nosso bom e velho CSA, reestruturado em assembleia hoje, dia 31 de agosto, coincidentemente no dia em que se consumou o golpe juridico-parla mentar e midiático contra a Presidenta Dilma Rousseff, encerrando um ciclo virtuoso em que construíamos uma importante etapa de nossas democracia e soberania. 
 
Me sinto muito feliz e honrada por ser sócia-fundadora e ter sido diretora- presidenta dessa grande entidade. Estou aqui, pro que der e vier, sempre. 
 
Em tempo: dedico esse texto à memória de nossa linda e aguerrida Socorro! O dia de hoje, tbm, é dedicado a ela e à sua vida de encantos, festas, amor e muita, muita luta! 
 
Vida longa ao nosso Socorro Abreu! 
Viva as mulheres trabalhadoras! 
Viva as mulheres de Fortaleza! 
 
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