Luiz Gonzaga Belluzzo: A reforma da Previdência e o Velho Capitalismo
Ouso enfiar minha colher no debate sobre a reforma da Previdência. Desconfio que a reforma é anacrônica. Anacrônica porque desconsiderava o terremoto tecnológico e financeiro que está a abalar os “velhos” mercados de trabalho da Era Fordista. Construídos sobre as garantias de estabilidade das relações salariais e das políticas econômicas nacionais de pleno emprego, os “velhos” mercados de trabalho sucumbiram às peripécias do Velho Capitalismo.
Por Luiz Gonzaga Belluzzo*
Publicado 01/10/2019 18:13
O Velho Capitalismo não é o capitalismo envelhecido, mas, sim, aquele reinvestido em sua natureza, revigorado nas forças da competição desenfreada entre mamutes empresariais. Empenhados em capturar mais valor dos empreendimentos já existentes, os mastodontes multiplicam as fusões e aquisições, ocupam os espaços globais, aceleram o tempo de produção, dispensam trabalhadores e achatam os salários. Nessa toada, amesquinham os espaços nacionais, onde insistem em sobreviver homens e mulheres de carne e osso.
Em sua reinvenção, o Velho Capitalismo dissipou as esperanças do capitalismo fordista dos 30 Anos Gloriosos. O período glorioso alimentou a concepção, ao mesmo tempo solidária, generosa e ilusória da separação entre duas formas do capitalismo: 1) o capital produtivo em que homens e máquinas se combinam virtuosamente para a produção de bens e serviços; e 2) o capital “improdutivo” que não produz mercadorias, mas gera rendimentos “fictícios” para seus proprietários.
No renascimento do Velho Capitalismo, essas formas revelam que não são opostas, senão contraditórias: desenvolvem-se como dimensões do mesmo processo que subordina a produção dos meios materiais para a satisfação das necessidades ao império da acumulação de riqueza monetária. Ao derrubar as fronteiras erguidas pelas políticas intervencionistas para proteger a produção e o emprego, o Velho Capitalismo soltou o demônio monetário que carrega na alma.
No livro Phenomenology of The End, Franco Bifo Berardi desvenda essas transformações: “Em suas etapas mais recentes, a produção capitalista reduziu a importância da transformação física da matéria e a manufatura física de bens industriais, ao propiciar a acumulação de capital mediante a combinação entre as tecnologias de informação e a manipulação das abstrações da riqueza financeira. A informação e a manipulação da abstração financeira na esfera da produção capitalista tornam a visibilidade física do valor de uso apenas uma introdução na sagrada esfera abstrata do valor de troca”. A inteligência artificial, a internet das coisas, a robotização têm sido incansáveis em sua faina de metamorfosear a materialidade da produção na imaterialidade das formas financeiras.
Os empreendimentos de plataforma encarnam, hoje, a modalidade mais aperfeiçoada do Velho Capitalismo. Além dos gigantes numéricos, como Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft, as plataformas ocupam outros setores como finança, hotelaria, transportes, comercialização e distribuição de mercadorias, entrega de comida a domicílio. Aí estão em pleno vigor, as plataformas dos Ubers e dos iFoods da vida.
Os trabalhadores autônomos, empreendedores de si mesmos, assumem os riscos da atividade – investimento, clientela – mas estão submetidos ao controle da plataforma na fixação de preços e repartição dos resultados. Essa organização do trabalho foi predominante nos primórdios do capitalismo manufatureiro da era mercantilista, sob a forma do “putting-out system”. Os comerciantes forneciam a matéria-prima para os artesãos “autônomos” que estavam obrigados a entregar o produto manufaturado em determinado período de tempo.
No capitalismo das plataformas, a utopia do tempo livre se transmuta na ampliação das horas trabalhadas, na intensificação do trabalho, no endurecimento da concorrência, enriquecimento de poucos, na precarização e empobrecimento de muitos na bolha cada vez mais inflada dos trabalhadores por conta própria.
Em seu predomínio pós-fordista, já perscrutou Michel Foucault, o mercado, “poder enformador da sociedade”, redefiniu os indivíduos-sujeitos. Os valores da livre concorrência transformaram todos e cada um em “empreendedores de si mesmos”, proprietários, sim, do seu “capital humano”.
Na realidade real, o capital humano cultivado com os empenhos da educação e da formação profissional, sofre forte desvalorização nos mercados de trabalho contaminados pela precarização, pelo empreendedorismo das plataformas e pela continuada perda da segurança, outrora proporcionada pelos direitos sociais e econômicos.
A concentração empresarial promove a rápida expansão dos rendimentos derivados primordialmente do exercício da propriedade de ativos tangíveis e intangíveis. Isso demonstra que o avanço do patrimonialismo não é uma deformação da Nova Economia, senão a expressão necessária de suas formas de apropriação da renda e da riqueza.
Como foi dito acima, o capitalismo “social” e “inter-nacional” do imediato pós-guerra transfigurou-se no capitalismo “global”, “financeirizado” e “desigual”. As desejadas reformas tributárias e dos sistemas de Previdência estão encarceradas nas enxovias da riqueza-propriedade e do mercado de trabalho frouxo e povoado por trabalhadores em tempo parcial e por conta própria.
O projeto da reforma da Previdência agarrou-se aos pingentes do passado para ignorar o futuro. Mas, para não bloquear o diálogo, prestamos uma homenagem ao consenso dominante ao considerar bem-intencionadas, porém duvidosas, as proclamações que asseguram efeitos miraculosos da reforma sobre o crescimento.
Ainda assim, o Velho Capitalismo e suas “novas” formas de trabalho dificultam, senão inviabilizam, reformas da Seguridade Social que não contemplem uma participação maior dos impostos gerais, pagos por todos, com forte viés progressivo, sobre a renda e a riqueza. Isto para não falar da péssima ideia da Carteira Verde-Amarela, uma forma de desobrigar os patrões de contribuir e, por isso, um facilitário para recontratar trabalhadores com salários rebaixados.
Escrevi impostos, para escândalo dos que restringem o debate a respeito da reforma necessária aos regimes de repartição ou advogam uma transição altamente arriscada para a capitalização. Na situação brasileira, é inadmissível, por exemplo, a isenção dos dividendos e de seu companheiro inseparável, a pejotização.
* Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2001, foi incluído entre os cem maiores economistas heterodoxos do século 20 no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.